Relembrando e buscando apoio nas velhas estórias contadas e anotações deixadas pelo meu querido e inesquecível avô Antonio Campos Melo, pessoa simples, funcionário do antigo Departamento dos Correios e Telégrafos, de excelente índole, inteligente, honesto e, que gostava muito de escrever, encontrei nos seus alfarrábios manuscritos um fato policial que diz ele ter sido verídico ocorrido nos idos dos anos 30 do século passado, aqui na nossa simpática Aracaju, que por ser interessante passo então a contar, mudando os dados das figuras principais do enredo para não haver identificação, pois não sei dos seus herdeiros para pedir permissão para tal.
Consta que o Senhor João Limeira, comerciante próspero da antiga Aracaju, possuía uma sapataria situada na Rua João Pessoa, então via principal do centro da cidade.
João Limeira, além de ser um verdadeiro unha-de-fome, tinha a fama de esperto, de nunca ter sido enganado por alguém, de nunca ter perdido um centavo sequer para qualquer pessoa, razão pela qual, gabava-se de ter prosperado na vida, não só pela sua luta, pela sua capacidade, mas também por conta de tais atributos.
A vida de João Limeira resumia-se em quatro coisas, tão simplórias quanto acomodadas e estranhas pareciam ser: casa, trabalho, feira semanal e enterro de alguém a partir do seu respectivo velório… Não tinha nenhum vício nem tampouco se divertia ou levava sua mulher e seus filhos ao parque, praia ou cinema, não ia a lugar algum ou fazia algo diferente além dessas quatro atividades para não ver o dinheiro sair do seu bolso desnecessariamente.
Em casa muito economizava, regrava de todo jeito e reclamava gastos extras com a sua esposa, no comercio negociava sapatos mais baratos com menor lucro justamente para vender mais, na feira pechinchava de tudo e estava sempre na xepa, no resto de feira, enquanto que, para sua estranha diversão estava o velório e enterro de pessoas amigas, conhecidas ou não. Para o diferente e mão-de-figa cidadão o importante era morrer alguém para ele estar presente em condolências.
Ninguém entendia se era mania psicótica, quem sabe medo, trauma, superstição, ou mesmo grande virtude, qualidade, humanismo, mas o certo é que João Limeira era solidário com os familiares dos mortos, fosse quem fosse. Não perdia nenhum velório e acompanhava todos os enterros, de rico ou pobre que dele tivesse conhecimento dentro de Aracaju, fazendo até questão de pegar na alça dos caixões, ou seja, ajudar a carregar os defuntos nos trajetos até os cemitérios que por muitas das vezes eram feitos a pé.
Além de participar de todos os funerais o senhor João Limeira usava nesses eventos o indumentário que de melhor possuía. Vestia de maneira garbosa o seu lindo a alinhado terno preto italiano, além da sua camisa branca de seda chinesa e uma gravata azul-marinho portuguesa, sem esquecer-se dos seus sapatos pretos também importados que de melhor tivesse em sua loja e, do seu valioso relógio de bolso suíço cravejado de diamantes com grossa corrente de ouro 18 quilate que sempre estava no bolso do paletó e só era usado somente nessas ocasiões. Para se manter impecável nessa sua mania o senhor João Limeira não tinha medido esforços, era o esse o único meio que tinha saído dinheiro do seu bolso sem reclamação . Com esse rico vestuário de gala ele orgulhosamente e garbosamente desfilava na sua homenagem aos mortos.
Falavam que além da sua importante casa comercial, da sua boa residência situada na Colina de Santo Antonio e do seu invejável e sempre brilhante Ford preto 1930, o que o senhor João Limeira tinha de mais importante e valioso era esse indumentário usado nos enterros.
Buscando economizar combustível no sentido de não ter que voltar em casa para se aprontar quando houvesse um eventual falecimento ao seu conhecimento, todos os dias o João Limeira trazia para o trabalho e levava de volta para sua casa o seu estimado vestuário-mortuário.
Certo dia ele se esqueceu dessa obrigação, ficando por isso muito preocupado, tendo comentado com o seu funcionário de confiança:
– Estou rezando para que não morra ninguém hoje, pois caso contrário terei que voltar em casa ou pagar alguém para ir até lá buscar a minha roupa que me esqueci de trazer…
Ocorre que alguém, um vigarista quem sabe, estava ali próximo olhando os sapatos e ouvindo a conversa logo arquitetou um plano: Adquiriu um peru para impressionar e se fazer de confiança, indo em seguida até a residência do comerciante que todo mundo sabia onde ficava. Lá chegando se apresentou para dona Josefina como sendo porta-voz do seu marido que pediu para que o mesmo entregasse o peru que ganhara de presente e pegasse a sua roupa, vez que tinha ocorrido o falecimento de alguém. De pronto a mulher sem desconfiar de nada entregou tudo ao trapaceiro.
Só restou, além da raiva e da bronca do senhor João Limeira ao chegar em casa e constatar o golpe, o trabalho de ir até a Chefatura de Polícia para registrar a ocorrência e se contentar com o arremedo do prejuízo, comentando tristemente:
– Pelo menos ele nos deixou um peru para a ceia do próximo Natal!…
Passados de 30 a 40 dias, já próximo ao Natal, quando tudo se acalmou, o suposto vigarista completou o seu golpe combinando com o seu parceiro que foi até a residência do senhor João Limeira e lá chegando falou para dona Josefina:
– A Policia prendeu o ladrão que roubou a roupa do seu marido!… Está o maior reboliço lá na Chefatura e o seu João Limeira me mandou buscar o peru que o Delegado quer para o acerto de contas com o larapio…
– Graças a Deus. Eu já não aguentava mais de tanta repugnância e reclamação!… E mandando os seus filhos pegar no quintal o peru já bem gordo e bonito, entregou-o toda contente ao comparsa do trapaceiro.
O golpe ficou conhecido na época como o CONTO DO PERU e todos riam e gozavam do mão-de-figa engabelado, alguns até mais ousados grugrulejavam feito um peru quando viam o João Limeira, que por duas vezes perdeu para o mesmo criativo e inteligente vigarista.
Autor: Archimedes Marques (Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS) archimedes-marques@bol.com.br