O juiz, o cortador de cana e a aposentadoria no Brasil

Sobre as polêmicas em torno da reforma da Previdência, que ainda persistem, juiz do Trabalho questiona em artigo-carta ao presidente: Se um cortador de cana tem que trabalhar 60 anos para se aposentar, por que um juiz se aposenta com 53?

Erasmo Messias de Moura Fé*

Se um cortador de cana tem que trabalhar 60 anos para se aposentar, por que
um juiz se aposenta com 53? Eu respondo senhor presidente: porque, além de
cortar cana, também estudou. Nascido e criado em Sussuapara, então
município de Picos, no sertão do Piauí — não muito longe e com as mesmas
características de Acauã –, ‘descido mapa’, não aos 7 anos, mas aos 24,
rumo a Mato Grosso do Sul, num Chevette velho em viagem de 6 dias.

Não cortei cana vendendo amendoim no cais do Porto de Santos, mas o fiz
trabalhando na roça com meus pais, e já aos 4 anos, brincava de catar
feijão, milho, arroz e algodão, plantados em terra alheira para partilhar a
colheita — se a seca não os consumisse –, quando não ficava em casa
cuidando dos irmãos menores, ou buscava água potável no rio distante, em
lombo de jerico ornamentado com cangalha e tonel de madeira.

E cortando cana desde pequenino, fui alfabetizado aos 10 anos e estudei até
os 36, quando logrei aprovação no concurso de juiz do Trabalho, sem jamais
deixar de laborar nos canaviais da vida, de sol a sol, e ‘queimar pestana’
em livros, quase sempre à noite, servindo inicialmente da luz de lamparina
com pavio e querosene, nas mais variadas formas de estudo, rompendo as
séries dos ensinos primário, ginasial e secundário desde o antigo “Esquema
3” até o “Supletivo”, no qual concluí o 2º grau’, não em 3, mas depois de 8
anos de peleja, em decorrência exatamente das lides caninhas.

Durante os 26 anos que tive de estudar, aos trancos e barrancos, para
conseguir realizar um sonho, V. Exa. exerceu as ‘funções’ de dirigente
sindical, líder de um partido então de esquerda e candidato a presidente da
República, não sei se cortando tanta cana assim. E sem estudar.

Daí porque, continuando a cortar muito mais cana depois de juiz, e
estudando ainda mais para exercer o ofício, quando atingir 53 anos, terei
trabalhado durante 38 anos — considerando tempo de serviço contado a
partir dos 15 –, sem falar em aproximadamente 10 anos de trabalho
infanto-juvenil (dos 5 aos 15 anos) mais a jornada dupla (trabalho e
estudo) durante, pelo menos, 26 anos.

E se resolver trabalhar até os 70 anos, pelo amor à profissão e em função
da aposentadoria sugerida, aí é melhor não contar, vindo-me a estranha
sensação de não agüentar chegar lá, de ‘passar pela vida’ trabalhando para
descansar noutra, e deixar uma pensão ‘de merreca’ (expressão de V. Exa.)
para a querida e estimada esposa, a exemplo do que ocorre com meu pai, que
contribuiu por anos a fio com 5 salários mínimos e foi aposentado pelo INSS
com 2, aproximadamente, recebendo valor que mal dá para comprar os remédios
de uso contínuo necessários para minimizar os efeitos do mau de Parkinson
de que foi acometido, já em fase adiantada e bilateral.

Assim, para quem sobreviveu ao alarmante índice de mortalidade infantil na
proporção de 1/3 – nascemos 9 irmãos, escapamos 6 -, e estudou à custa de
extremo sacrifício, a pergunta formulada por V. Exa. soa no mínimo
preocupante, dando a impressão de que o esforço não valeu tanto, pois, de
fato, como “ninguém é maior ou menor do que ninguém”, devemos, nessa ótica,
ter a mesma expectativa de aposentadoria de quem nunca estudou, tanto em
relação à idade quanto aos proventos, apesar da dupla jornada enfrentada
durante a vida em trabalho e livros.

Meu Presidente Lula, quem tanto admiro, calma, continue devagar com o andor
e moderação nas palavras, dê mais valor a quem ‘se matou de estudar’ e
ainda cortou cana a vida inteira — como professores universitários,
procuradoras e muitos outros laboreiros do serviço público que tiveram a
mesma sorte –, e não me faça imaginar que deveria estar lá no sertão do
Piauí, no mesmo lugar onde nasci, cortando cana (pouco provável, pela
escassez de trabalho) e alistado no programa fome zero, como fazem meus
conterrâneos acauãenses e guaribenses.

O autor é juiz do Trabalho

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