O início da Reforma do Poder Judiciário

Renato Bernardi

Procurador do Estado de São Paulo
Professor de Direito Constitucional das FIO
Mestre em Direito Constitucional
Doutorando em Direito Tributário

Depois de mais de uma década de acirrados debates, aos 31 de dezembro passado foi promulgada a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a qual se convencionou chamar de Emenda Constitucional da Reforma do Poder Judiciário.
Em primeiro lugar há que se ressaltar que o mais importante não é o texto da reforma, mas sim a disposição do Poder Legislativo, legítimo representante dos cidadãos brasileiros, de trabalhar em busca de uma Justiça mais próxima do povo, mais célere e, exatamente por isso, mais justa.
Em relação às disposições da Emenda Constitucional, é bom que se frise que tal não será responsável, por si só, por conferir agilidade aos feitos que atualmente se avolumam no Judiciário brasileiro. A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, deve ser vista sim como o início de uma desejada reforma Judiciária, à qual se deve seguir um melhor aparelhamento material e pessoal do Poder Judiciário e uma adequação das leis materiais e processuais em vigor. Se a atividade legislativa limitar-se à promulgação da Emenda Constitucional referida, de nada terá adiantado escrever na Constituição Federal o atual texto do inciso LXXVIII do artigo 5o, que determina, de forma cogente: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Se à Emenda Constitucional não se seguir uma reforma das leis processuais e da administração do Poder Judiciário, referida disposição terá, tão somente, caráter principiológico, nada de novo trazendo ao cidadão brasileiro.

Das disposições constitucionais criadas, as que mais suscitam debates são aquelas referentes às súmulas vinculantes (artigo 103-A da Constituição Federal) e ao controle externo do Poder Judiciário (artigo 103-B da Constituição Federal). Ambas disposições contam com abalizadas opiniões, tanto em sentido contrário como em seu favor.
As súmulas sempre existiram em nosso País e eram tidas somente como fontes secundárias do Direito. De novo, tem-se que a Emenda Constitucional criou não a súmula, mas trouxe a possibilidade de elas se revestirem de caráter vinculante a partir do voto de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal, impondo seu atendimento aos os demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal.
Isso significa que os Ministros do Supremo Tribunal Federal passam a dispor do poder de colocar um ponto final nas controvérsias judiciais atuais e nas discordâncias estabelecidas entre órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, dissensos capazes de causar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de ações com o mesmo objeto.
Contra tal poder conferido ao Supremo Tribunal Federal pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, levantam-se vozes que fundamentam seus argumentos no provável “engessamento” do Poder Judiciário, argüindo que a interpretação de uma questão poderá ser retirada de um julgador, que estará obrigado a acatar decisão de órgão jurisdicional de nível superior, o que seria capaz de ferir de morte a independência dos juízes, podendo se antever um ranço de autoritarismo em tal procedimento. Por outro lado, os que se põem em favor da súmula vinculante argumentam com o aspecto prático de tal medida, que será capaz de fechar as portas do Poder Judiciário para discussões intermináveis nos quatro cantos do País sobre questões para as quais o Supremo Tribunal Federal já tenha firmado posição, contribuindo, de forma efetiva, para a celeridade da justiça, seja ela prestada dentro ou fora de uma lide, já que inclusive a Administração Pública deverá pautar-se pelo atendimento do quanto sumulado. Vale ressaltar que em relação às súmulas vigentes, a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, em seu artigo 8o, fixou que somente terão caráter vinculante após a respectiva confirmação pela mesma maioria qualificada de 2/3 dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Pesados os prós e os contras, deve-se levar em consideração que somente o Supremo Tribunal Federal, por seus Ministros, é que poderá conferir caráter vinculante às súmulas; some-se a isso o fato de que se trata da mais alta Corte Jurisdicional do País, que, embora atualmente composta a partir de critérios políticos, é conhecida pela retidão de conduta e zelo pelas disposições constitucionais vigentes, digna de que o povo brasileiro possa continuar nela depositando a esperança de que os julgamentos continuem sendo pautados pelo conhecimento jurídico-social e pela prudência, não impondo aos demais Magistrados brasileiros e aos jurisdicionados interpretações divorciadas do razoável.
A novel disposição constitucional instituiu, além da súmula vinculante, o que convencionou designar de Conselho Nacional de Justiça, órgão de composição multifacetária, formado por membros do Poder Judiciário (STF, STJ, TST, um desembargador de Tribunal de Justiça, um Juiz Estadual, um Juiz de TRF, um Juiz Federal, um Juiz de TRT, um Juiz do Trabalho), do Ministério Público (um membro do MP da União, um membro de MP Estadual), OAB (dois advogados) e dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Por possuir em seu quadro pessoas estranhas à função jurisdicional (MP, OAB e cidadãos) é que se convencionou rotular o órgão de externo ao Poder Judiciário. Claro é que referido Conselho não terá função jurisdicional, mesmo porque composto por pessoas desinvestidas de poder jurisdicional. Ao polêmico órgão caberá, como genericamente consta do § 4o, do artigo 103-B da Constituição Federal, o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.
Mais uma vez, vozes favoráveis e contrárias ao novo órgão surgiram de nomes de peso no cenário jurídico nacional. A favor, ao estilo do adágio “quem não deve não teme”, estão aqueles que pregam uma maior e mais célere apuração dos abusos cometidos por pessoas investidas do poder de dizer o direito, que pregam maior transparência nos procedimentos disciplinares internos ao Poder. Em pólo diametralmente oposto, estão aqueles que constatam em tal órgão uma ofensa à independência do Poder Judiciário, preceito fundamental insculpido no artigo 2o da Constituição Federal, sendo oportuno citar a existência de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade tramitando no Supremo Tribunal Federal questionando a conformidade do novo órgão, criado a partir de Emenda Constitucional (Poder Constituinte Derivado Reformador) com os ditames constitucionais vigentes instituídos pelo Poder Constituinte Originário Revolucionário.
Se a análise do embate entre as opiniões contrárias e as opiniões favoráveis ao Conselho Nacional de Justiça não transbordarem os limites da técnica constitucional, não há como se negar a inconstitucionalidade na composição de tal órgão, já que se criou a possibilidade de pessoas estranhas ao Poder Judiciário decidirem sobre os acertos e os erros daqueles que efetivamente compõem referido Poder, não na área jurisdicional, mas, principalmente, na seara disciplinar, acabando com a independência do Poder Judiciário, dogma constitucional que constitui cláusula pétrea, imune, pois, à mutação constitucional, ex vi o disposto no inciso III, do § 4o, do artigo 60 da Constituição Federal, ainda mais ao se constatar que os cidadãos componentes do órgão responsável pelo controle do Poder Judiciário serão indicados pelo Poder Legislativo, um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal (artigo 103-B, inciso XIII).
A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, não cuidou somente da criação da súmula vinculante e do controle externo do Poder Judiciário. Trouxe outras importantes inovações constitucionais, capazes de contribuir, sem dúvida, para a prestação de uma justiça em tempo razoável.
Além disso, veio também a dirimir dúvidas jurisprudenciais e doutrinárias que gravitavam pelo universo jurídico. Uma das questões, agora pacificada, é a antiga discussão da recepção dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil em nível de norma constitucional ou legal. Nos termos do disposto no recém criado § 3o, do art. 5o da Constituição Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Ainda em referência ao direito internacional, por determinação constitucional, fica o Brasil submetido à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (art. 5o, § 4o).
No campo da intervenção federal – medida excepcional que resulta na supressão temporária da autonomia de um ente da Federação – foi suprimida a possibilidade de ajuizamento de Ação Direita de Inconstitucionalidade Interventiva no Superior Tribunal de Justiça, uma vez que passou a ser do Supremo Tribunal Federal a competência para processo e julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade Interventiva no caso de recusa à execução de lei federal por Estado-Membro da República Federativa do Brasil (art. 36, inciso III), ficando revogado o disposto no inciso IV do mesmo artigo.
No que tange ao interesse que os concursos públicos para ingresso nas Carreiras da Magistratura e do Ministério Público despertam nos recém formados, a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, veio como uma ducha de água fria, já que passa a ser exigência para inscrição no concurso de ingresso em tais carreiras …no mínimo três anos de atividade jurídica… (art. 93, inciso I e art. 129, § 3o).
A obrigação de o Juiz titular residir na Comarca onde presta sua função jurisdicional agora foi atenuada em nível constitucional, já que possível a residência fora da Comarca com autorização do Tribunal, situação fática recorrente, mesmo antes da vigência da novel redação do inciso VII do art. 93 da Constituição Federal.
Tendo em vista a transparência que deve pautar os atos de todos os Poderes da União e em homenagem ao princípio constitucional da publicidade, a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, determinou: as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros (art. 93, inciso X).
Em busca da tão sonhada celeridade da prestação jurisdicional e para por fim à prática de somente ser distribuído um determinado número de processos aos julgadores, acumulando-se o que sobejar, o art. 93, inciso XV, prevê que a distribuição de processos será imediata, em todos os graus de jurisdição. Sem dúvida a determinação é salutar, mas de pouco efeito se for tida como única, já que, embora imediatamente distribuídos, os processos ficarão com os julgadores, estes em pequeno número para tamanha quantidade de feitos. Apenas a título de exemplo, no Estado de São Paulo, aproximadamente quinhentos mil processos aguardavam distribuição antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. Por tal motivo, ainda que sob pena de repetição, lembre-se que “A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, deve ser vista sim como o início de uma desejada reforma Judiciária, à qual se deve seguir um melhor aparelhamento material e pessoal do Poder Judiciário e uma adequação das leis materiais e processuais em vigor”.
Medida capaz de promover a defesa do próprio Poder Judiciário é a chamada “quarentena”. Nos termos do disposto no criado inciso V do art. 95 da Constituição Federal, é vedado ao juiz exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. Isso acaba com o mau vezo daquilo que se convencionou chamar de “embargos auriculares” nos cafés e gabinetes dos foros em geral, oportunidade em que magistrados recém aposentados, que não se pautavam pela ética, procuravam os colegas da ativa para solicitar especial atenção a determinado interesse que, por ventura, estivessem patrocinando em juízo. Com a obrigatória reserva dos três anos, a possível influência do aposentado estará, ao menos, atenuada.
Criou-se polêmica com a “federalização” da jurisdição de violações aos direitos humanos. A partir da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal (art. 109, § 5o). Ora, seriam as Justiças Estaduais incapazes de processar e julgar tais violações? Além do mais, muito extensos os limites do subjetivismo para se adjetivar de grave ou não uma violação dos direitos humanos.
Por outro lado, a Justiça do Trabalho é assunto de destaque na Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. Com a alteração do disposto no art. 114 da Constituição Federal, é perante ela que serão processadas e julgadas todas as causas pertinentes ao trabalho e não somente à relação de emprego, o que, em termos práticos, significa dizer que qualquer pessoa, mesmo que trabalhe como autônomo ou que não tenha registro em carteira, poderá pleitear direitos previsto em lei batendo às portas da Justiça do Trabalho.
Mais uma discussão é terminada com o texto da Emenda Constitucional, já que nos termos do disposto no inciso VI do art. 114 da Constituição Federal, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho, ponto sobre o qual divergiam doutrinadores e demais operadores dos direito, uns comungando do entendimento de que tais ações deveriam tramitar pela justiça comum e outros entendendo que o processo e o julgamento competiam à justiça obreira. Ces’t fini !
Contudo, um problema técnico vai movimentar o Judiciário em relação à ampliação da competência da Justiça do Trabalho. No texto do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) aprovado pela a Câmara dos Deputados, competiam à Justiça do Trabalho, também, o processo e o julgamento de questões trabalhistas envolvendo os servidores públicos, causas que eram afetas à Justiça Comum. No Senado Federal, a PEC sofreu emenda no sentido de se excluírem tais casos da competência da Justiça obreira. No entanto, para surpresa geral, o texto promulgado estabelece competir à Justiça do Trabalho as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 114, inciso I). Por tal motivo, cogita-se o ajuizamento de ADIN, na busca da correção do equívoco, mantendo-se o texto aprovado pelo Senado Federal, que exclui da competência da Justiça do Trabalho questões trabalhistas envolvendo funcionários públicos, exatamente como ocorria antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
A par disso, foi aumentado em dez o número de componentes do Tribunal Superior do Trabalho, agora composto por vinte e sete Ministros (art. 111-A).
Excetuadas questões técnicas pontuais, essas são as principais inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
Para obter o texto completo da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, acesse www.presidencia.gov.br e clique em “legislação”, “Constituição”, “Constituição Federal 1988”, “Emendas Constitucionais” e “45, de 8.12.2004”.

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