A mera curiosidade me levou a ler a Lei n.º 10.671, de 16 de maio de 2003, batizada de “Estatuto de Defesa do Torcedor”. Tudo começou, insisto, por pura curiosidade (mesmo porque há bastante tempo o desempenho do meu time de futebol me impede de continuar a ser torcedor); e acabou na perplexidade que, despretensiosamente, resolvi compartilhar, mais para suscitar o debate do que, propriamente, para firmar opinião, até porque estou torcendo muito para que este debate me faça virar a casaca em relação ao que inicialmente passo a sustentar.
A questão que me angustia é a seguinte: o Estatuto do Torcedor, em seu art. 39, definiu infração penal?
Vejamos o que dispõe, em seu caput e no § 1o:
“Art. 39 – O torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores ficará impedido de comparecer às proximidades, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a um ano, de acordo com a gravidade da conduta, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.
§ 1o – Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de cinco mil metros ao redor do local de realização do evento esportivo.”
Lendo assim, temos a impressão de que parece uma infração penal, que veio definida de forma tímida, sem ser cominada pena privativa de liberdade, mas, de forma inovadora, apenas pena restritiva de direitos, estabelecida com a técnica da cominação específica, que foge à nossa tradição para este tipo de pena (muito embora já se tenha assim tentado fazer recentemente, na polêmica Lei de Tóxicos, vetada em sua parte material pelo então Presidente da República).
O indício mais significativo de que se trata de uma infração penal vem logo a seguir, no § 3o do aludido dispositivo, que assim estabelece:
“§ 3o – A apenação se dará por sentença dos juizados especiais criminais e deverá ser provocada pelo Ministério Público, pela polícia judiciária, por qualquer autoridade, pelo mando do evento esportivo ou por qualquer torcedor partícipe, mediante representação.”
Aí vem, então, a perplexidade: o Juizado Especial Criminal vai “apenar” uma conduta não criminosa?
Da conjugação do § 3o com o caput do art. 39, a conclusão que me parece menos ilógica é no sentido de que ali está prevista uma infração penal.
Sim porque, para que esteja sob a batuta do Juizado Criminal, só em se tratando de infração penal. Difícil se supor o Juiz Criminal “apenando” ilícito civil!
A figura é por demais teratológica, sob todos os aspectos.
Em primeiro lugar, no que tange a conveniência de se criar uma infração penal sob a definição de “provocar tumulto”. Em segundo lugar, o próprio convívio desta infração penal, no plano do concurso de crimes, com outras correlatas, como a do art. 286 do Código Penal, mostra-se promíscuo. Neste diapasão tem-se que o concurso será real e não aparente, tendo em vista a parte final do caput do art. 39 em comento.
Atraindo-se a atuação do Juizado Especial Criminal, parece-me que haver-se-á de aplicar todo o seu procedimento, desde o termo circunstanciado, havendo espaço, obviamente, para a proposta de transação penal.
Aí surge uma outra teratologia da Lei. É que, como se pode ver do epigrafado § 3o do art. 39, parece ter o Legislador conferido à “polícia judiciária (…), qualquer autoridade, pelo mando do evento esportivo (SIC) ou por qualquer torcedor partícipe, mediante representação” a legitimidade para, junto com o Ministério Público, “provocar” a atuação do Juizado Especial Criminal.
A propósito: quem ou o quê é este “mando do evento esportivo”, pretenso legitimado a “provocar” a atuação do Juizado?!.
Em se delineando a figura como infração penal, é lógico que, por um imperativo constitucional (art. 219, I, da Constituição Federal) só o Ministério Público é quem poderá “provocar” a atuação do Juizado Criminal – leia-se: oferecer denúncia, propor a transação penal etc. A legitimação pretensamente conferida aos demais é inconstitucional, exceto no que tange à Polícia Judiciária, mas delimitada a sua missão de confeccionar o termo circunstanciado e encaminhá-lo ao Juizado, para formar a opinio delicti do Ministério Público.
Qualquer outra autoridade, o tal “mando do evento esportivo” e o “torcedor partícipe” – que, por óbvio, não é o torcedor que porventura foi o autor da infração penal em destaque ou dela participou direta ou indiretamente, quer na forma do caput, quer na forma do § 1o – quando muito poderão formular a notitia criminis, dando ensejo à confecção do termo circunstanciado.
Seguindo esta linha, há uma outra questão a ser resolvida: o que se vai entender por “representação”, como colocado na parte final do malsinado § 3o? tratar-se-ia de uma infração penal cuja ação penal pública dependeria de representação?
Penso que não e isto até nem faria sentido no rol dos legitimados e dos pretensos legitimados constantes do § 3o. É claro que o Promotor não iria representar a ele mesmo, muito menos a autoridade policial. Só restariam o tal “mando do evento esportivo”, qualquer autoridade ou o “torcedor partícipe”.
Mas, antes de examinar isto, reflitamos: trata-se de um crime ou de uma contravenção? Sabe-se que a classificação é orientada pelo art. 1o da Lei de Introdução ao Código Penal que, todavia, não aborda uma infração penal punida apenas com pena restritiva de direitos stricto sensu. Por uma questão de bom-senso, penso que a analogia recomenda que classifiquemos esta monstruosa figura criada pelo art. 39 da Lei 10.671/03 como contravenção penal, já que não é cominada pena privativa de liberdade, não havendo porque classificá-la, em virtude disto, como crime. Lato sensu, a multa – que pode vir isoladamente punindo uma contravenção – não deixa de ser uma pena restritiva de direitos e, neste contexto, uma infração penal punida apenas com outra pena restritiva de direitos deve ser tida como contravenção.
Partindo desta ordem de idéias, podemos afirmar que a expressão “representação” acima destacada não foi empregada em seu sentido técnico, posto que todas as contravenções são de ação penal de iniciativa pública incondicionada, devendo ser entendida a tal representação como notícia crime, quando apresentada por “qualquer autoridade”, pelo “torcedor partícipe” ou pelo tal “mando do evento esportivo” (se conseguir fazê-lo).
Essas as primeiras impressões que tenho a ousadia de registrar, repito que mais para suscitar o debate, confessando de antemão que torço muito para virar a casaca e poder acreditar que não se trata de uma infração penal, mas uma comissão ao Juizado Criminal da tarefa de distribuir seus serviços sociais a ilícitos civis.
MARCELO LESSA BASTOS
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal e de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos, Mestre e Especialista em Direito Público.