O instituto da convalidação no ato administrativo e a ausência de lesividade ao princípio da legalidade à luz do artigo 55 da Lei 9.784/99
Por Guilherme Arruda de Oliveira e Daniel Pacheco Pontieri
o ensaio transcrito a seguir nos mostra a importância da convalidação no ato administrativo tendo por escopo uma análise do artigo 55 da Lei nº 9.784/99 bem como a observação intrínseca do princípio da legalidade, mostrando-nos de forma sintetizada que a princípio não há lesão ou ameaça de lesão à legalidade consagrada constitucionalmente pela manutenção de um vício sanável na esfera administrativa, resguardando-se ao máximo a supremacia do interesse público.
O direito administrativo brasileiro passa cotidianamente por diversas alterações de ordem normativa, gerando, pois uma nova visão sobre diferentes assuntos, visto que o princípio da legalidade, sendo pedra angular do Direito Público não pode se afastar da realidade fática dos mais variados acontecimentos envolvendo o interesse público e à Administração.
Desta forma a Lei Federal nº 9.784/99 trouxe a possibilidade da aplicação do instituto da convalidação do ato administrativo. Porém, para uma análise mais perfunctória do tema, necessário se faz uma abordagem conceitual do ato administrativo, bem como do verbete convalidação.
O mestre Hely Lopes Meirelles (2005, p.149) conceitua o ato administrativo “como sendo toda manifestação unilateral da vontade da Administração Pública, que agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir,resguardar; transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”.
Por oportuno, salienta-se que o conceito trazido pelo saudoso Professor refere-se ao ato administrativo unilateral, ou seja, aquele que se forma com a vontade única da Administração conhecido também por ato administrativo típico. (MEIRELLES, 2005).
Já o professor José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 154) traduz a convalidação como:
O processo que se vale a administração para aproveitar atos administrativos com vícios superáveis, de forma a confirma-los no todo ou em parte”. Lembra o referido autor que o “instituto da convalidação só é admissível para a doutrina dualista, isto é, por aqueles que aceitam que os atos administrativos podem ser NULOS ou ANULÁVEIS.
Feita essa breve digressão, retornamos ao conteúdo da Lei nº 9.784/99 que em seu artigo 55 preceitua que: “Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis, poderão ser convalidados pela própria administração”.
Assim, a convalidação no Direito Administrativo tem “a mesma premissa pela qual demarca a diferença entre vícios sanáveis e insanáveis no Direito Privado”. (CARVALHO FILHO, 2005, p.154).
Hely Lopes Meirelles (2005, p.174) embora aceitando o instituto da convalidação, faz duras críticas quanto ao ato anulável no Direito Administrativo, vejamos:
Todavia, continuamos a não aceitar o chamado ato administrativo anulável no âmbito do Direito Administrativo, justamente pela impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre o público e não ser admissível a manutenção de atos ilegais, ainda que assim o desejem as partes, porque a isto se opõe a exigência da legalidade administrativa.
Porém, data máxima vênia, ousamos discordar do referido autor e perfilhamos aqui a concepção da doutrina dualista, isto é, para nós os atos administrativos de acordo com a gravidade e lesividade do vício que os inquinam, podem ser nulos ou anuláveis, sendo por fim perfeitamente viável a aplicação da convalidação, uma vez que ao menos em tese não há ofensa ao principio da legalidade.
Com propriedade observa José dos Santos Carvalho Filho (2005, p.145): “É que a regra geral deve ser a da nulidade, considerando-se assim graves os vícios que inquinam o ato, e somente por exceção pode dar-se a convalidação de ato viciado tido como anulável”.
Ora, o artigo 55 da Lei nº 9.784/99 referenda bem a importância da convalidação no direito público, sendo que é condição sine qua non a AUSENCIA DE LESÃO AO INTERESSE PÚBLICO, bem como AUSÊNCIA DE PREJUÍZO A TERCEIROS, para que o ato possa ser convalidado.
Weida Zancaner (1996, p.56) nos ensina que “o princípio da legalidade não predica necessariamente a invalidação, como se poderia supor, mas a invalidação ou a convalidação, uma vez que ambas são formas de recomposição da ordem jurídica violada”.
De forma brilhante Seabra Fagundes (O Controle dos Atos Administrativos Pelo Poder Judiciário, 4ª ed. 1967) expõe que:
A infringência legal no ato administrativo, se considerada abstratamente, aparecerá sempre como prejudicial ao interesse público. Mas por outro lado, vista em face de algum caso concreto, pode acontecer que a situação resultante do ato, embora nascida irregularmente, torna-se útil aquele mesmo interesse. Também as numerosas situações pessoais alcançadas e beneficiadas pelo ato vicioso podem aconselhar a subsistência dos seus efeitos.
Vladimir da Rocha França (in Invalidação administrativa na Lei Federal nº 9.784/99, RDA, julho-setembro 2001, nº 225, p.242) tecendo comentários acerca do art. 55 da mencionada norma, afirma que:
(…) No regime jurídico-administrativo federal, são sanáveis os vícios que não atinjam indelevelmente o conteúdo do ato, permitindo-se a preservação de sua eficácia mediante a expedição do ato administrativo de convalidação. Dito de outro modo, constituem defeitos sanáveis as falhas que, quando corrigidas, não impediram a repetição do ato viciado.
José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 154) explica em sua doutrina que existem atualmente 03 (três) formas cabíveis de convalidação. Desta forma, adotaremos o sistema de classificação do renomado jurista por questões didáticas.
Marcelo Caetano (apud CARVALHO FILHO, 2005, p. 154) ensina que a ratificação, ou seja, a primeira forma de convalidação “é o acto administrativo pelo qual o órgão competente decide sanar um acto inválido anteriormente praticado, suprindo a ilegalidade que o vicia”.
Diogo Figueiredo Moreira Neto (1989, p. 170) leciona ainda que “a autoridade que deve ratificar pode ser a mesma que praticou o ato anterior ou um superior hierárquico, mas o importante é que a lei lhe haja conferido essa competência específica”.
A segunda forma, nas preleções de Carvalho Filho ( 2005, p.154) é a reforma, que “admite que novo ato suprima a parte inválida de ato anterior, mantendo sua parte válida”.
Por fim, o citado autor traz a conversão, onde “por meio dela a Administração, depois de retirar a parte inválida do ato anterior, processa a sua substituição por uma nova parte, de modo que o novo ato passe a conter a parte válida anterior e uma nova parte, nascida esta com o ato de aproveitamento”.
É bem verdade que em estrita obediência ao principio da legalidade, nem todos os vícios admitem convalidação.Para José dos Santos Carvalho Filho (2005, p.155):
São convalidáveis os atos que tenham vício de competência e de forma, nesta incluindo-se os aspectos formais dos procedimentos administrativos. Também é possível convalidar atos com vício no objeto, ou conteúdo, mas apenas quando se tratar de conteúdo plúrimo, ou seja, quando a vontade administrativa se preordenar a mais de uma providencia administrativa no mesmo ato, aqui será viável suprimir ou alterar alguma providência e aproveitar o ato quanto às demais providências, não atingidas por qualquer vício.
Salientamos ainda que o poder de convalidação sofre duas importantes limitações, estando desta forma ligado ao princípio da legalidade. Nesse sentido, são barreiras a convalidação: “A impugnação do interessado, expressamente ou por resistência quanto ao cumprimento dos efeitos e o decurso do tempo, com a ocorrência da prescrição, razão idêntica, aliás que também impede a invalidação” (CARVALHO FILHO, 2005, p.165).
Não há aplicando-se o instituto da convalidação no Direito Administrativo qualquer ofensa à integridade do principio da legalidade, visto que existem condições expressas no texto da lei, para que se afigure tal possibilidade.
Desse modo, comungamos com a acertada e brilhante lição do ilustre prof. Celso Antonio Bandeira de Mello (1999, p. 338-9) ao lecionar que:
È de notar-se que a convalidação, ou seja, o refazimento de modo válido e com efeitos retroativos do que fora produzido de modo inválido, em nada se incompatibiliza com o interesse público. Isto é, em nada ofende a índole do Direito Administrativo. Pelo contrario. Exatamente para bem atender a interesses públicos, é conveniente que a ordem normativa reaja de maneiras díspares ante diversas categorias de atos inválidos (…) Daí que a possibilidade de convalidação de certas situações, noção antagônica à de nulidade em seu sentido corrente tem especial relevo no Direito Administrativo. Não brigam com o princípio da legalidade, antes lhe atendem o espírito, as soluções que se inspirem na tranqüilizarão das relações que não comprometem insuprivelmente o interesse público, conquanto tenham sido produzidas de maneira inválida. È que a convalidação é uma forma de recomposição de legalidade ferida.Portanto, não é repugnante ao Direito Administrativo a hipótese de convalescimento dos atos administrativos. (grifo nosso)
Acerca da matéria Odete Medauar (2005, p. 179) traz algumas ponderações:
Levando em conta ainda, a grande relevância do principio da legalidade no direito administrativo, parece inaplicável, nesse âmbito, a teoria das nulidades tal como vigora no direito civil. Assim sendo, se o ato administrativo contém defeitos, desatendendo aos preceitos do ordenamento, é nulo em princípio. A permanência do ato administrativo eivado de ilegalidade tal como foi editado ou mediante ratificação ou convalidação dependerá da natureza do vício, do confronto do princípio da legalidade e de outros preceitos do ordenamento (por exemplo: segurança e certeza das relações jurídicas, convalidação de situações), do sopesamento das circunstâncias envolvendo o caso, da finalidade pretendida pela norma lesada.
Perfilhamos por ora, o ensinamento do insigne mestre Bandeira de Mello, ao afirmar que o instituto da convalidação é uma forma de “recomposição da legalidade ferida”, como citamos anteriormente. Ademais, cremos nós, que determinados atos uma vez convalidados coadunam bem mais com o interesse público do que, se eivados de vícios de legalidade, fossem expurgados do âmbito da Administração. Para isso, basta analisarmos o nexo de causalidade entre as hipóteses de convalidação e os respectivos resultados oriundos da posterior validade do ato administrativo.
Por fim, o próprio Hely Lopes Meirelles (2005, p. 88) discorrendo sobre o principio da legalidade afirma que:
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na Administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”, para o administrador significa “Deve fazer assim”.
Para concretizar nossa linha de raciocínio, colacionamos a importante lição de José dos Santos Carvalho Filho (2005 p.15):
Não custa nada lembrar, por último que, na teoria do Estado Moderno há duas funções estatais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição).Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legisferante.Por isso que administrar é função subjacente a de legislar. O principio da legalidade denota exatamente essa relação: só é legitima a atividade do administrador público se estiver condizente com o disposto na lei.
Ora, se a atividade do administrador se baseia no texto de lei, embora o ato esteja viciado por alguma espécie de ilegalidade, mas observados os requisitos essenciais para a validade do ato anulável, que já tivemos a oportunidade de discorrer em linhas pretéritas, nos afigura perfeitamente válido o ato convalidado. A guisa de conclusão, o seguinte aresto expressa de forma clara nossa posição:
DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. DECLARAÇÃO DE NULIDADE. IRREGULARIDADE NA LEI QUE CRIOU OS CARGOS. CONFLITO ENTRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E O DA SEGURANÇA JURÍDICA. CONCURSO ISENTO DE EIVAS. CANDIDATOS APROVADOS QUE FORAM EMPOSSADOS E ESTÃO A EXERCER O CARGO HÁ MAIS DE UMA DÉCADA. HARMONIZAÇÃO. CONVALIDAÇÃO DO ATO TIDO COMO IRREGULAR. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS.
“No direito público, não constitui uma excrescência ou uma aberração jurídica admitir-se a sanatória ou o convalescimento do nulo. Ao contrário, em muitas hipóteses o interesse público prevalecente estará precisamente na conservação do ato que nasceu viciado, mas que, após, pela omissão do poder público em invalidá-lo, por prolongado período de tempo, consolidou nos destinatários a crença firme na legitimidade do ato. Alterar esse estado de coisas, sob o pretexto de restabelecer a legalidade, causará mal maior do que preservar o status quo.”
Por unanimidade de votos, acolheram os embargos.
(Embargos Infringentes (GR) nº 0143327-2/02, Ac. 1215, 1º Grupo de Câmaras Cíveis do TAPR, Curitiba, Rel. Juiz Conv. Wilde Pugliese. j. 04.04.2002, DJ 26.04.2002). (grifo nosso).
A importância do artigo 55 da Lei nº 9.784/99 muito embora trate tão somente do processo administrativo na esfera da Administração Federal nos mostra que o legislador adotou exatamente a teoria dualista ao tratar das nulidades no Direito Administrativo Pátrio, teoria esta que também adotamos, e como bem vimos, demonstra que a convalidação do ato sequer provoca ameaça de lesão ao principio da legalidade previsto pelo artigo 37, caput, da Constituição da República.
BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.11ª ed. São Paulo: Malheiros,1999.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno.9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 1989.
ZANCANER, Weida. Da Convalidação e Invalidação dos Atos Administrativos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996.