Jarbas Andrade Machioni
(Ou “Como é preciso ter fé em nossas sábias autoridades”)
SÃO PAULO – À noite na TV.
– Boa noite, senhoras e senhores. Estamos aqui com nosso estimado governador Sálveo Lento, que veio especialmente para nossos estúdios esclarecer a população sobre os acontecimentos dos últimos dias em nossa amada cidade. Boa noite, governador.
– Boa noite.
– Governador, o senhor pode explicar a situação da cidade?
– Muito tranqüila.
– Mas…
– A situação está muito tranqüila, já disse.
– Mas e os atentados? Insiste o entrevistador.
– Isso não é nada. A situação está sob controle total. Ordenei a P.. P.., como é que chama mesmo? P… Esse negócio que anda com armas… que controla tudo?
– PCC, governador?
Responde o governador, sem muita convicção:
– É… isso mesmo… TTC…
O ajudante-de-ordem corre para contornar:
– Governador, não seria PM, Polícia Militar?
O rosto do governador ilumina-se, volta para o entrevistador:
– Isso, a PM. Ordenei à PM controle absoluto e total da situação!
– Mas governador – revolta-se o entrevistador – e as mortes dos policiais, e dos civis que chegam a 40?! E esses 100 ataques?
– Ora, que ataque? A seleção… o Parreira é sempre assim, deixa todo mundo na defesa, fica sem ataque mesmo…
– Não governador, estamos falando dos ataques dos bandidos, que inclusive deixaram a população sem ônibus!
O governador enfastiado:
– Ah, meu Deus… Será possível?! Que foi agora…
– O Senhor podia explicar como está realmente a situação…
– O que há é má vontade do… do… ahhh…. do… como é que chama mesmo aquele negócio que… vive nas ruas… é…
O entrevistador levanta as sobrancelhas sem entender… o ajudante-de-ordem aproxima-se tentando entender. O governador continua:
– É… aquele negócio que vive nas ruas… aliás enche as ruas as calçadas… (sorri).
— Ratos, governador? – arrisca o entrevistador, já ironicamente.
– Não… que enche os ônibus… atrapalha o usuário… atrapalha o trânsito… é… povo! Isso, lembrei, povo!
Sorrindo para si mesmo, pensa alto o governador:
– Gozado lembrei fácil dessa vez… será porque é época de eleições? E eu nem sou candidato!
Torna o entrevistador:
– O que tem o povo, governador? O senhor não gosta do povo?
– Lógico que gosto! O povo é um animal útil, paga tributos, dá votos…
– Governador, mas o povo está a pé, tentando voltar para as casas, assustado!
– Que bobagem! Isso é ginástica? E a qualidade de vida que isso proporciona? A imprensa distorce tudo! Tudo! Veja bem, meu caro repórter, isto tudo é qualidade de vida. Andar a pé! Deixem os carros na garagem! A classe média só quer saber do “bem – bom”!
– Mas tem gente que mora a duas horas do trabalho, isso se tiver ônibus!
– Cada um com seus problemas! Eu mesmo estou fazendo um esforço sobre-humano! A essa hora já ia tomar minha sopinha, já estava de pijama! Meus fiéis escud… digo, secretários já estavam descansando… O de segurança disse que inclusive estava na melhor parte do tal de Counter Strike no computador (meus netos adoram!)… todos interromperam sua hora de lazer para atender a imprensa, atender telefonemas de seus subalternos!
– Governador, não é um pouco cedo, diante da situação para estar no lazer? São nove horas apenas?
– Lógico que não. E veja mais, eu mesmo tive que colocar o terno por cima do pijama…
O entrevistador interrompe, chamando os comerciais.
Alguém se aproxima e pergunte se o governador quer um café.
– Ah! – diz o governador – até que enfim uma pergunta pertinente! Quero, com duas colheres de açúcar.
Volta ao ar. O entrevistador pergunta:
– Governador, de quem é a culpa de tudo isso? Dessa situação?
– Da elite formada por uma minoria branca! Eu tenho ódio dessas pessoas! Se pudesse eu “prendia e arrebentava” (acho que já ouvi esse frase em algum lugar…)! Essa burguesia branca é uma minoria cínica, que explora o país há centenas de anos! Eles mentem! Só querem estar nos palácios para ter as benesses do governo!
– Governador, mas o senhor está no PFL!!?
– Eu sempre fui de esquerda, o PFL sempre foi um partido ligado a Fidel Castro! Agora podemos revelar tudo! Tudo!
– Mas o senhor é branco, isso é uma “mea culpa”?
– Você é cego mesmo! Ce não vê que eu tenho todos os pés na cozinha?! Olha minha ginga bro! Tá maluco, véio? Tô ligado que ce nunca me viu num baile funk!
Voltando-se para o ajudante-de-ordem:
– Aju’, mano véio! Bota um som!
O ajudante liga o aparelho de som.
– Olha só!
E sai da cadeira o govê, digo senhor governador, requebrando ao som dos “bailão funk”!
O entrevistador fala:
– Bem encerrarmos por aqui nossa entrevista
– Aaaaaiiii!
– Que foi governador?
– A ciática! Uii! Aiii! Chamem o Jatene!
Entram, rapidamente, os comerciais.