O conceito de bem jurídico penal difuso

A existência de uma espécie de bem jurídico de natureza coletiva é reconhecida na doutrina desde a formulação do conceito de bem jurídico. birbaum[1] já reconhecia que a lei penal já não apenas deveria possibilitar a livre coexistência dos indivíduos, mas servir também de forma imediata a fins sociais. Classificava, portanto, os bens, e por conseqüência os crimes, em naturais e sociais, uma vez que, no seu pensamento, os bens, em parte, já são dados ao homem pela natureza e, por outra parte, como resultado de seu desenvolvimento social.

Por sua vez, liszt[2] apontava a diversidade de formas dos bens jurídicos, decorrente da complexidade da própria vida e das coisas, processos e instituições que a integram e nela se movimentam. Sustentava a existência de portadores individuais dos bens, ao lado de portadores supra-individuais, entre os quais sobressaía o Estado como portador dos interesses coletivos.

Jescheck reputa que os titulares de um bem jurídico podem ser a pessoa individual ou a coletividade e apresenta a seguinte classificação dos bens jurídicos:

Hay bienes jurídicos de la persona individual (bienes jurídicos individuales) (v.g. la vida, la libertad y la propiedad), entre los que forman un subgrupo los bienes jurídicos personalíssimos (v.g. la integridad corporal y el honor), y bienes jurídicos de la colectividad (bienes jurídicos universales) (v.g. la proteción de los secretos de Estado, la seguridad del tráfico viario y la autenticidad del dinero)[3] (grifos nossos).

A evolução da doutrina vem acompanhando o desenvolvimento da Teoria do Bem Jurídico e a perspectiva social do crime, deixando de lado cada vez mais o exclusivo individualismo na concepção do Direito Penal, para reconhecer a importância do sistema social na caracterização do bem jurídico.

Não se trata de ignorar o interesse humano ou personalista na concepção do bem jurídico, conforme já assentamos neste trabalho, cujas garantias individuais estão constitucionalmente garantidas, mas sim reconhecer a evolução social e a importância da manutenção do sistema social, em que os indivíduos encontram sua realização e o desenvolvimento de sua personalidade, para a conceituação do bem jurídico.

Assim, muñoz conde e garcía arán[4] demonstram a existência de bens jurídicos individuais, que afetam diretamente as pessoas individualmente consideradas, e bens jurídicos coletivos, que afetam o sistema social. Como exemplos de bens jurídicos coletivos, contam a saúde pública, o meio ambiente, a organização política etc.

zaffaroni[5], embora entenda que não há diferença qualitativa entre bens supra-individuais e bens individuais, reconhece a existência de bens jurídicos de sujeito múltiplo, de forma que um não pode dispor do bem individualmente sem afetar a disponibilidade de outro.

Conforme podemos perceber, a idéia de bens jurídicos penais que não afetem diretamente os indivíduos, mas a coletividade de indivíduos e, portanto, interesses de relevância social, já é conhecida e aceita pela doutrina do Direito Penal, com mudanças de enfoque, conforme o momento histórico e a perspectiva da análise de cada doutrinador.

As modificações que o capitalismo e os modelos econômicos vêm enfrentando, entre eles, o modelo de Estado, diante das relações sociais em que vivemos, vêm despertando a doutrina penal para a proteção de interesses que não são individuais, mas metaindividuais ou pluriindividuais, atingindo amplos setores da população.

figueiredo dias demonstra a importância da proteção dos interesses metaindividuais para o presente e, principalmente, para o futuro do Direito Penal:

Uma convicção que só se reforçará recusando – como se deve recusar – uma ilegítima restrição da noção de bens jurídico-penais a interesses puramente individuais e ao seu encabeçamento em pessoas singulares, e aceitando antes a plena legitimidade da existência de bens jurídicos transpessoais, coletivos, comunitários ou sociais. É, em meu juízo, no aprofundamento e esclarecimento do estatuto desta classe de bens jurídicos – cujo reconhecimento, de resto, não afetará a natureza em última instância “antropocêntrica” da tutela penal – que reside, no futuro próximo, a tarefa primária da doutrina que continue a fazer radicar a função exclusiva do direito penal na tutela subsidiária de bens jurídicos.[6]

Reconhecida a existência dos bens jurídicos penais transindividuais ou metaindividuais, resta caracterizar a distinção entre os bens jurídicos penais coletivos e os bens jurídicos penais difusos, para então definirmos estes últimos e analisarmos as conseqüências penais da tutela dos interesses difusos.

mir puig reconhece expressamente a existência e a importância da proteção penal dos interesses difusos na atualidade:

Las modificaciones que entretanto ha ido experimentando el capitalismo e el modelo de Estado en nuestro ámbito cultural van determinando o exigiendo ciertos cambios en los bienes jurídicos del Derecho Penal. En la actualidad va abriéndose paso la opinión de que el Derecho Penal debe ir extendiendo su protección a intereses menos individuales pero de gran importancia para amplios sectores de la población, como el medio ambiente, la economía nacional, las condiciones de la alimentación, el derecho al trabajo en determinadas condiciones de seguridad social y material – lo que se llaman los intereses difusos (grifos nossos).[7]

A doutrina penal brasileira também já vem reconhecendo a existência de bens jurídicos coletivos e, principalmente, difusos e a sua importância para a tutela penal.

miguel reale júnior[8] aponta a existência de novas áreas no Direito Penal, como a defesa do meio ambiente, da justiça social e das divisas financeiras do País, consistindo em bens jurídicos a serem penalmente tutelados.

ivete senise ferreira, analisando os crimes ambientais, no mesmo sentido:

Na segunda metade do séc. XX, porém, novos problemas vieram solicitar a atenção do ordenamento jurídico pela constatação de uma progressiva degradação, e por vezes destruição, do meio ambiente, aliada à previsão das conseqüências catastróficas que isso acarreta para a vida do homem e dos outros seres da natureza, devendo ser por todos os meios obstada para garantir a sobrevivência da própria humanidade.

O Direito Penal, parte integrante desse ordenamento jurídico, não pode assim deixar de oferecer a sua contribuição para essa missão salvadora, justificando-se a sua intervenção não somente pela gravidade do problema e pela sua universalidade, mas também porque o direito ao meio ambiente, na sua moderna concepção, insere-se entre os direitos fundamentais do homem, os quais incumbem tradicionalmente ao Direito Penal defender, como ultima ratio.[9]

rené ariel dotti reconhece expressamente a proteção penal dos interesses coletivos, anotando que parte da doutrina inclui nessa expressão os interesses difusos usados como sinônimos dos coletivos. Realiza, entretanto, a distinção entre os interesses difusos e coletivos, acompanhando a visão de Ada Pellegrini Grinover, também no que se refere ao Direito Penal, sem que dessa distinção resulte antagonismos ou exclusões. Ao contrário, são interesses que, na sua visão, complementam-se para a proteção penal:

Não obstante, porém, a existência de uma “área de conflittualità” característica do âmbito dos interesses difusos, as concepções em torno dos fenômenos interesses coletivos e interesses difusos não são excludentes nem antagônicas. Com efeito, existem sempre no território de qualquer um dos interesses coletivos (preservação da vida, da integridade, da saúde, do ambiente, a tutela do consumidor, etc.) maiores ou menores núcleos de conflitos e divergências. Ao interesse geral da preservação da saúde pública, por exemplo, se manifestam também outros interesses coletivos como ocorre na limitação e expansão da propaganda e de fabricação de cigarros, de bebidas alcoólicas, etc.[10]

salomão shecaira, ao analisar os efeitos das transformações sociais no Direito Penal, também reconhece o interesse da proteção dos interesses difusos e coletivos:

Quer-se sublinhar que os fenômenos sociais produzem no âmbito jurídico uma relação dialética e interativa: a lei como resultado social, mas também como produtora de modificações. O homem, em seu espírito associativo, e pela utilização das tecnologias, pode, pela primeira vez na história da humanidade, pôr em perigo a própria escala humana, destruir a si próprio e se destruir enquanto espécie. Não é por outra razão que o Direito deve dar uma resposta a essas situações, permitindo modificações em alguns de seus dogmas tradicionais. É o Direito (e também o Direito Penal) fruto dessa situação. O interesse de proteção de direitos difusos e coletivos, e principalmente as alterações surgidas no âmbito dos crimes ambientais que conformam essa nova realidade do Direito Penal, que excepciona determinadas regras, garantem uma certa efetividade do próprio sistema punitivo.[11]

Conforme a doutrina referida, já está assentada a existência de bens jurídicos penais de natureza coletiva, restando agora efetuar a distinção também para o Direito Penal entre os bens jurídicos coletivos e os difusos, distinção de enorme valor para a futura perspectiva do Direito Penal, que sofrerá modificações de forma a acolher uma eficaz proteção contra a criminalidade dos interesses difusos.

Os bens jurídicos penais difusos são distintos dos interesses coletivos, no sentido utilizado no Direito Penal. Quando a doutrina penal cita bens jurídicos coletivos, está fazendo referência ao interesse público, ou seja, àqueles bens que decorrem de um consenso coletivo, em que há unanimidade social de proteção e forma de proteção. Os conflitos que podem gerar, portanto, ocorrem entre o indivíduo que pratica o crime e a autoridade do Estado efetuando a punição. Em relação aos bens jurídicos difusos, a conflituosidade de massa está presente em suas manifestações, contrastando interesses entre grupos sociais na sua realização. Dessa forma, o Estado realiza muitas vezes uma intermediação, ou melhor, dispõe uma diretriz para as condutas socialmente consideradas, ao tipificar tais condutas como crime, ou não tipificá-las, deixando outros ramos do Direito realizarem a solução.

Assim, propomos uma tríplice classificação dos bens jurídicos penais:

a) os bens jurídicos penais de natureza individual, referentes aos indivíduos, dos quais estes têm disponibilidade, sem afetar os demais indivíduos. São, portanto, bens jurídicos divisíveis em relação ao titular. Citamos, como exemplo, a vida, a integridade física, a propriedade, a honra etc.;

b) os bens jurídicos penais de natureza coletiva, que se referem à coletividade, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar os demais titulares do bem jurídico. São, dessa forma, indivisíveis em relação aos titulares. No Direito Penal, os bens de natureza coletiva estão compreendidos dentro do interesse público. Podemos exemplificar com a tutela da incolumidade pública, da paz pública etc.;

c) os bens jurídicos penais de natureza difusa, que também se referem à sociedade como um todo, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar a coletividade. São, igualmente, indivisíveis em relação aos titulares. Os bens de natureza difusa trazem uma conflituosidade social que contrapõe diversos grupos dentro da sociedade, como na proteção ao meio ambiente, em que os interesses econômico industriais e o interesse na preservação ambiental se contrapõem, ou na proteção das relações de consumo, contrapostos os fornecedores e os consumidores, na proteção da saúde pública, no que se refere à produção alimentícia e de remédios, na proteção da economia popular, da infância e juventude, dos idosos etc.

Notamos, enfim, que somente em face do caso concreto, da conduta praticada, poderemos afirmar quais dos bens jurídicos penais foram atingidos. Da mesma forma, existem condutas criminosas ofensivas a mais de um bem jurídico penal, o que só pode ser objeto de verificação diante do fato concreto.

[1] Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum begriff des Verbrechens. Apud COSTA ANDRADE, Manuel da. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p. 51-53.

[2] Apud ANDRADE, Manoel da Costa. Op. cit. p. 66-69.

[3] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4.ª ed. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 234.

[4] MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal: Parte General. 3.ª ed. Valência: Tirant Lo Blanch, 1998. p. 65.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1981. vol. 3, p. 242.

[6] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 74.

[7] MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: Parte General. Barcelona: Reppertor, 1998. p. 135.

[8] Novos rumos do sistema criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 214.

[9] A tutela penal do patrimônio cultural. São Paulo: RT, 1995. p. 67-68.

[10] A tutela penal dos interesses coletivos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 69-70.

[11] SHECAIRA, Sérgio Salomão. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e nossa recente legislação. In: GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. São Paulo: RT, 1999. p. 133.

* Gianpaolo Poggio Smanio
Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus, da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus e 2.º Promotor de Justiça da Cidadania de São Paulo

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