O crime de roubo seguido do crime de resistência: absorção ou desígnios autônomos?

Renato Flávio Marcão e Flavio A. M. Siqueira

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2). Algumas considerações acerca do crime de resistência; 2.1). Objetividade jurídica; 2.2). Sujeitos do crime; 2.3). Tipo objetivo; 2.4). Tipo subjetivo; 2.5). Consumação e tentativa; 3). A questão do roubo; 4). Conclusão.

1). Introdução

O artigo visa esclarecer um dos temas mais complexos acerca do crime de resistência, qual seja, a verificação que se ocorrer à abordagem, logo após o roubo.
Cumpre concluir se teremos um desdobramento do nexo de causalidade ou um caso de desígnios autônomos.

2). Algumas considerações acerca do crime de resistência

O atual Código Penal estatui um capítulo destinado à tutela penal da Administração Pública, protegendo-a da atuação do particular que visar mediante meios obtusos fraudar as atividades públicas e dessa forma lesar o desenvolvimento do mecanismo estatal, obtendo um proveito para si ou para outrem, sendo essa a regra geral.
O tipo penal do artigo 329, do Código Penal diz ser crime o oferecimento de resistência, ao considerar modalidade típica o ato de: “Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio”, estabelecendo pena de detenção, de 2 (dois) meses a 2 (dois) anos. Se o ato, em razão da resistência, não se executa, a pena será de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, consoante determina o § 1º, sendo certo que a teor do doisposto no § 2º, as penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

2.1). Objetividade jurídica

A tutela penal conferida a Administração Pública visa a manutenção da legalidade, licitude, prestígio, moral e do dever de probidade. O que se verifica ao traçarmos um paralelo com o direito administrativo é que a proteção penal é conferida justamente para a concecussão da maioria dos princípios constitucionais administrativos que regulam o desenvolver estatal. A atividade administrativa é considerada em todos os níveis e subdivisões inerentes a administração indireta, que dá tenacidade e vivacidade ao aparato estatal.

Luiz Régis Prado apresenta boa lição acerca do objeto e objetivos da tutela estatal a si próprio, asseverando que: “A tutela penal, in casu, visa assegurar o normal funcionamento da Administração Pública, assegurando o exercício da autoridade estatal, o prestígio da função pública e a segurança dos agentes públicos, bem como daqueles que lhe prestam auxílio, para a consecução dos atos de ofício. Evidentemente, o ilegal insurgimento contra o exercício funcional da Administração Pública resultaria no desencadeamento do caos social, em face da degradação do poder estatal; daí a necessidade da proteção penal” [1].
O ilícito penal é reclamado pelas atividades estatais porque as sanções administrativas e civis não pareceram ser suficientes para conter as lesões aos interesses públicos tutelados.

2.2). Sujeitos do crime

Por se tratar de crimes praticados por particular contra a Administração, trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, inclusive o próprio funcionário público, mas se praticado durante o exercício de suas funções o delito poderá ser outro.
O sujeito passivo será sempre o Estado, que é o titular, maior interessado na manutenção da regularidade da administração pública e no justo cumprimento das ordens dele emanadas. De forma subsidiária podemos cogitar do funcionário público no exercício de suas funções, que está incumbido da prática do ato de execução, e aquele que acompanha o funcionário no cumprimento do comando, o qual o particular forçosamente visa obstar por via da ameaça ou violência.
Convém a nós lembrarmos que o conceito de funcionário público restringe-se àquele que possui competência para a prática do ato executório, na elasticidade do conceito [2] do artigo 327, do Código Penal. Julio Fabbrini Mirabete lembra que: “É necessário que o funcionário seja competente para a prática do ato de ofício, já que o dispositivo se refere a ordem legal, e um dos requisitos desta é que tenha o executor atribuição para praticá-lo. É necessário para a caracterização do crime que o funcionário esteja exercendo suas funções quando o agente se opõe à execução do ato” [3].
Nesse diapasão, lembremos que o funcionário deve ter competência para o ato, sendo que esta se subdivide em competência delegada em virtude da atividade pública e competência no momento da ocorrência da resistência.
Tratando do tema em apreço o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo já decidiu que: “É necessário para a caracterização do crime do art. 329 do CP que o funcionário esteja exercendo suas funções quando o agente se opõe a execução de ato legal” (RJDTACRIM 2/144).

2.3). Tipo objetivo

A conduta encartada como afrontosa a lei penal é a de oferecer oposição ao ato legal de execução, com a demonstração de força por via de violência ou ameaça. O foco da conduta ilícita está na demonstração do agente com a insatisfação na execução do ato e também que esta provenha de forma comissiva, dirigida diretamente contra o agente público encarregado do cumprimento do ato.
A ação positiva deve revelar uma violência ou ameaça, pois caso revele somente uma forma omissiva, com uma resistência pacífica, sem as elementares agressivas, nos depararemos com a figura penal da desobediência (artigo 330, do Código Penal). Assim, nos remetemos à lição de Julio Fabbrini Mirabete, cuja lição é no sentido de que: “A oposição à prática do ato legal deve ser atuante e positiva, não a configurando a resistência passiva, a passividade do agente, a atitude que, embora possa ser tendente a impedir o ato legal, não se configura em violência ou ameaça (RT 509/343, 601/332, 356/307, JTACrSP 74/261; RF 264/344). Nesse caso poderá ocorrer o crime de desobediência (RF 225/329)”[4].
A vis corporalis pode se dar com o emprego de qualquer instrumento ou meio apto a gerar na vítima lesões, ferimentos, independendo se aconteceu ou não, pois, basta a tentativa. A ameaça não se reveste aqui da ‘promessa de mal injusto e grave’, característica do artigo 147, do Código Penal, aparecendo essa vis moralis por via de gestos, palavras.
Ainda, interessante é relevarmos que a resistência deve ocorrer no exato momento da consumação do ato legal, que por via de sua conduta o particular tenta barrar, impedir, parar, coagir para infiltrar o temor e afastar a ação estatal lícita. Caso ocorra antes do início do ato ou a posteriori, com vistas a responder ao ato legal, como via de represália, teremos um outro crime (desacato, injúria, difamação), mas o certo é que não teremos a incidência da resistência, justamente pelo ato ter se consumado.
Se o ato não estiver revestido da mais estrita legalidade, terá o particular o direito de resistir ao mesmo, pois, haverá frontal violação ao princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, II, CR, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Então, surge a norma excludente da antijuridicidade da legítima defesa (artigos 23, inc. II, e 25, do Código Penal) contra ato que foge a legalidade e, portanto, arrepia a lei e a ordem jurídica como um todo, sempre fazendo a ressalva de que tudo o que excede os patamares da normalidade para afastar a infringência estatal, configura o excesso doloso ou culposo, que ganha forma e capitulação no estatuto repressivo pátrio (artigo 23, § único, do Código Penal). A conduta é plenamente fundamentada no alicerce basilar da natureza humana, o de o homem lutar contra tudo aquilo que injustamente reprime.
São comuns os casos de resistência contra a efetivação de prisão em flagrante, cumprindo assinalar, com apoio na jurisprudência, que “sendo o flagrante provocado, o que torna impossível a consumação de um crime, que, assim, não se materializa (Súmula 145 do STF) não se caracterizam os crimes dos arts. 329, 330 e 331 do CP, na resistência ilegal à prisão. Também não se caracteriza o do art. 129 do CP, quando, nas mesmas circunstâncias, o agente, repele, ao abrigo do artigo 25 do CP, a violência física de agente da Administração que, sem esteio legal, o pretende subjulgar, para conduzi-lo preso” (RT 686/370).

2.4). Tipo subjetivo

O dolo do agente aqui é o de resistir, apresentar oposição, defender na tentativa de afastar o ato estatal lícito mediante violência ou grave ameaça empregada contra o funcionário público ou seu assistente, sabendo dessa condição e da legalidade do ato, que é o elemento especial do injusto. O que deixa nítido que a forma culposa nos conduz ao erro penal do artigo 20 e ss., do Código Penal, afastando a incidência do tipo.
Estes métodos empregados devem ser aptos para tentar embargar a ação estatal sobre o agente. Conforme elucida Julio Fabbrini Mirabete, ao cuidar da conduta praticada por pessoa embriagada: “Quanto à resistência de pessoa embriagada, há duas posições: a primeira é a de que o embriagado não age com o dolo específico do delito; a segunda é a de que, além de tudo, basta o dolo genérico para a caracterização do crime. Deve prevalecer aquela que não exclui o dolo ou a culpabilidade a embriaguez voluntária ou culposa, como expressamente o prevê o artigo 28, II, do CP”.[5]
Não se exige aqui o dolo específico, como pugna uma parte da doutrina, mas sim o dolo genérico, dessa sorte, o indivíduo embriagado poderá ser sujeito ativo do crime. Interessante ponderarmos que essa embriaguez restringe-se àquela voluntariamente procurada pelo agente, afastando aqui a embriaguez fortuita ou proveniente de força maior, que configurara causa excludente da culpabilidade, nos termos do artigo 28, do Código Penal, pois conforme se tem entendido, é “suficiente à configuração do delito de resistência conduzir-se o agente com dolo genérico. Assim, irrelevante à consumação do crime, encontrar-se o agente em estado de ebriedade” (JTACRIM 74/385). “Dispondo a lei penal que a embriaguez voluntária ou culposa do agente não exclui a responsabilidade penal, não se pode, com base nela, absolver o acusado do delito de resistência. Mesmo porque nem dolo específico exige o crime, contentando-se com o genérico” (JTACRIM 46/270).

2.5). Consumação e tentativa

Segundo a lição de Luiz Régis Prado: “O delito é formal e se consuma no momento em que o agente pratica a violência ou ameaça contra o funcionário ou seu eventual assistente, com o escopo de que não seja realizado o ato de ofício, não se exigindo que o agente alcance a meta optata, bastando que a conduta seja apta a atingir tal fim”.[6]
A tentativa, por se tratar de crime formal, somente será possível nos casos em que a ameaça se dê por escrito, sendo interceptada antes de chegar ao conhecimento do funcionário público incumbido da tarefa ou seu auxiliar, mas nunca será possível na hipótese de violência, pois o ato de tentar praticar a violência física já configura o delito, que é formal.

3). A questão do roubo

O roubo é um crime contra o patrimônio descrito nas linhas do artigo 157, do Código Penal. Neste delito, o agente se vale do emprego de violência, da grave ameaça ou de meio que impossibilite a defesa do ofendido para alcançar a inversão da posse e ter a coisa alheia móvel como sua, mediante subtração.
Destarte, verificamos que o crime de roubo tem como elementar a violência (em sentido amplo), o que o diferencia do furto qualificado, onde esta é empregada contra a coisa (em algumas hipóteses). Ao contrapormos com o delito de resistência, verificamos o emprego da violência em ambos, mas com finalidades diferentes, pois, neste último ela é utilizada para contrariar a prática de ato legal, e no primeiro para que o medo eive os sentimentos da pessoa e esta entregue a coisa ao agente.
O problema surge quando a resistência é empregada após a consumação do roubo. Seria esta um desdobramento do nexo de causalidade ou um delito autônomo?
Os defensores da primeira teoria entendem que há um desdobramento no uso da violência, com esta resistência se dando para manter a posse da coisa e não autonomamente, com a resistência sendo absorvida pelo roubo, pois foi meio para o fim.
Nos ensina Damásio E. de Jesus que: “Ocorre à relação consuntiva, ou de absorção, quando um fato definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime” [7]. O mais grave vai absorver todos os crimes que ocorreram antes do mais grave, durante o Iter Criminis.
Há entendimento no sentido de que “a resistência oposta pelo agente de roubo aos policiais que, o tendo surpreendido em plena execução desse crime, passaram a persegui-lo constitui mero desdobramento da violência empregada para a violação patrimonial, e, conseqüentemente, o delito do art. 329 fica absorvido pelo do art. 157, do CP, em virtude do concurso aparente dessas duas normas, só aplicável, entretanto, à hipótese de tentativa” (TACrimSP, RT 704/358 e TACRimSP, JTACRIM 67/344), sendo certo que a “resistência subseqüente a roubo, mormente o impróprio previsto no art. 157, § 1º, CP, é desdobramento da violência, caracterizadora do delito inicial, não merecendo, assim apenação autônoma” (JTACRIM 58/275).
A outra corrente, a qual entendemos ser correta, defende que há um desdobramento no nexo de causalidade, uma vez que a inversão da posse se operou com o agente empregando a violência ou grave ameaça contra autoridade, com vistas a manter a sua posse, mas primordialmente para a manutenção do status libertatis, que se encontra em vias de ser perdido com a sua prisão em flagrante delito.
O desdobramento ocorre porque a violência visa evitar a autuação em flagrância delitiva e a manutenção da coisa, e não como no roubo, onde se objetiva a obtenção da posse. Com a consolidação da posse em suas mãos, ocorrendo após a subtração e a violência posterior contra a imposição policial, denota o dúplice caráter da violência utilizada e o cúmulo das penas, nos termos do artigo 69, do Código Penal.
Esse entendimento tem sido adotado em diversas decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde se tem ressaltado que “a violência empregada pelo assaltante para resistir à prisão não se confunde com a utilizada para a prática do roubo, configurando-se, pois, o delito do art. 329, § 1º, do CP e justificando a aplicação de penas cumulativas” (RT 560/352). Em v. Acórdão do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo ficou consignado que “se a ação do infrator, resistindo à intervenção da Polícia, teve lugar muito tempo depois da subtração da res, quando com ela procurava fugir, evitando sua prisão, configurado resulta o delito do art. 329 do CP” (RT 577/389).

4). Conclusão

A absorção do crime de resistência, ao nosso ver, não se opera aqui porque são lesadas duas objetividades jurídicas distintas, a saber: a administração pública e o patrimônio; em momentos diferentes e por razões diversas, embora seqüenciais no tempo. Assim, entendemos que havendo resistência de molde a configurar a conduta típica, após o crime de roubo, a questão jurídica proposta se resolve pela regra do concurso de crimes, segundo a regra do cúmulo material (art. 69 do Código Penal), indo além do permitido no artigo 329, § 2º, do Código Penal.

NOTAS

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP. 2001. p. 516.
Sobre o conceito de funcionário público vide nosso artigo: “O Funcionário Público visto pelo Direito Penal”, in www.direitonet.com.br, onde dissertamos sobre o tema.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª Ed. Atlas. SP/SP. 2001. p. 361.
MIRABETE, Julio Fabbrini, Op. cit. p. 362.
MIRABETE, Julio Fabbrini; Código Penal Interpretado; 1ª Ed; Atlas; São Paulo/SP; 1999; p. 1765.
PRADO, Luiz Régis; Op. cit. p. 520.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 22a Ed., São Paulo: Saraiva, v. I, Parte Geral; 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 22a Ed., São Paulo: Saraiva, vol I, Parte Geral; 1999.
______________________; Código Penal Interpretado. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, 16ª ed., São Paulo: Atlas, vol. III. 2001.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. IV, 2001.
SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. O Funcionário Público visto pelo Direito Penal (Artigo). www.direitonet.com.br. Dezembro/2002.

Sobre os autores:

RENATO FLÁVIO MARCÃO:
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Penal; Especialista em Direito Constitucional; Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal; Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP; Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia; Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP); Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001).

FLÁVIO AUGUSTO MARETTI SIQUEIRA:
É aluno do Curso de Direito da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), Estagiário Credenciado do Ministério Público do Estado de São Paulo atuando junto a Promotoria de Justiça Criminal de Ribeirão Preto. É o atual Presidente do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processo Penal (IEDPP) da Universidade, proferiu palestras como “Consentimento do Ofendido” (I Semana de Estudos de Direito Penal), “Princípio da Legalidade e suas derivações na esfera penal” e “Teorias do Dolo nos Delitos”, tendo ainda, participado de inúmeros congressos, simpósios, palestras, cursos e escrito alguns artigos jurídicos.

E-Mails dos autores: rmarcao@terra.com.br e flaviomaretti@yahoo.com

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