Autor:Roberto Wanderley Nogueira (*)
O Brasil é talvez o único país do planeta em que as inconstitucionalidades tendem a perpetuar-se, sobranceiras, e as manifestações legítimas do poder público, todavia e infelizmente, não. É um enredo impressionante e algo surrealista o que de fato se observa no cenário institucional da nação.
Sobre a hipótese da denominada Lei da Bengalinha, não pode haver nobreza no projeto que distende o tempo de permanência de juízes, desembargadores e ministros nos respectivos tribunais e, por isso, nem na emenda constitucional que o possibilitou apenas para obstaculizar que a atual presidente da República pudesse indicar mais ministros à suprema corte até o fim de seu atual mandato. Nada obstante, o STF já decidiu em sede provisória sobre a incidência imediata dos efeitos da Emenda Constitucional 88/2015 aos membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União, ressalvando à lei complementar de iniciativa da suprema corte o desate da mesma matéria quanto aos demais órgãos do Poder Judiciário (ADI 5316, relator ministro Luiz Fux)[1].
Pois bem. Essa emenda e todos os seus consectários são precariedades jurídicas, obtidas pelo açodamento dos procedimentos legislativos próprios, inadequações de mérito ou pela expressa e frontal inconstitucionalidade de suas iniciativas. Em todos os casos, observam-se vícios que agravam a integridade da República e da separação dos poderes políticos que a conformam, por vezes de modo até bastante descerimonioso.
O STF, agora, está sendo chamado a se pronunciar acerca de uma estranha lei complementar de iniciativa arbitrariamente substituída pelo Congresso Nacional (originária do PLS 274/2015 do Senado Federal), em detrimento do próprio STF, quanto aos quadros do Poder Judiciário, e também da Presidência da República em relação ao corpo de servidores públicos do Poder Executivo. Trata-se da Lei Complementar 152, de 3 de dezembro de 2015, que alargou o tempo de permanência em atividade de todos os servidores públicos em um lustro, após derrubada do veto total ao anterior PLS 274/2015.
Antes do veto mencionado, uma decisão administrativa do colendo tribunal proferida em outubro de 2015 teria decidido, por maioria, que não há prerrogativa de iniciativa de leis complementares, mas só para leis ordinárias. O veto presidencial ao PLS 274/2015 contrariou esse entendimento. Mas, ainda que não fosse assim, uma decisão administrativa não tem simplesmente o condão, de per si, de revogar manifestação da jurisdição constitucional em sentido contrário que o próprio STF editou em sede de ADI 5316, e está valendo erga omnes, ainda que transitória seja a sua conformação legal.
Deve ser ressaltado, além do mais, que a magistratura precisa reciclar-se e nunca sofrer estagnação por causa de interesses corporativos, de grupos ou até mesmo pessoais, os quais certamente vêm sendo ativados com o propósito de garantir aos membros dos tribunais brasileiros, sobretudo, uma permanência expandida em detrimento da renovação de seus quadros e no favor do congelamento de suas práticas nem sempre as mais contemporâneas. Nas atuais circunstâncias históricas e conjunturais, pode-se afirmar que não há altruísmo na vontade de permanecer. As exceções confirmam essa lei sociológica. Sem pretensões generalizantes, divisam-se, comumente, os privilégios da carreira e dos cargos e das funções nelas compreendidos, sobretudo nos tribunais, cúpulas das diversas organizações judiciárias. A presidente da República fez um bem enorme à nação e ao Poder Judiciário, em particular, possibilitando-o que se livrasse, naquele momento, de uma fogueira ardente de vaidades em torno da qual esse projeto obtuso acabou oportunamente vetado em seu todo, muito embora o veto tenha sido rapidamente derrubado pela dicção do Congresso Nacional, sobre o qual se debruçam muitas pressões sociais. O veto presidencial foi proposto conquanto não haja reconhecido fonte de iniciativa constitucional para a proposta em alusão, quer presidencial (artigo 61 da Carta Política) quer da suprema corte (artigo 93 da Constituição Federal).
É natural esperar que o STF, com muitíssimo mais razão, se conduza diante deste caso, tendo em vista a rejeição ao veto presidencial aposto à estranha e inconstitucional Lei da Bengalinha (LC 152/2015) do mesmo modo quando o fizera ao interromper a efetividade de uma emenda constitucional já promulgada — a EC 73/2013 — que criou e mandou instalar em seis meses quatro novos TRFs com sedes nos estados do Paraná (6ª Região Judiciária Federal), Minas Gerais (7ª), Bahia (8ª) e Amazonas (9ª).
Outrossim, com o advento, ainda que precário, da LC 152/2015, os tribunais do país acabam de se tornar “reserva de mercado” para poucos. No momento, esgarçou-se o sentido de alternância e de transcendência do serviço judiciário nacional. A notícia dessa rejeição ao veto presidencial, sobre traduzir, pelo açodamento, uma manifestação petulante e antirrepublicana, traduz um desserviço à nação e uma forma de petrificação das rotinas e dos procedimentos pelos quais se deveriam guarnecer os juízes e tribunais de mais eficiência e celeridade em suas atribuições cotidianas, ao tempo em que valorizadas as respectivas carreiras da magistratura nacional. Esse advento, ademais e principalmente, importa na vitória do fisiologismo sobre a impessoalidade na dinâmica das carreiras judiciais com iniludíveis reflexos na atividade jurisdicional e no amparo legal da cidadania. O que sobejar a isso não é historicamente sincero nem antropologicamente exato, e deve ser refutado.
Com efeito, sem uma ação decidida da suprema corte, vamos ter pelo menos mais cinco anos de predomínio das forças coloniais que insistem em não largar o “osso” em suas trincheiras ou casarões sempre vetustos, também chamados de tribunais pela República malbarata. A esperança, tênue, é verdade, está agora no STF.
A nação, perplexa, pede que o STF declare a inconstitucionalidade da mencionada Lei Complementar 152/2015, editada com violação das regras constitucionais do artigo 61, II, “c”, e 93, VI, da Carta Política. Um tipo de negligência desprezível do ponto de vista dos valores constitucionalizados no país e que só pode ser razoavelmente explicada pela lógica da “supremacia dos interesses” da qual não se compraz a República, e muito menos a suprema corte. Se não for assim, para que a Constituição Federal, enfim, se não é capaz de gerar limites objetivos eficazes à sanha dos que ainda hoje se pretendem donatários do poder de Estado? Uma Constituição que não constitui, mas é constantemente defraudada, pode ser tudo, argumento dissimulatório, inclusive, menos uma autêntica Constituição no sentido de Ferdinand Lassale: “A Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual baseia-se a organização do Direito público dessa nação”[2].
Aliás, condestáveis parlamentares em número não desprezível mantêm pendências mais ou menos graves nos tribunais. Podem ter sinalizado com um afago a essa gente pretoriana então prestes à aposentação que de modo distinto teria muito a oferecer a outros setores da vida social, antes de inflacionar as carreiras da Justiça e abortar, mediante lobbies absurdos, as legítimas aspirações dos que desejam igualmente contribuir para o bem do país e constituem as novas gerações sem as quais um país não se reoxigena.
Nas mãos da suprema corte, o futuro da magistratura nacional e o que resta de crédito social sobre ela.
Espera-se, pois, com sobranceiro otimismo, que o STF cumpra o seu dever de velar pelo texto constitucional e guarnecê-lo para que, admitida de vez à discussão a ADI 5.430, de relatoria do não menos respeitável ministro Celso de Melo, seja concedida a medida liminar requestada pelas requerentes Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) de suspensão dos efeitos da Lei Complementar 152/2015 (Lei da Bengalinha), devido à inconstitucionalidade formal nela observada, conforme já estimado na ADI 5.316 (relatoria do ministro Luiz Fux), sendo, afinal, declarada a inconstitucionalidade da referida lei complementar para todos os fins de Direito.
Autor:Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).