O mestre Darcy Ribeiro e os "advogadozinhos": uma defesa apaixonada de Lula

Aos 67 anos de idade, o falecido professor Darcy Ribeiro escreveu esse desabafo, dias antes de ocorrerem as votações do 2º turno das eleições de 1989, das quais saiu vitorioso Fernando Collor. Mostra-se tão atual quanto verdadeiro.

Darcy Ribeiro

Estou me cansando de ouvir falar de Lula
com descaso. Qualquer advogadinho
idiota, porque formado, se acha melhor
que ele, mais preparado para governar.
Um intelectual desses que leu meia dúzia
de livros ou escreveu qualquer bobagem,
um tecnocrata que desempenhou bem ou mal
algum cargo, todos se acham melhores que
Lula e falam dele sem sombra de
respeito. Por que? Essa gente pensa que
o exercício do poder, em postos de alta
responsabilidade, cabe a uma categoria
particularíssima de pessoas, na qual não
incluiriam jamais um ex-operário ou um
líder sindical, ainda que muito
bem-sucedido. Para eles, o exercício da
Presidência se dá naturalmente, é quando
um figurão tradicional sucede a outro ou
entrega o poder a um militar golpista.
Nesses casos nunca se pergunta por
competência para governar, nem se alega
incompatibilidades.

Não devia ser assim, mesmo porque foi
esta gente que nos governou até hoje,
quase sempre da forma mais desastrosa
para o povo. Quando se fala da
necessidade de reformas ou renovações,
devia-se estar falando de afastar esses
protagonistas fracassados, para chamar
ao poder presidencial personagens novos
que, ao menos, não tenham demonstrado
sua inépcia para compor e reger governos
democráticos capazes de promover uma
prosperidade generalizável a toda a
população. Vale dizer, gente como Lula,
descomprometida com a ordem vigente tão
privilegiadora da minoria rica que
enriquece cada vez mais, quanto perversa
para com o grosso da população
brasileira que se miserabiliza cada vez
mais.

O povo, ao contrário, percebeu que nada
pode esperar desses poderosos que
ocuparam a arena política desde sempre
ou nela querem ingressar pelo controle
de máquinas partidárias e de mídias.
Todos eles falam exaustivamente de seus
méritos. Seja uma larguíssima
experiência, no trato da coisa pública,
como governantes ou parlamentares. Seja
a astúcia de intelectuais coniventes,
mas dispostos a pôr a serviço do povo
sua suposta capacidade de governar com
sabedoria. Seja ainda o tipo de
empresários bem-sucedidos que, sabendo
ganhar dinheiro nos seus negócios, se
acham também bons para reger os bens
públicos. Seja até, outra vez, um
general mandão com talento para por
ordem na baderna nacional.

O eleitorado rejeitou a todos eles e
consagrou a Lula colocando-o na segunda
rodada. Pode até errar, elegendo mal,
amanhã, o novo presidente, induzido que
foi a ver como bom para o povo aquele
que os donos das máquinas publicitárias
de vender refrigerantes ou sabonetes nos
querem impingir. Mesmo nesse caso,
porém, vota pela renovação. Que
renovação maior pode haver do que a de
colocar Lula na Presidência do Brasil?

Pela primeira vez na história lá estaria
um homem que veio do fundo dos fundos.
Lula é o flagelado que deu certo. Teve
êxito, mas permaneceu fiel a suas
origens. Assim foi porque Lula se
construiu na luta de toda uma vida
admirável de líder sindical e de
político popular pelos direitos dos
trabalhares e dos cidadãos.

Hoje, Lula é tão operário como foi
criança, um dia. É de assinalar,
entretanto, que sua formação ele não a
alcançou nas universidades, nos
parlamentos ou nos quartéis que são os
úteros de gestação de nossas precárias
classes dirigentes.

Ele se fez foi nos movimentos sociais
que são um ambiente melhor para fazer o
governante apto e leal de um país que
não deu certo, por culpa não do seu
povo, mas das elites.

Minha vivência com o poder, aqui e lá
fora, é que dita esse testemunho. Vejo
Lula como mais competente que Ulysses ou
Montoro, Maluf ou Antônio Ermírio,
Garrastazzu ou Pires, Fernando Henrique
ou Jaguaribe para conduzir o Brasil por
caminhos novos, modernos, de uma
modernidade socialmente responsável e
assumidamente brasileira.

Dele, tenho certeza de que não ouviremos
mais falar do tolo orgulho de sermos a
segunda economia agrícola do mundo –
produzindo soja para engordar porcos no
Japão, mas indiferente à fome do povo.
Com Lula no poder ninguém alegará mais
que somos a sétima ou oitava economia do
mundo, esquecendo que nossos salários
são dos mais baixos da Terra.

Nos livraremos também da balela de que o
Brasil é um país em desenvolvimento
porque se tornará evidente que estamos é
sendo afundados no poço do atraso. O
diabo é que nossa opção no dia 17 não se
dará nem entre Lula, como o novo, e
qualquer vetusta figura tradicional.

Se dará, isto sim, é entre Lula e
Collor, que é muitíssimo pior do que
todos eles.
Pior porque ainda mais servil à nossa
velha elite, feita de filhos e netos de
senhores de escravos calejados na
maldade; de ricaços descendentes de
imigrantes que olham de cima, com
desprezo, a quem não enricou também; e
sobretudo desta casta de gerentes das
multinacionais, só leais a seus patrões.

Velha e infecunda elite que sempre
detestou o povo brasileiro, que o
manteve sempre atrasado e faminto,
usando-o como mero carvão de se queimar
na produção, mas que defende de unhas e
dentes sua hegemonia que uma vez mais
ameaça perpetuar-se. Apesar de todos
eles, havemos de amanhecer.

fonte:www.direito.com.br

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