O Exame de Ordem como um meio de proteção da sociedade

Por Miguel Reale Júnior,
advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP

A vida desenrola-se regida pelo Direito. O velho brocardo “onde está a sociedade está o direito” é absolutamente verdadeiro, pois as relações entre as pessoas e entre estas e o Estado são reguladas por regras jurídicas.

O Código Civil enuncia que toda pessoa é capaz de direitos e deveres e a Constituição lista os direitos e deveres individuais, além dos direitos sociais e políticos. Assim, a vida de qualquer cidadão está regida pelo Direito.

Conhecer esses direitos, bem como os deveres decorrentes, é essencial na vida comum de todo cidadão. Esclarecimento acerca dos limites do exercício de direitos e do cumprimento dos deveres é tarefa própria do advogado, ao qual cabe bem diagnosticar a situação concreta apresentada e dar a orientação correta. Um conselho certo evita prejuízos, afasta conflitos desgastantes e permite a conciliação.

Se for necessário pleitear em juízo a satisfação de uma pretensão legítima, é preciso enquadrá-la na ação judicial apropriada à espécie perante o juízo competente e de forma compreensível, tarefa essa exclusiva do advogado. O advogado realiza, portanto, trabalho de interesse geral, como veículo de efetivação da justiça, a ser alcançada pelo modo menos gravoso.

Assim, para advogar é necessário estar o formando devidamente qualificado, não bastando ter sido aprovado por uma das 1.174 faculdades existentes no País, que não formam juízes, promotores, delegados, advogados, mas apenas bacharéis em Direito em cursos, na sua maioria, cada vez mais deficientes, que não buscam excelência, e sim clientela e lucro.

Em Portugal editou-se o Regulamento Nacional do Estágio, em vista da diminuição generalizada da qualidade do ensino, com a degradação da profissão do advogado, razão pela qual cabe à Ordem zelar pela formação e valorização profissional, obrigando-se ao bacharel estagiar por dois anos em escritório de advocacia, para garantir conhecimento adequado de aspectos técnicos e éticos da profissão, ao final dos quais é submetido a exame de avaliação.

Na França o bacharel em Direito presta concurso para ser admitido em curso organizado pela Ordem dos Advogados com duração de 18 meses, durante os quais estuda o estatuto e a ética profissional, além de temas jurídicos, com período final de estágio junto a um advogado, após o que se submete a exame.

Na Itália o bacharel em Direito deve realizar dois anos de prática forense após se laurear, tempo após o qual pode vir a prestar exame de habilitação profissional.

No Brasil há hoje 700 mil advogados. Quando do recadastramento em 2004 havia 420 mil, o que significa que o número de advogados cresceu 70% em sete anos, mesmo com a exigência do Exame de Ordem. Nas 1.174 faculdades de Direito há 700 mil estudantes. Surgem com diploma de bacharel em Direito na mão cerca 100 mil pessoas por ano.

Em 1963 criou-se o Exame de Ordem, que poderia ser substituído por estágio do ainda estudante em escritório de advocacia cujo titular tivesse cinco anos de inscrição na Ordem.

Na ditadura, em 1972, sendo ministro da Educação o coronel Passarinho, extinguiu-se o Exame de Ordem e se permitiu que o estágio fosse realizado nas próprias faculdades, que atestariam o aproveitamento do aluno para inscrição na Ordem dos Advogados. Criava-se nova fonte de renda para as faculdades particulares e desprestígio para a classe que constituía o bastião de resistência democrática.

Em 1994, novo Estatuto da Ordem reinstalou a exigência do exame para admissão nos quadros da advocacia. Agora, um bacharel reprovado interpôs, por meio de advogado, mandado de segurança no qual argumenta ser inconstitucional o Exame de Ordem, pois afronta o artigo 5.º, XIII, da Constituição, que garante o livre exercício de trabalho e de escolha profissional. Na verdade, esse inciso condiciona o livre exercício de trabalho ao atendimento das “qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

A arguição de inconstitucionalidade foi rejeitada em primeira e segunda instâncias, mas agora chega ao Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário. O parecer do Ministério Público Federal é pela acolhida da inconstitucionalidade do Exame de Ordem, pois seria uma forma de limitar um mercado de trabalho reconhecidamente saturado, havendo perigosa tendência a reserva de mercado.

Em gritante contradição, o parecer do Ministério Público admite a “notória deficiência do ensino jurídico no Brasil” e propõe, reeditando a solução do coronel Passarinho ao tempo da ditadura, a adoção dos Núcleos de Prática Forense, previstos em portaria e resolução do Ministério da Educação, de responsabilidade das próprias faculdades, com professores do curso.

Contraditoriamente, o parecer confessa a necessidade de se restringir o acesso à profissão de advogado mediante a chancela da OAB, a fim de que da atuação de bacharéis não decorram “riscos à sociedade ou danos a terceiros”. Propõe, todavia, que essa chancela se faça mediante impossível supervisão pela Ordem dos Núcleos de Prática Forense mantidos pelas próprias faculdades com seus professores. Ora, nenhuma faculdade vai considerar o seu bacharelando inapto para o exercício da advocacia: é a raposa cuidando do galinheiro. O núcleo gerará renda e passará também a ser fonte de falso prestígio da faculdade.

Se o Ministério Público, com razão, reconhece a possibilidade de risco para a sociedade com o ingresso automático de bacharéis na OAB, é evidente que a exigência de qualificação por via do Exame de Ordem não pode ser vista como expediente de reserva de mercado.

É, sim, um meio de proteção da sociedade, do interesse de todos, do Judiciário e da própria democracia, pois a OAB tem por finalidade a defesa da ordem constitucional e sua força promana do prestígio social, a não ser comprometido com a inclusão de manifestos incompetentes em seus quadros.

ouvidoria@usp.br

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