Carlos Fernando Mathias de Souza
Em 1932, adveio a famosa Consolidação Piragibe (o nome, como se sabe, deve-se ao desembargador Vicente Piragibe, que se encarregou de sua elaboração), como o sentido não só de facilitar a consulta, mas a própria aplicação da lei penal no país. Vigente estava o Código de 1890, contudo, paralelamente, havia excessiva quantidade de leis penais, que, machadeanamente, poder-se-ia dizer que a confusão era geral. A consolidação em destaque, todavia, ainda revelava o quanto era insatisfatória a própria legislação penal brasileira. Recorde-se que, desde sua promulgação, advieram projetos tendentes à substituição do Código de 1890 e, dentre eles, por certo, o mais famoso, foi o de Virgílio Sá Pereira. Tal projeto, sem embargo do mérito do autor (e das contribuições que recebera de Evaristo de Morais e de Mário Bulhões Pedreira), revelava muitos defeitos, e disso encarregou-se de demonstrar a literatura especializada.
Diante de tal quadro, foi encarregado o professor Alcântara Machado da elaboração de um novo projeto do Código Penal e, de passagem, lembre-se que o notável penalista registrou suas linhas fundamentais em artigo que publicou na revista Direito (Rio de Janeiro, volume 8º, 1941) sob o título Para a História da reforma penal brasileira. O fato é que o Projeto Alcântara Machado (1938) serviu de base para o Código Penal de 1940, de cuja elaboração encarregou-se comissão integrada por Narcélio de Queiroz, Vieira Braga e Nelson Hungria e que contou com a colaboração do grande penalista de São Paulo Antônio Jos;e da Costa e Silva. Nunca é demasiado recordar-se do labor intelectual de Alcântara Machado como a célula-mater (ou bem mais do que isso) do Código Penal (ainda em grande parte vigente) brasileiro.
A propósito, consignou Nelson Hungria esse momento e monumento da cultura jurídica brasileira: Em belíssima oração pronunciada sobre Alcântara Machado (…), Cesar Salgado estranhou que houvesse um delegado brasileiro, em conferência proferida ante o mundo jurídico de Santiago do Chile, sobre o novo Código Penal, omitido dentre os nomes dos seus artífices o de Alcântara Machado. Como um dos membros da delegação brasileira já expliquei em carta ao ilustre orador o que realmente houve. Não se fez uma injustiça por amor à injustiça. A argüida omissão (em simples nota fornecida à presidência do 2º Congresso Latino-Americano de Criminologia, para instruir um voto de aplauso ao novo Código brasileiro) foi motivada pelo fundado receio de que Alcântara Machado, jamais conformado com o trabalho da Comissão Revisora, nem mesmo depois da promulgação do Código (a cuja paternidade timbrou em alhear-se), enjeitasse a homenagem prestada pelo Congresso do Chile, colocando-nos, a nós, representantes brasileiros, em situação de invencível constrangimento perante os demais congressistas. Ja disse e repito que é de todo verdadeira a comparação no sentido de que o Projeto Alcântara está para o Código Penal de 40 como o Projeto Clóvis está para o Código Civil (in Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo 1º, págs. 72 e 73 (nota), 5ªedição, Forense, Rio, 1955).
Quanto ao Código em si, conviria recordar-se observação de Magalhães Noronha (in Direito Penal, 15ªedição, São Paulo, Saraiva): Era e é um Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição de Motivos, acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás, o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas.
A propósito desse entrelaçamento, em especial das escolas clássica e positiva, a presidir a doutrina (ou a ideologia?) do Código, recordem-se palavras da própria Exposição de Motivos, firmada por Francisco Campos: Coincidindo com a quase totalidade das modificações modernas, o projeto não reza em cartilhas ortodoxas, nem assume compromissos impenetráveis ou incondicionais com qualquer das escolas ou das correntes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele os postulados clássicos fazem causa comum com os princípios da Escola Positiva.
Como de praxe (ou padrão?) dos códigos penais, o de 1940 tem uma parte geral e uma especial. Na parte geral são apresentados os princípios fundamentais do direito objetivo penal e, na parte especial, estão as figuras delituosas, distribuídas por capítulos que, por sua vez, estão subordinadas a títulos. O Código de 1940, que entrou em vigor em 1942, como é do conhecimento geral, chegaria a ser revogado por um Código Penal de 1969 (que deveria entrar em vigor em 1º de janeiro de 1970). O Código de 1969 teve o início de sua vigência prorrogado várias vezes e acabou sendo revogado em 1978, sem jamais (consigne-se o óbvio) entrar em vigência. Vigorando continuou (de certo modo repristinado) o Código de 1940, cuja parte geral seria alterada pela Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. Assim, o Código Penal vigente tem a Parte Geral (arts. 1º a 120) com a redação que lhe deu a citada Lei 7.209/84 e a Parte Especial (evidentemente, com alterações introduzidas no curso do tempo), basicamente com a redação original de 1940. A lei de 1984, que entrou em vigor seis meses após sua publicação (que se deu em 13 de julho de 1984), além de dar nova Parte Geral ao Código, estabeleceu que todas as referências a multa de (a que se seguia, obviamente, um valor), seriam substituídas, simplesmente, por multa.
Ademais, o mesmo diploma legal dispôs que, dentro de um ano, contado de sua vigência, a União, os estados, o Distrito Federal e os territórios deveriam tomar as providências necessárias para a efetiva execução das penas restritivas de direito (naturalmente, sem prejuízo de sua imediata aplicação onde já fosse possível). De outra parte, recorde-se que, de par com o Código Penal de 1940, foram editadas a Leis Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688, de 3.10.1941) e a Lei de Introdução do Código Penal e à Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.914, de 9.12.1941). A legislação extravagante penal é, contudo, bastante farta.
Assim, além do Código Penal, têm-se delitos previstos (e disciplinados) por eis específicas ou especiais (valeriam aqui ambos os adjetivos), algumas delas polêmicas ou, ao menos, suscitadoras de polêmicas e muitas discussões. Em tal ro, a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, dispondo sobre os crimes hediondos; Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, definindo os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, ou a Lei 8.176, de 8 de fevereiro de 1991, que, definindo crimes contra a ordem econômica, também cria o Sistema de Estoques de Combustíveis.
Diversas outras leis contêm figuras penais em seu bojo, como, por mera ilustração, são citadas, a Lei de Falência (L. 7.661/45), a Lei de Proteção ao Software (L.9.609/98) ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/90).
Presentemente, aguarda-se um novo Código Penal, que deverá estar à altura do seu tempo, ou melhor, da própria contemporaneidade.
Carlos Fernando Mathias de Souza
Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e professor titular da Universidade de Brasília