Autor: Carlos Henrique Abrão (*)
O Brasil sempre viveu um movimento pendular favorável e contrário à privatização das empresas estatais, embora modernizasse o ambiente dos negócios por intermédio de parcerias público-privadas, emprestando agilidade, funcionalidade e localizando os investimentos essenciais, mormente nas áreas de infraestrutura. Entretanto, as sociedades de economia mista apresentam uma disfuncionalidade peculiar ao poder de controle e os conflitos de interesses que se consubstanciam entre a vontade da maioria e da minoria que detém o poder de voto e voz nas assembleias.
Cabe ponderar que, a partir da Lei 11.101/05, o aspecto nevrálgico vai na direção da não submissão das sociedades de economia mista ao regime de recuperação judicial ou estado falimentar. Alguns ponderam que, se tratando de sociedade de economia mista que exerce atividade empresarial, nada perturbaria fosse sujeita às diretrizes da insolvência, mas fato concreto dentro de nossa realidade, seria o mesmo que se atribuir ao controlador a perspectiva de não honrar com seus compromissos.
Desfalcada a empresa por intermédio de condutas e comportamentos reputados ilícitos e desconformes à criação da entidade, qual deveria ser o papel do controlador a cargo do órgão regulador?
E se batermos na mesma técnica da não sujeição da empresa à falência, caracterizada a anomalia, irregularidade e vultoso prejuízo perpetrado no mercado, listada a companhia em bolsa, o mínimo que caberia ao agente fiscalizador seria obrigar ao controlador de, assumindo o seu papel, injetar recursos à altura do dano praticado.
E muitos ficariam a perguntar, mas se o dano é coletivo, indeterminado e no momento não se traduz numa expressão aritmética, evidente que, se há o prejuízo, seu cômputo deve estar nas demonstrações financeiras e no balanço da companhia. Fidedigno ou não, é questão de fiscalização, a fim de não ocorrer pulverização dos minoritários e debandada geral dos investidores.
De ofício ou acionado o órgão regulador, caberia determinar que o controlador exasperou seu poder, elegeu para os cargos pessoas sem aptidão e, com isso, causou danos materiais enormes à consecução e continuação do próprio negócio societário.
E a realidade investe a entidade responsável pela fiscalização de, rapidamente, determinar que o controlador reponha junto ao caixa da empresa e que isso se traduza num fundo de composição e partilha dos prejuízos.
A interpretação se coaduna com o artigo 117 da Lei de Sociedades Anônimas, dentro do âmbito do poder de controle, na medida em que é dele que parte a indicação dos diretores e administradores sem injunção alguma dos minoritários.
A descrição do abuso é meramente enumerativa, e não taxativa, sendo emblemático o julgamento do REsp 798.264-SP, relatora designada ministra Nancy Andrighi, cuja interessante análise permitiu o processamento da ação enfatizando que o dano causado pelo abuso de poder do acionista controlador poderia ser fixado em liquidação de sentença.
O modelo contemporâneo de companhias abertas tem sido mais fiel ao controle plural, de várias empresas ou fundos de investimento, ao contrário do que sucede na sociedade de economia mista, na qual a direção encerra posição da municipalidade, do estado e da União, de acordo com a respectiva definição feita pela Constituição Federal.
A disfunção do poder de controle gera, por conseguinte, o dever de recompor o prejuízo junto à companhia e não se eximir da própria responsabilidade, mais ainda, que a obrigatoriedade do provisionamento poderá suceder em virtude de ações judiciais aforadas no exterior. Bem por isso, se a determinação da entidade reguladora não for cumprida, a ela cabe, ainda, a faculdade de suspender os direitos inerentes ao poder do acionista majoritário, de não votar em assembleia ou indicar seus representantes.
A multifacetária posição de estrangulamento e concentração de poderes em mãos do acionista controlador, principalmente em sociedades de economia mista, tem sido um motivo de preocupação e redesenho nas análises, debates e todos os foros nos quais se tenta reduzir a força de imposição do acionista dominante.
Deveras, antes de mais nada, é preciso destacar que uma posição dessa natureza, assumida pelo órgão regulador, não será cumprida espontaneamente pelo acionista controlador, eis que se socorrerá da via judicial para aplacar a agilidade ou tentar minimizar a repercussão que isso geraria nas dinâmicas da companhia.
Enquanto o poder controlador é o primeiro a querer a arbitragem para solucionar seus impasses e levar descontentes para o juízo arbitral ou, dependendo da quantidade de ações, ao recesso, quando a ele diz respeito a obrigação e incumbe a responsabilidade, é o primeiro a se arvorar no embate jurisdicional a fim de que o tempo trabalhe favorável à sua tese e não tenha que suportar os ônus de seus desmandos.
De qualquer modo, se o órgão regulador se omitir, é ele o único responsável pela situação caótica do mercado, mas, se enxergar que é fundamental uma autonomia e liberdade para intencionar interesse coletivo, então o resultado prático será eficiente e efetivo.
A maioria das sociedades de economia mista, quando pratica abuso, desvio ou excesso de poder, tem em sua mente a certeza da impunidade, a demora segura que acarreta o âmbito administrativo da decisão e, finalmente, saberá levar à Justiça qualquer contrariedade com o escopo de não se abater ao longo desse questionamento.
Essa análise procura demonstrar que o acionista controlador de uma sociedade de economia mista, ao contrário de um majoritário de empresa privada, não pode sair ileso, impune ou incólume de jornadas sombrias, negras e tenebrosas para os investidores e minoritários. Não estamos no campo abstrato do estado controlador, da impessoalidade ou de um tempo certo e determinado de gestão, mas falamos de forma concreta, direta e indicativa daquele que impôs sua vontade, exerceu seu poder e não visava aos interesses da companhia, mas sim dele próprio, de um grupo ou fez sangrar empresa estatal no intuito de atingir determinadas pessoas envolvidas no desvio e nas benesses pessoais.
Em síntese, se na modernidade as cortes de Contas não agem com agilidade, se a Controladoria-Geral da União lava as mãos e todos ficam no silêncio eloquente, sem uma reforma radical da legislação e a punição do controlador das sociedades de economia mista, as previsões futuras colocam em risco o modelo, sua metodologia e as reações negativas do colapso de uma culpa sem agentes não responsabilizados.
Autor: Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg (Alemanha). Tem doutorado pela USP e especialização em Paris.