O festival de gastança pública por conta das reformas

Kiyoshi Harada*

É incrível a inesgotável capacidade de gastar do nosso governo. Sai governo, entra governo e nada muda. Quanto mais riqueza se transfere do setor produtivo, por via de tributos, maior a gastança pública. Só que nada ou quase nada é gasto em despesas de capital (investimentos). O grosso dos gastos públicos é direcionado para as despesas de custeio e de transferências correntes, vale dizer, para gastos com o pessoal ativo e inativo e com o pagamento de juros da dívida pública, fato que poderá inviabilizar as gerações futuras.

As reformas, tributária e previdenciária (Pec 40/03 e Pec 41/03) ainda estão em discussão no Congresso Nacional, mas, já são tidas pelo governo como de aprovação irreversível. Por isso, por conta dessas reformas, que propiciarão receitas dantes nunca imaginadas, o governo já deu início à partida ao maior trem de alegria de fazer inveja aos governantes anteriores. Baixou o Decreto de nº 4.734, de 11-6-2003, para agilizar as nomeações de milhares e milhares de contemplados com cargos em comissão e funções de confiança pelos atuais detentores do poder. Só que esses malefícios perpetrados contra a sociedade em geral, composta, não de milhares, mas, de 170 milhões de brasileiros, aparecem, como de hábito, de forma nebulosa, dúbia e intransparente.

É o caso do Decreto em tela, que de tão confuso, já provocou comentários opostos de dois jornais de grande circulação:

Folha de São Paulo: Em mais um gesto de centralização de poder e num esforço para afastar dissidentes e acelerar as atividades do governo federal, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, acumula desde ontem, por meio de decreto assinado pelo presidente Lula, o poder de preenchimento de todos os cargos de confiança.

O Globo: Em portaria publicada ontem no Diário Oficial, a Casa Civil passou a competência de nomear funcionários para cargos de confiança aos ministros de cada área. Com isso, Dirceu não tem mais a exclusividade das nomeações. Examinemos esse nebuloso instrumento normativo.

O artigo 1º desse Decreto diz que fica delegada competência ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República para, observadas as disposições legais e regulamentares, praticar os atos de provimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS no âmbito da Administração Pública Federal.

O seu § 1º estende essa delegação para nomeação dos exercentes de cargos em comissão em relação a diversos órgãos que especifica, entre eles, a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a Secretaria Especial de Políticas para a Promoção de Igualdade Racial e outras secretarias especiais e órgãos ligados à Presidência da República.

Por sua vez, prescreve o seu § 2º que para os fins do disposto no caput, os Ministros de Estado e as autoridades referidas no § 1º encaminharão à Casa Civil da Presidência da República, mediante Aviso, as propostas para o provimento de cargos, acompanhadas das respectivas minutas de portaria.

Pela conjugação do § 2º com o caput, conclui-se que a competência para nomear os titulares de cargos em comissão do Grupo Direção e Assessoramento Superior, os conhecidos e cobiçados DAS, é do Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, pois os demais Ministros de Estado limitar-se-ão a formular propostas de admissão no serviço público, acompanhadas das respectivas minutas de portaria de nomeação.

O art. 2º delega para Ministro de cada área a prática de atos para provimento ‘das funções Gratificadas’ (1)], ‘das Gratificações de Representação’ (2) e ‘de cargos efetivos’ (3).

Verifica-se que aos servidores concursados reservou-se como autoridades competentes para praticar os atos de nomeação, as mesmas para praticar os atos de provimento de meras funções gratificadas. Até nisso o servidor efetivo foi desprestigiado. Entretanto, o texto ressalvou dessa delegação o provimento de cargos de titulares de órgãos jurídicos, cujas indicações deverão ser submetidas ao Advogado-Geral da União. Dentre esses cargos, nem todos conhecidos pelos que militam na área jurídica, constam os de Procurador-Geral da União, de Procurador-Geral da Fazenda Nacional, de Consultor-Geral da União e de Corregedor-Geral da Advocacia da União. Por esquecimento, ao que parece, faltou o cargo de Advogado-Geral da Fazenda Nacional, para completar a simetria. Sem um organograma é bem difícil saber quem é o Chefe Geral na área jurídica da União. Outrossim, o texto refere-se, impropriamente, a provimento ‘das Gratificações de Representação’, como se gratificações fossem cargos. Convém que fique registrado o equívoco para a clareza do direito administrativo.

Finalmente, o confuso art. 4º prevê a subdelegação de competência do Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República para os demais Ministros de Estado, porém, sem prejuízo de suas atribuições, sempre que ‘verificada necessidade administrativa’, hipótese em que a autoridade subdelegada ‘somente poderá proceder ao respectivo ato de exoneração mediante consulta prévia à Casa Civil da Presidência da República’.

A redação é dúbia. Não se sabe se houve equívoco ao mencionar ‘exoneração’ em lugar de ‘provimento’. O texto pode ser entendido, também, no sentido de que, quando o Ministro Chefe da Casa Civil quiser nomear determinado pretendente ao cargo em comissão, o Ministro de Estado da área deverá proceder à abertura de respectiva vaga, efetuando a exoneração necessária, mediante consulta prévia à autoridade delegante. O exercente de cargo ou função de confiança, que já é demissível ad nutum, fica, agora, duplamente vulnerável. Quem tiver sido nomeado pela autoridade subdelegada poderá ser demitido, sempre que a autoridade delegante entender de nomear um outro servidor por ‘necessidade administrativa’. Resumindo: cabe aos Ministros de Estado de diferentes áreas procederem às exonerações, e cabe ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil proceder às nomeações por ‘necessidade administrativa’. Assim não é possível cogitar-se de uma burocracia estatal, competente e eficiente. Os servidores passarão a ser servidores de Ministros e não do Estado, como deveriam ser.

Enfim, o decreto é bastante confuso. O certo é que tudo caminha para uma gastança pública sem igual.

Falando em gastança, muito oportuno o artigo publicado no Jornal Valor, de autoria do jurista Ives Gandra da Silva Martins sobre ‘Vacas sagradas tributárias’, referindo-se aos mitos que povoam as páginas dos jornais, que seriam autênticas ‘vacas sagradas’ como as intocáveis da Índia.

Segundo suas palavras, a primeira vaca sagrada é: “O Estado, via tributos, é um bom redistribuidor de riquezas”. Mentira. O Estado tem sido um bom repassador de riquezas para os detentores do poder, que se auto-outorgaram fantásticos privilégios, principalmente nos vencimentos e subsídios e na multiplicação desmedida de cargos e funções a permitir, cada vez mais, que os amigos do poder tenham seu futuro assegurado. Exemplo: déficit do setor público previdenciário da Federação, em um ano, R$ 52 bilhões; aplicação da Federação em um ano para saúde do povo, R$ 40 bilhões. Conclusão: o Estado se auto-distribuiu as riquezas, tirando-as da sociedade, através da elevação da carga tributária de 26% para 37% do PIB´(Valor, 24-4-03, B2).

O Decreto sob comento representa exatamente o instrumento repassador de riquezas para os detentores do poder de que fala o jurista Ives Gandra, com muita propriedade e visão da realidade.

Medidas da espécie irão esvaziar o conteúdo financeiro das duas reformas em andamento. Quando elas forem, efetivamente, implantadas novas reformas haverão de ser feitas para tapar os buracos até então abertos. O nível de tributação acabará saltando dos atuais 37% do PIB para 40%, 50% ou 60% com um serviço público cada vez pior. O serviço público só vai melhorar com a formação de uma burocracia estável e competente, formada por servidores concursados, que atualmente estão alijados dos postos relevantes da administração pública. Incapaz de diagnosticar as causas dos graves problemas que afligem a sociedade, o governo vive combatendo os efeitos buscando recursos e mais recursos financeiros, via tributação, de um lado, e endividamento interno e externo, de outro lado, para a grande alegria do capitalismo internacional. Por isso, ao menor sinal de prosperidade de um determinado setor lança-se um tributo escorchante e desestimulador da atividade produtiva, por meio de expedientes nada éticos, destinados a confundir a opinião pública.

Só para exemplificar, hoje, pretende-se cobrar, com respaldo da opinião pública, novo imposto de renda sobre os proventos e pensões dos inativos, sob a denominação de contribuição social dos aposentados e pensionistas. Nenhum leigo sabe que punir apenas os aposentados e pensionistas com um duplo imposto de renda incorre em inconstitucionalidade, por violação do princípio da isonomia tributária. Aliás, alguns juristas, também, não o sabem, por isso, aplaudem a iniciativa governamental. Chamam isso de reforma da previdência, que seria necessária para cobrir os rombos. Só que por conta de uma outra reforma, a tributária, o governo está retirando 20% da receita da Seguridade Social, onde se insere a Previdência Social (art. 2º da Pec nº 41/03). De duas uma: ou o sistema gera receitas além do necessário para o custeio das despesas, ou, pretende-se aumentar o alegado rombo, possivelmente, para justificar novas reformas no futuro.

Todo o ‘debate’ sobre a reforma da previdência, divulgado pela mídia não passa de uma farsa. Absolutamente em nada contribui para o esclarecimento da verdade. Seus autores ou atores ficam, como que ventríloquos, apregoando necessidade de reforma estrutural para refazer o cálculo atuarial, com vistas ao equilíbrio financeiro do sistema, sem jamais mencionar o fato de que o sistema está desequilibrado por atos de sabotagem. Quem desvia recursos da previdência está sabotando o sistema!

Outros, mais afoitos, chegam a afirmar, com ar doutoral, que é preciso elaborar Lei de Responsabilidade Previdenciária, numa supina demonstração de ignorância da matéria. Ora, os problemas devem se sanados com a efetiva aplicação das leis em vigor: LC nº 101/00 (LRF); Lei nº 8.429/92 (define atos de improbidade administrativa); Lei nº 1.079/50 (define crimes de responsabilidade); Lei nº 10.028/00 (define crimes contra as finanças públicas), além do art. 85, V e VI da CF, que definem como crime de responsabilidade os atos que atentam contra a probidade na administração e a lei orçamentária, respectivamente. Se essas leis estivessem sendo aplicadas não teríamos os rombos, os desvios, os déficits sistemáticos etc. Poderão objetar alegando que se essas leis forem rigorosamente aplicadas não restará ninguém para governar, porque as punições exacerbadas acabarão afugentando os pretendentes a cargos públicos eletivos. Cabe ao Judiciário temperar a sua aplicação distinguindo, por exemplo, o desvio de verba de um setor para outro setor da administração, com desvio de verba de um setor para o bolso do particular.

Enfim, é preciso parar de vez com a mania de reformar e começar a trabalhar com as ferramentas disponíveis. Não adiante ficar à procura de um sistema ideal que opere, que produza por si só, sem que ninguém tenha que trabalhar. Isso não existe; isso é uma ilusão. Só o trabalho constrói. Destruir o que existe, só pelo prazer de recriá-lo, em nada contribui para solução de nossos problemas, que são múltiplos e complexos, próprios de uma sociedade heterogênea.

Notas de rodapé:

(1) 19.280 funções gratificadas, nos termos do art. 26 da Lei nº 8.216/91.

(2) Gratificações pagas a servidores exercentes de cargos e funções na Presidência da República, inclusive nos órgãos que a integram, e na vice-Presidência da República, conforme art. 20 da Lei nº 8.216/921.

(3) Servidores concursados, na forma da Constituição Federal.

Kiyoshi Harada é professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de SP

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