O fenômeno alopoiético no contexto do sistema penal brasileiro

(*)Guilherme da Rocha Ramos

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceitos Basilares; 2.1. Autopoiese & Alopoiese; 2.2. A (Sub)Cidadania Brasileira; 3. Relação Substancial entre Subcidadania e Alopoiese; 4. Atividade Alopoiética: Legalismo e Impunidade; 5. A (Não-)Efetividade dos “Procedimentos Retóricos” Alopoiéticos dos Subsistemas Penais Brasileiros; 6. Conclusão; 7. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

O presente trabalho tem como escopo apresentar o fenômeno da alopoiese do sistema penal brasileiro, bem como apontar suas causas e conseqüências mais marcantes no contexto social da modernidade jurídica de nosso povo.

Preliminarmente, iremos conceituar os termos-partes que compõem o nosso tema, servindo, assim, como idéias-chaves para o entendimento básico dos itens subseqüentes.

Enfocaremos, outrossim, como as recentes transformações ocorridas durante os dois últimos séculos, notadamente as decorridas diretamente dos ideais revolucionários de liberdade, igualdade, fraternidade e, particularmente, de cidadania, irão promover o desenvolvimento de novas relações sócio-jurídicas e a conseqüente aluição das mesmas pelos diversos sistemas conservadores do status quo (leia-se sistemas econômicos e políticos de diversas naturezas e origens).

A rigidez legalista e a impunidade, pontos-bases de depreensão minuciosa do surgimento de novas esferas (de)juridicizantes “alternativas” ao Direito Penal estatal, irão igualmente se desenrolar durante quase todo o trabalho.

Ademais, compatibilizando-se com tudo isso, temos induvidosamente a figura dos subcidadãos, cujo acesso à justiça é negado por bloqueios elitistas, e que desenvolverão seus próprios princípios de regulamentação normativo-penal dentro do(s) seu(s) próprio(s) subsistema(s). Ver-se-á, contudo, que nem tais “leis” conseguem sobreviver e manter sua efetividade “heteromizante” para todos os seus membros, devido justamente à falta de identidade/autonomia (alopoiese) dos órgãos judicantes estatais. Foge ao nosso objetivo, entretanto, exaurir um assunto tão vasto e dinâmico, nem sobrestimaremos esta ou aquela teoria que o enfoca como objeto de estudo.

Mostrados todos os aspectos que circundam e destroem a independência autônoma do Direito (autopoiese), faremos uma rápida e modesta conclusão a respeito das implicações autodestrutivas e heterodestrutivas que subjugam e estrangulam as aspirações de legalidade e imparcialidade jurídico-penais dos subcidadãos e as possíveis soluções para tais implicações no Brasil.

2. Conceitos Basilares

2.1. Autopoiese & Alopoiese

Tornar-se-ia deveras difícil definir “alopoiese” sem termos em mente, de antemão, o conceito de sua antípoda, a “autopoiese”, porquanto ambos os significados estão entrelaçados indissociavelmente.

A palavra autopoiese deriva do grego autós (‘por si próprio’, ‘de si mesmo’) e poiesis (‘criação’, ‘produção’), tendo sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela[1]. Deve-se a Niklas Luhmann, porém, o ingresso do conceito de autopoiese nas ciências sociais, notadamente no Direito[2]. Segundo o doutrinador alemão, “um sistema é dito autopoiético quando este se reproduz primariamente com base nos seus próprios códigos e critérios, assimilando os fatores do seu meio-ambiente circundante (expectativas sociais), mantendo, assim, a sua autonomia e identidade perante os demais sistemas sociais”[3].

No caso do (sistema) Direito, diz Luhmann que, sendo autopoiético, prevalece o código de preferência lícito/ilícito como condição de sua autorreferência sistêmica[4], ou seja, os valores e motivações, ainda que das mais diversas, da política legislativa e da atividade jurisdicional buscam suas fontes nos próprios princípios norteadores da e para a criação, interpretação e aplicação jurídicas. O que se quer dizer com isto é que a identidade operacional e a autonomia funcional do sistema jurídico, requisitos básicos deste, são sustentadas por aquele código binário, formando o que se pode chamar do núcleo ou cerne da autopoiese do Direito.

Numa posição diametralmente oposta, temos o conceito de alopoiese. Derivada do grego alo (‘um outro’, ‘diferente’) e poiesis (‘criação’, ‘produção’), a palavra, como bem define Marcelo Neves, “designa a (re)produção do sistema por critérios e códigos do seu meio-ambiente. O respectivo sistema perde em significado a diferença entre sistema e meio-ambiente, sendo incompatível (…) com a própria noção de referência ao meio-ambiente…”[5]. Concordamos com o jurista quando ele, complementando a sua definição, afirma que um sistema alopoiético constitui-se da “confusão de códigos jurídicos construídos e aplicados difusamente, como também do intrincamento destes com os códigos do poder, da economia, familiar, da amizade, como também daquilo que os alemães chamam de ‘boas relações’”[6].

Explicando mais liquidamente o que acabamos de dizer, a alopoiese reflete a injunção e o “intrincamento dos códigos jurídicos com os demais códigos sociais”[7]. Todos estes códigos, com efeito, imiscuir-se-iam de tal forma que o processo de construção de suas identidade e reprodução da autonomia estaria seriamente comprometido, diluindo-se paulatinamente.

A interferência direta de fatores sociais particularistas e bloqueantes (poder, dinheiro, etc.) atuaria como um “tumor” que, metastasiando-se destrutivamente pelo interior do sistema jurídico, provocaria, sem mais delongas, o ulterior perecimento da autonomia/identidade deste. A conseqüência mais grave de tudo isso, não obstante a busca de um entrelaçamento sistematizador intersistêmico positivo das esferas de juridicidade, é “a insegurança destrutiva com relação à prática de solução ou neutralização de conflitos”[8].

Disso, depreende-se que os paradigmas alopoiéticos, de cunho dejuridicizante, obnubilam a identidade sistêmica do Direito, porquanto seus pilares (adoção dos seus próprios critérios e independência autônoma) são aluídos e soçobrados, fazendo periclitar a autorreferência — e, através da assimilação de interesses, a heterorreferência[9]— sistêmicas do código binário luhmanniano “lícito/ilícito” por conta da sobrepujação de outras esferas sociais (o ter — economia, o poder — política, etc.) em detrimento de esferas tópicas de juridicidade.

2.2. A (Sub)Cidadania Brasileira

O conceito de cidadania está intimamente vinculado à titularidade de direitos. Isto está muito bem expresso na seguinte definição de cidadania, que se acha assim deslindada: “Cidadania é expressão que identifica a qualidade da pessoa que, estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos, que se indicam, pois, o gozo dessa cidadania”[10].

Pode-se entender a cidadania — segundo uma perspectiva efetivamente generalizante — como “a inclusão de toda a população no acesso/dependência aos seus benefícios, vantagens e regras”[11]. Já o conceito habersiano de cidadania implica “autonomia privada (direitos humanos) em conexão com autonomia pública (soberania popular)”[12].

Independentemente da aceitação deste ou daquele conceito, só podemos falar em cidadania se houver concretização das normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais (individuais e coletivos), implicando direitos civis, políticos e sociais, tendo na igualdade o pressuposto inerente e o arcabouço ético do conceito em relevo.

Entretanto, constata-se, como decorrência da sobreposição daqueles interesses já citados (vide sub-item 2.1), a existência de grupos sociais marginalizados[13] e que, portanto, não estão integrados ao processo “generalizador” da “ampliação” da cidadania, o que requer a prevalência de uma democracia real. Tais grupos subintegrados são prevalentemente constituídos por indivíduos chamados (pós-)modernamente de “subcidadãos”[14].

O caso do Brasil é emblemático. A maior parcela da sua população é constituída basicamente por subcidadãos, que não estão escusados de cumprir com as responsabilidades e deveres que o Direito lhes impõe, mas também este não lhes dá as condições de exercer seus direitos fundamentais dispostos no texto constitucional e tão aclamados durante as últimas décadas[15].

É, pois, justamente em razão da ausência da realizabilidade das funções social-integrativa e político-participatória da cidadania que o paradoxo subcidadania/democracia finca as suas raízes no Brasil[16].

Assim sendo, quanto à subcidadania brasileira vão se generalizar processos não-participatórios infra-estatais de coibição aos direitos fundamentais (igualitários) em concomitância com a sacralização de privilégios e favores mútuos da sobrecidadania brasileira, levando ao descrédito o Poder Judiciário. Este, diga-se en passant, comete verdadeira “violência”[17], que, a par dos anseios populares em enxergar uma justiça que leve a cabo a punição prevista no preceito sancionador da norma incriminadora, mesmo (e acima de tudo) aos sobrecidadãos, possibilita a supressão, por iniciativa subcidadã, do sistema penal positivo dogmático, através de formas e mecanismos normativos “alternativos”.

3. Relação Substancial entre Subcidadania e Alopoiese

No que tange ao intrincamento íntimo existente entre cidadania e alopoiese, iniciemos irrelutantemente a parte precípua deste trabalho, fazendo a seguinte assertiva, que se deve a Marcelo Neves: “A realização da cidadania pressupõe autonomia do sistema jurídico”[18].

Essa autonomia jurídica, correlacionada direta e intrinsecamente com a idéia de cidadania, possui sua relevância respaldada, empiricamente, na heterorreferência transubjetiva de expectativas normativas no tocante à neutralização de complexos dissensos das diversas esferas do agir e vivenciar sociais, a partir da assimilação de interesses filtrados cognitivamente, tais quais a liberdade e a garantia de um processo justo e regular, em caso de este bem ser ameaçado, ou violado.

Ademais, lógico está que a ausência da autorreferência dos Direitos Penal e Processual Penal condiz perfeitamente, como foi salientado anteriormente (vide sub-item 2.1), com o surgimento do sistema alopoiético, inviabilizando a conquista de direitos individuais e coletivos por parte dos cidadãos. “A idéia de autonomia/identidade do Direito deve vincular-se”, como bem atesta Jürgen Habermas, “à democracia real”[19].

Conquistar e ampliar a cidadania e, por conseguinte, manter e reforçar a independência operacional-funcional do sistema penal brasileiro, é desintrincar a interpenetração particularista, bloqueante e heterodestrutiva entre o “ter”, o “poder” e o Direito, em virtude da incompatibilidade da cidadania includente e generalizante com códigos, critérios e ingerências egoísticas de sistemas extrajurídicos. É esta evolução construtiva e ampla da cidadania, portanto, o pressuposto da semântica dos direitos humanos.

O sistema jurídico-penal brasileiro, em decorrência da sua alopoiese, vai perdendo, faticamente, forças para as influências diretas dos critérios econômicos e políticos, porquanto o texto constitucional perde o seu significado normativo generalizado, incapacitado de deter o avanço daqueles critérios, faltando-lhe a corroboração pragmática dos seus dispositivos[20]. Saliente-se a isso as relações entre subcidadãos e sobrecidadãos, nas quais as peculiaridades mais contundentes são, em regra — o que deveria permanecer tão-só como exceção —, quanto a estes últimos, a quase inequívoca passagem do ser-ente social para o ser-sujeito de direitos, e, a contrario sensu, a negação, aos primeiros, da cidadania (integração igualitária na sociedade).

Insiste, todavia, em parecer à primeira vista que os subcidadãos estão excluídos do ordenamento jurídico e os sobrecidadãos, ao contrário, incluídos. Ocorre que estar incluso a ele é submeter-se aos seus ditames, ora em pleno gozo dos direitos conferidos, ora cumprindo com os deveres. Aos subcidadãos, contudo, cabem-lhes apenas estes últimos, por conta da alopoiese, que lhes ignora o exercício pleno de todo o art. 5º da Constituição Federal. Esta, aliás, é logo posta de lado pelos “donos do poder” assim que impõe limites e restrições às suas ações políticas, mesmo que tais ações incorram em sanções penais (?).

Se as declarações constitucionais dos “direitos do cidadão” possuem um reduzido grau de validade jurídica, qual seria, então, seu sentido? A resposta encontra-se na “hipertrofia na sua dimensão político-simbólica em detrimento de sua função jurídico-normativa”[21].

Urge, conseqüentemente, bloquear os avanços dos códigos “dinheiro” e “poder” no que diz respeito à (concretização da) normatização constitucional. A falta de autonomia jurídica, solapando irrefreavelmente a identidade do ordenamento jurídico pátrio, leva à elaboração de leis penais em que está implícita, senão a defesa dos privilégios dos sobrecidadãos, ao menos a amenização dos atos criminosos destes[22].

4. Atividade Alopoiética: Legalismo e Impunidade

Cogita-se, com certa freqüência, quais seriam os meios alopoiéticos geradores do que se pode chamar de “instrumentalização política do Direito através do jogo de interesses”[23] deconstrutivos e desestruturalizadores da concretização normativa, em particular do texto constitucional brasileiro no que tange aos preceitos de natureza penal. Esse fenômeno, ocorrente principalmente na América Latina, gira em torno da falta de tolerância[24] vinculada às desigualdades sócio-econômicas, que, de forma cabal, germinam e permeiam a impotência jurídica em relação à submissão de todos, sem exceção, aos ditames, princípios e normas dos Direitos Penal e Processual Penal.

A falta de tolerância na esfera jurídica pode efetivar-se através de duas situações: o legalismo e a impunidade.

O legalismo, ao contrário do princípio da legalidade (generalização igualitária da lei), asfixia a autonomia operacional do sistema penal nacional, pois impõe aos subcidadãos os deveres a serem cumpridos, mas, concomitantemente, nega-lhes o acesso aos direitos “garantidos” constitucional e legalmente. A insensibilidade discriminatória legalista funciona, assim, como intolerância jurídica mantenedora da “exclusão” social dos subcidadãos, haja vista a evidência de tal alogia dejuridicizante. A Constituição Federal, bem como as legislações penal e processual penal, então, parece serem pragmatizadas apenas quando e porque interesses de grupos privilegiados não são comprometidos.

O outro pólo da intolerância jurídica dirige-se ao que se chama de impunidade. Freqüentemente se observa que certos ilícitos não são seguidos das sanções pré-estabelecidas juridicamente. Poder-se-ia até pensar que se trata de “tolerância excessiva”, mas, ao contrário, significa, isso sim, tolerância ausente. Faz-se prementemente imperioso enfocar o fato de que “os privilégios da impunidade implicam a própria quebra da autonomia/identidade da esfera jurídica por bloqueios políticos particularistas, econômicos e ‘relacionais’”[25].

Como bem se vê, a rigidez legalista está para os subcidadãos assim como a impunidade e a permissividade jurídica para os sobrecidadãos, complementando-se reciprocamente. Daí resulta o fato de, em regra, “as vítimas dos atos impunes são os socialmente mais frágeis (subcidadãos) e os agentes ou responsáveis são indivíduos e grupos privilegiados, ou aqueles vinculados direta ou indiretamente aos seus interesses”[26]. Quando, porém, o agente é um subcidadão, este não recebe o devido tratamento declarado constitucional e legalmente, em vista de sua condição de inferioridade dentro do ordenamento jurídico-penal brasileiro[27].

Claro está que, sem igualdade de direitos e deveres, encontrar-nos-emos numa situação de falta de cidadania semelhante àquela que remonta o período absolutista, em que a relação entre soberano e súditos era constituída de poderes e direitos no pólo superior (o que equivale, nos nossos dias, à situação dos sobrecidadãos) e deveres no inferior (o equivalente à situação dos subcidadãos). Uma situação como esta desnatura, se não cinde, a função de qualquer ordem social, que, “vista de uma perspectiva psico-sociológica, (…) consiste em obter uma determinada conduta por parte daquele que a esta ordem está subordinado, fazer com que essa pessoa omita determinadas ações consideradas como socialmente — isto é, em relação às outras pessoas — prejudiciais, e, pelo contrário, realize determinadas ações consideradas socialmente úteis. Esta função motivadora é exercida pelas representações das normas que prescrevem ou proíbem determinadas ações humanas”[28], mais específica e preponderantemente, as normas que prescrevem ilícitos penais.

Requer-se como cidadania, em outras palavras, a generalização includente do código de preferência lícito/ilícito, condicionando, dessa forma, a indissociabilidade entre o respeito e a concretização (igualmente generalizantes) dos dispositivos constitucionais e legais dentro do quadro do sistema penal brasileiro.

Conclui-se, diante do exposto, que a tolerância jurídica significa, antes de tudo, direitos e deveres mutuamente partilhados (o que implica legalidade, e a alopoiese obstaculiza isso), sendo que sua realizabilidade é impensável sem Estado (efetivamente) Democrático e Social de Direito (o que implica autopoiese em todos os sistemas sociais e no sistema jurídico-penal estatal).

5. A (Não-)Efetividade dos “Procedimentos Retóricos” Alopoiéticos dos Subsistemas Penais Brasileiros

Por tudo o quanto já foi discutido até agora, pode-se afirmar que, da prevalência da alopoiese do sistema jurídico-penal em detrimento de sua autopoiese em países subdesenvolvidos, notadamente no Brasil, advém a alógica assertiva de que a produção jurídica é fechada às demandas das expectativas sociais (em certos aspectos, até mesmo de forma hermética). Um Estado alopoiético, cujos procedimentos decisórios são insuficientes para resolver todos os conflitos que lhe sobrevêm, é perpassado por procedimentos jurídicos espontâneos, fazendo com que os sistemas que constituem a sociedade criem, eles mesmos, os procedimentos necessários para suprirem essa dificuldade[29]. É assim que amiúde iremos observar metacódigos oriundos da ideologia sobrecidadã agindo e reagindo paralelamente aos critérios pré-estabelecidos pelos sócio-juridicamente marginalizados.

A subcidadania brasileira, então cansada de ter seu acesso à justiça (?) do (pretensamente autopoiético) Estado, bloqueado por fatores extrajurídicos, desenvolverá outras formas jurídicas em reação à inadequação, improcedência e inoperância do ordenamento jurídico positivo-dogmático brasileiro, haja vista as (excludentes) diretrizes insensíveis e/ou freqüentemente inservíveis às profundas desigualdades sociais do nosso país. Assim, a subcidadania elaborará as normas penais que devem ser seguidas dentro de cada grupo social, como também os procedimentos penais no caso de serem (as normas) transgredidas, seja o violador da norma pertencente, ou não, ao grupo social legiferante, i. e., grupos sociais subintegrados transfiguram a titularidade exclusivamente estatal do jus puniendi, que, se não repassada totalmente às suas mãos (como uma espécie de “usurpação” do jus imperii do Estado), ao menos com ela concorrem[30]. Numa ou noutra hipótese, entrementes, constitui-se a reafirmação da “violência de sangue” (Blutrache), a mais primitiva, segundo Hans Kelsen, das “sanções socialmente imanentes”[31].

Exemplifiquemos o caso das “normas penais” e “processuais penais” dos favelados, nada mais do que formas instáveis e difusas de reação à falta de acesso aos benefícios e vantagens do sistema jurídico-penal estatal. Como conseqüência da falta de eficácia (no sentido sociológico da expressão) do Direito Penal Positivo Dogmático, advinda, por sua vez, da ausência da identidade autorreferente e heterorreferente sistêmica heteromizante do Direito brasileiro (alopoiese), os favelados irão “se virar sozinhos”, como se diz no jargão popular[32], para resolverem seus litígios, segundo, agora, seu próprio código binário lícito/ilícito, cujos princípios repousam, insofismavelmente, no arcabouço de uma ética empírica que amiúde põe em relevo as contradições da natureza humana.

Essas contradições, ao que nos parece, vêm à tona já mesmo a partir do momento em que, perante um determinado caso concreto, a norma penal de origem subcidadã é refutada, ou incide de um modo mais, ou menos, severo que aquele rigor primariamente previsto, em vista de uma “especial condição” gozada pelo infrator, tal como, e. g., uma capacidade penal especial em relação a certas normas penais não incriminadoras permissivas. Em suma, a subcidadania brasileira — outrora insatisfeita com ingerências e interferências metajurídicas ensejadoras da impunidade dos “donos do poder” e do legalismo frente aos menos favorecidos sócio-economicamente —, em dadas circunstâncias, também incorre nos mesmos vícios de todo ordenamento alopoiético: acolhe fatores e valores extranormativos para beneficiar uns poucos subcidadãos, mantendo, porém, os demais “sob as rédeas” do normativismo “alternativo”.

Sem embargo, como igualmente ocorre com o Direito estatal brasileiro, a reação difusa à ausência do princípio da legalidade também não vai conseguir manter sua “autonomia/identidade”, pois em toda forma jurídica decorrente de um processo de alopoiese, como é o caso brasileiro, estão ínsitos toda espécie de sobreposições de interesses particularistas. Assim é que a efetividade generalizante dos procedimentos penais da subcidadania brasileira não se concretiza, o que nos leva a dizer que esse é um fenômeno de alopoiese nos subsistemas penais “alternativos”[33].

Infere-se, por tais razões, que um sistema penal estatal alopoiético enseja, quando pululam as insatisfeitas demandas sociais aclamadoras de uma verdadeira justiça penal, subsistemas jurídicos penais que, inevitavelmente, restam condenados em suas próprias colunas mestras, noutras palavras, esbarram na impossibilidade mesma de uma heteronomia igualitária: tornam-se, pois, também alopoiéticos[34].

6. Conclusão

A insensibilidade do Direito brasileiro, em face do contexto social, não responde à diferenciação das diversas esferas do agir e vivenciar humanos da sociedade decorrentes da hipercomplexificação desta.

A conseqüência mais agravante é a disfuncionalidade operacional da autodependência dos critérios jurídicos, contornando destrutivamente os pilares do ordenamento jurídico-penal, implicando a aniquilação de sua identidade e a ruína da sua autonomia. O legalismo e a impunidade desenfreados, símbolos-mor da “democracia” brasileira, sufocam gradativamente as aptidões democratizantes das expectativas sociais no tocante à realização includente e igualitária da legalidade, respeitando as crescentes demandas sociais.

Outrossim, transparece a ação dejuridicizante dos sobrecidadãos que, aliados à conivência da burocracia estatal, desnorteiam a atividade jurídica sob todos os seus aspectos. Dessa forma, as premências sociais legitimadoras de um Direito autorreferente, autopoiético, são combalidas cruelmente por interesses mesquinhos e supérfluos dos “donos do poder”, achincalhando, por assim dizer, a Carta Política, principalmente no que se refere aos tão aclamados, desde a Revolução Francesa, droits de l’homme et du citoyen.

Cansados da espera de o Estado resolver os dissensos sociais mais significativos e perplexos ante os entraves que ilidem a concretização normativa penal, os subcidadãos brasileiros, movidos por um sentimento misto de indignidade e justiça, causado justamente pela falta de seu acesso a esta, desenvolvem normas penais capazes, consoante crêem, de solver os conflitos de interesses que porventura se insurjam. O fulcro de todas essas formas espúrias de exercer a justiça penal (até mesmo a do Estado, somente no qual está legitimado o jus puniendi) encontra suas fontes de produção — lógica e cronologicamente falando —, respectivamente, na exclusão sócio-jurídica de um povo e na alopoiese do correspondente ordenamento jurídico de que ele faz parte, legislado que é por “metacódigos”. Porém, talvez ainda não hajam percebido os subcidadãos brasileiros que os tão discutidos “critérios particularistas e bloqueantes” da identidade das esferas de juridicidade também se consubstanciam empiricamente em tais esferas “alternativas” ou “extralegais”.

Destarte, o ponto-questão da não-efetividade ou não-funcionalidade generalizada de quaisquer procedimentos (extra)legais, isto é, a resposta para a falta de aquisição e de ampliação da cidadania reside na ausência de legalidade correlacionada com a falta de autorreferência independente do Direito Penal brasileiro. Por tais razões é que “os advogados brasileiros devem lutar para possibilitar o acesso das massas populares à ordem jurídica, propugnando por novos esquemas e paradigmas legislativos e de controle externo das instituições”[35].

7. Referências Bibliográficas

1. ADEODATO, João Maurício Leitão. Uma Nova Ótica da Práxis Jurídica Brasileira. In: Anais da XIV Conferência Nacional da OAB, 1992.

2. ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org.). Lições de Direito Alternativo 2. São Paulo: Acadêmica, 1992.

3. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

4. NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Da Autopoiese à Alopoiese do Direito. In: Anuário do Mestrado em Direito, n.º 5. Recife, 1992, pp. 273-298.

5.Do Pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: O Problema da Falta de Identidade da(s) Esfera(s) de Juridicidade na Modernidade Periférica e suas Implicações na América Latina. In: Direito em Debate, ano V, n.º 5. Rio Grande do Sul: Unijuí, jan./jun., 1995, pp. 7-37.

6. Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: Revista Acadêmica. Recife, ano 75, 1992, pp. 77-97.

7. Legalismo e Impunidade: Intolerância e Permissividade Jurídicas na América Latina – Notas para Discussão no Ano Mundial da Tolerância. In: Cidadania e Direitos Humanos – Revista do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos dos Homem e do Cidadão, ano 2, n.º 2, março, 1995, pp. 8-11.

8. NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida: Aborto, Eutanásia, Pena de Morte, Suicídio, Violência/Linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995.

9. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, vol. I, 6ª ed., 1980.

10. STRECK, Lênio Luiz. A Crise da Efetividade do Sistema Processual Brasileiro. In: Direito em Debate, ano V, n.º 5. Rio Grande do Sul: Unijuí, jan./jun., 1955, pp. 64-75.

11. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 20ª ed., 1998.

12. TORRÉ, Abelardo. Introducción al Derecho. Buenos Aires: Perrot, 1957.

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[1] MATURANA E VARELA apud NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Da Autopoiese à Alopoiese do Direito. In: Anuário de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, n.º 5. Recife: Universitária. jan./jun., 1995, p. 273.

[2] Ibidem, p. 273.

[3] Idem. Do Pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: O Problema da Falta de Identidade da(s) Esfera(s) de Juridicidade na Modernidade Periférica e suas Implicações na América Latina. In: Revista Direito em Debate, ano V, n.º 5. Rio Grande do Sul: Unijuí, 1992, p. 15.

[4] Ibidem, p. 15.

[5] NEVES, Da Autopoiese à Alopoiese do Direito, p. 287.

[6] NEVES, Do Pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: O Problema da Falta de Identidade da(s) Esfera(s) de Juridicidade na Modernidade Periférica e suas Implicações na América Latina, p. 21.

[7] Ibidem, pp. 17-18.

[8] NEVES, Da Autopoiese à Alopoiese do Direito, p. 292.

[9] A heterorreferência de que se trata aqui tem um sentido um tanto mais largo que aquela há muito preconizada heteronomia do Direito, para a qual a validez de uma norma jurídica existe e deve ter aplicação independentemente da vontade de seus destinatários (transcendente a esta está a somente vontade do legislador).

Em verdade, o conceito de heterorreferência cinge-se à natureza ou qualidade que um ordenamento jurídico autopoiético possui de figurar como o paradigma ou modelo de referência técnica e valorativa daquela heteronomia, bem assim das relações intersubjetivas entre os seus destinatários.

[10] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. I, p. 335.

[11] LUHMANN apud NEVES. Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: Revista Acadêmica, ano 75. Recife, 1992, p. 85.

[12] HABERMAS apud NEVES, op. cit., p. 85.

[13] A marginalização, nesse sentido, encontra-se não só nas esferas econômica e política, mas igualmente e sobretudo, nas esferas social e — por via oblíqua — jurídica.

[14] Há ainda divergências quanto ao termo “subcidadania”, no que tange ao tempo de seu aparecimento. Para isso, vide: NEVES, Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente, p. 95.

[15] A acolhida tão-somente teórica de direitos dos destituídos de poder corresponde ao que Paulo Lúcio Nogueira denomina de “violência legal”: leis que beneficiam injustificadamente uns poucos em detrimento de uma coletividade desesperada por inclusão social e sedenta por uma justiça penal atuante e célere (NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida: Aborto, Eutanásia, Pena de Morte, Suicídio, Violência/Linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 148).

[16] No que toca a essa realidade, fazemos nossas as palavras de Paulo Lúcio Nogueira (op. cit., p. 149), tratando da chamada “violência política”: “A verdadeira política deveria ter como fim primordial o bem público, mas isso não ocorre em nosso país: interesses pessoais, de grupos econômicos ou de partidos são colocados sempre em primeiro lugar, o que é uma violência contra o povo.”

[17] “A maior violência judicial é a omissão ou indiferença na prestação de serviços, o que acarreta, além de prejuízos, uma sensação de impotência desesperadora por parte da população, que se sente em ação para protestar (…)”, eis como Paulo Lúcio Nogueira (op. cit., p. 150) explica a “violência judicial”.

[18] Ibidem, p. 77.

[19] HABERMAS apud NEVES, Do Pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: O Problema da Falta de Identidade da(s) Esfera(s) de Juridicidade na Modernidade Periférica e suas Implicações na América Latina, p. 16.

[20] Principalmente os dos artigos 1º, inc. II, 3º e 5º, em sua integralidade.

[21] NEVES, Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente, p. 96.

[22] Sobre este fato, comparem-se, e. g., as penas dos artigos 155 do nosso Código Penal (furto) e 1º da Lei n.º 4.729, de 14 de julho de 1965 (sonegação fiscal).

Com acerto, é curioso e ao mesmo tempo revoltante notar-se num país de milhões de miseráveis, como é o caso brasileiro, certas absurdidades. Suponham-se dois sujeitos das classes baixas que, não obstante pagarem regularmente seus tributos (com muito sacrifício, no mais das vezes), furtam objetos de pequeno valor da casa de rica família, durante o seu repouso noturno. Imagine-se, outrossim, que sejam reincidentes em crime idêntico. Os agentes, após rápidas investigações — nada mais esperado num país de ordenamento jurídico tradicional e eminentemente sobrecidadão —, são presos, indiciados e processados por furto qualificado com a causa de aumento de pena de 1/3 (art. 155, § 4º, IV c/c § 1º, do CP). Em sendo condenados, a pena privativa de liberdade mínima a lhes ser imputada como conseqüência de sua prática delituosa será de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, e multa de 1/3 do salário-mínimo (esse é o quantum mínimo que se deduz da inteligência do art. 49, caput e seu § 1º, do Código Penal).

No entanto, o sujeito que houver sonegado milhões da Receita Federal, em geral pessoa que, se não abastada, ao menos de vida economicamente bastante confortável (e é precisamente em conseqüência do valor não repassado ao Estado e da ótima situação financeira pela que passa o réu que se eleva o grau de culpabilidade do agente, obliquamente, o grau de reprovação social), se for indiciado (1ª dificuldade, ante a negligência das autoridades policiais, mormente quando o que se discute é a criminalidade de “colarinho branco”), processado (2ª dificuldade, porquanto não raras vezes inquéritos e processos são simplesmente arquivados, por motivos que às vezes, digamos, “extrapolam os limites do conhecimento puramente jurídico”) e condenado (3ª dificuldade, dada a brilhante atuação dos advogados muito bem remunerados — com o dinheiro do Estado — acrescida com a morosidade, inoperância e pusilanimidade de alguns magistrados), a sanção penal privativa de liberdade máxima ser-lhe-á de 2 (dois) anos de detenção.

Observe-se que os dois primeiros réus terão de iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, pois se trata de reclusão, e a reincidência dos mesmos prejudica o benefício do início de pena em regime aberto, contido no art. 33, § 2º, c, do diploma repressivo, e não terão direito à suspensão condicional da pena (sursis), pelo simples fato de que a pena privativa de liberdade in concreto foi decretada em mais de 2 (dois) anos (vide art. 77, caput, do Código Penal), nem à substituição desta por uma restritiva de direitos (a reincidência, mais uma vez, fere de morte o requisito do art. 44, II, do estatuto penal). Por sua vez, o último condenado (se é que o foi…), se primário (o que comumente ocorre, inobstante anos de sonegação impunes), goza do privilégio que é concedido pelo art. 1º, § 1º, da mesma Lei n.º 4.729/65 (aplica-se apenas a pena de multa), afastando-se, assim, qualquer possibilidade de privação da liberdade.

Onde falar-se, em caso como de tais, em Justiça Penal?

[23] NEVES, Do Pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: O Problema da Falta de Identidade da(s) Esfera(s) de Juridicidade na Modernidade Periférica e suas Implicações na América Latina, p. 17.

[24] A tolerância, como bem define Marcelo Neves, é “o modo de ser, agir e vivenciar humanos que respeita as maneiras diferentes de ser, agir e vivenciar no mesmo espaço social” (NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Legalismo e Impunidade: Intolerância e Permissividade Jurídicas na América Latina – Notas para Discussão no Ano Mundial da Tolerância. In: Revista do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, ano II, n.º 02, março, 1995, p. 08).

[25] Ibidem, p. 10.

[26] Como exemplo disso, atente-se ao caso elucidativo descrito por João Maurício Leitão Adeodato (ADEODATO, João Maurício Leitão. Uma Nova Ordem da Práxis Jurídica Brasileira. In: Anais da XIV Conferência Nacional da OAB, 1992, p. 409):

“Um industrial dirigia alcoolizado e atropelou e matou uma criança em Santa Catarina. Após um processo de 4 anos, cuja decisão aguardou em liberdade, foi condenado a 1 ano e 3 meses de prisão. Em atenção aos diversos artigos e parágrafos atenuantes da lei (réu primário, sem periculosidade) e sem consideração dos agravantes, permaneceu em liberdade e apenas sua licença de motorista foi suspensa por tempo limitado. O pai da criança, inconformado, publicou nota nos jornais lamentando o ponto a que chegara a justiça brasileira em seus resultados práticos. Por insulto à justiça foi condenado a 1 ano e 8 meses de prisão. Entrementes, mostrando a total ineficácia da já suave sentença, o industrial continuava dirigindo diante das testemunhas diversas. Apesar de não dispormos de estatísticas, estes e outros casos parecem confirmar o dito de que ‘o Código Penal existe para os pobres’”.

[27] É evidente, notadamente, o desdém que se dá a dispositivos da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984), como, por exemplo, o do seu artigo 40, que reza: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. Vejam-se também, na mesma lei, como exemplo do “respeito” aos presos, os artigos 10, 57, 185 e 198. Princípios constitucionais do artigo 5º também não são postos em prática. Para ratificar isso, pode-se fazer um lançar d’olhos nos incisos III, XLI, XLIX, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXXVII e seu § 1º.

[28] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 48.

[29] Essa idéia de ineficiência judiciária encontra-se em: ADEODATO, op. cit., pp. 406 e 414.

[30] O conceito desse poder-dever do Estado — jus puniendi — acha-se muito bem encerrado no magistério de Fernando da Costa Tourinho Filho, parte do qual preferimos transcrever, ad litteram:

“(…) O ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social. (…) Como a sociedade, assim entendida, é uma entidade abstrata, a função que lhe cabe, de reprimir as infrações penais, permanece em mãos do Estado, que a realiza por meio dos seus órgãos competentes. O jus puniendi pertence, pois, ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 20ª ed., 1998, pp. 12 e 13).

[31] Op. cit., p. 55. Deve-se isso, sobretudo, à ausência da “descida”, do plano abstrato para o concreto, do jus puniendi estatal, “no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal” (TOURINHO FILHO, op. cit., p. 13). E seria a partir desse momento que o Estado deveria infligir a pena ao autor da conduta proibida, algo um tanto “inconcebível” (!) quando vem à baila a problemática da sujeição de uma pena a um sócio-economicamente (e juridicamente) privilegiado (e aqui repousa o pressuposto do “indiciamento dourado”, id est, indiciamento dum sobrecidadão, um acontecimento por si só raro de se fazer eficazmente presente).

[32] Eles irão “se virar sozinhos” por meio da imposição de normas (com suas respectivas sanções) por traficantes de drogas e outros tipos de criminosos, que exercem uma verdadeira dominação sobre todos aqueles que ali vivem. Os moradores daquela esfera de (de)juridicidade possuem entre si uma espécie de “lealdade” para com os traficantes (omissão de testemunho diante de um fato criminoso ocorrido na favela, avisos aos traficantes da chegada da polícia, etc.) e, em troca, recebem certa proteção (?!).

[33] O que se quer dizer com isso é que os “procedimentos retóricos” sub-estatais também vão perder sua efetividade, porquanto os subsistemas que lhes deram vida vão se interpenetrar, decorrendo disso uma “miscelânea jurídico-social”. Ademais, voltando ao caso dos favelados, é preciso sermos sensatos ao declarar que mesmo tais leis “favélicas” — se nos permitam o emprego desse neologismo — não são igualitárias. Há como que uma subcidadania (1º pólo) na subcidadania (2º pólo).

Com certa margem de plausibilidade, é válido afirmar que os membros pertencentes ao 1º pólo são os próprios moradores das favelas e os do 2º pólo, os traficantes que ali firmam o seu império de terror e violência. Daí porque o 2º pólo é privilegiado, em virtude de não estar submetido ao mesmo rigor das leis “favélicas”. Observe, por exemplo, que se o chefe do tráfico mata um morador, como “queima de arquivo”, dificilmente será sancionado (nem pelo ordenamento jurídico estatal, nem — e com maior razão — pelo “ordenamento jurídico favélico”), mesmo porque, e isso não há que se negar, impera a “lei do silêncio”: ninguém viu nem ouviu o ocorrido, logo ninguém fala. Já o morador que matar um “avião” (morador da favela, geralmente menor de idade, que busca a droga do morro para vendê-la nas ruas) poderá ser inapelavelmente penalizado com a morte, visto que, hic et nunc, os interesses privilegiados do 2º pólo foram ameaçados, merecendo sua causa ser “extirpada” imediatamente.

[34] Daí podermos também discutir o tema ora abordado — o fenômeno alopoiético — sob um outro ângulo, vale frisar, no contexto dos subsistemas penais brasileiros, isto é, conjuntos ou combinações de normas penais paraestatais coordenadas entre si de molde que concorram para um certo resultado, qual seja, a consecução da justiça penal, sob a ótica e os valores dos sócio-juridicamente subintegrados.

[35] ADEODATO, op. cit., p. 419.

(*) Aluno de Graduação do 8º período da Faculdade de Direito do Recife – UFPE; Monitor de Direito Penal

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