O mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social

Rodolfo Pamplona Filho
juiz do Trabalho na Bahia, professor titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da UNIFACS, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia

Sumário: 1. Introdução; 2. Significado gramatical e jurídico de neutralidade; 3. Distinção entre neutralidade e imparcialidade; 4. O problema das questões de Direito; 5. A balela “in claris cessat interpretatio”; 6. Por que a neutralidade é um mito?; 7. A importância do mito da neutralidade – A questão do papel social; 8. Conclusões sistematizadas e dúvida suscitada; 9. Considerações finais; Notas; Bibliografia

1. Introdução

“Representa-se escolarmente a sentença como o produto de um puro jogo lógico, friamente realizado com base em conceitos abstratos, ligados por inexorável concatenação de premissas e consequências; mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são homens vivos, que irradiam invisíveis forças magnéticas que encontram ressonâncias ou repulsões, ilógicas mas humanas, nos sentimentos do judicante. Como se pode considerar fiel uma fundamentação que não reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes sentimentais, a cuja influência mágica nenhum juiz, mesmo o mais severo, consegue escapar?” (Piero Calamandrei. “Eles, os juízes, vistos por um advogado”, Editora Martins Fontes, São Paulo, junho/1995, p. 175/176).

2. Significado gramatical e jurídico de neutralidade

Um estudo que se propõe a ser científico deve ter o maior rigor na terminologia a ser utilizada.

Sendo assim, como iremos discorrer acerca da questão da neutralidade, consideramos de grande valia conhecer o significado gramatical deste termo, pelo que nos socorremos, para este fim, dos verbetes do vocábulo “neutro”, constantes do dicionário organizado por Aurélio Buarque de Holanda:

“neutro. [Do lat. neutru] Adj. 1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; neutral. 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral. 3. Diz-se de nação cujo território as potências se comprometem a respeitar em caso de guerra entre elas. 4. Não distintamente marcado ou colorido. 5. Indefinido, vago, distinto, indeterminado. 6. Que se mostra indiferente, insensível, neutral. 7. Gram. Diz-se do gênero das palavras ou nomes que, em certas línguas, designam os seres concebidos como não animados, em oposição aos animados, masculinos ou femininos. ~ V. cor -a, elemento -, ponto -, pressão -a, rocha -a e verbo. l S. m. 8. Eletr. Num circuito de corrente alternada, condutor permanentemente ligado à terra e que tem potencial constantemente igual a zero. [Cf. nêutron.]”(1)

Como se verifica, as diversas acepções gramaticais do termo já seriam suficientes para demonstrar a enorme complexidade da discussão acerca da neutralidade, notadamente se encarada sob uma ótica leiga. Entretanto, como é óbvio, nem todas estas conceituações nos interessam, mas sim tão somente as duas primeiras (“1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; neutral. 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral.”)

Data venia do ilustre dicionarista, ousamos discordar do seu entendimento de que neutro e imparcial sejam sinônimos, pelo menos do ponto de vista jurídico-político.

Embora saibamos que a tarefa de definir um instituto jurídico é sempre das mais árduas, tendo em vista a enorme gama de peculiaridades que o envolve normalmente, não nos furtaremos a esta tarefa, pelo que mostraremos a distinção entre neutralidade e imparcialidade no próximo tópico.

3. Distinção entre neutralidade e imparcialidade

Para que possamos, efetivamente, analisar de forma profunda a matéria, é preciso realmente se distinguir imparcialidade de neutralidade.

A imparcialidade do juiz é uma exigência fundamental para a realização do devido processo legal e ela é garantida através da segurança do princípio do contraditório, que é uma das garantias processuais básicas do Estado de Direito, sendo assegurado constitucionalmente, conforme se infere da literalidade do art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988 (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”).

Sobre esta garantia constitucional, ensinam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, no seu festejado “Teoria Geral do Processo”:

“O princípio do contraditório também indica a atuação de uma garantia fundamental de justiça: absolutamente inseparável da distribuição da justiça organizada, o princípio da audiência bilateral encontra expressão no brocardo romano audiatur et altera pars. Ele é tão intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna o considera inerente mesmo à própria noção de processo.

(…)

O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de ´colaboradores necessários´: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve”(2).

A garantia do contraditório pode ser considerada, portanto, a medida da imparcialidade do juiz.

“O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e acima delas: esta é a primeira condição para que possa exercer sua função dentro do processo. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente. É nesse sentido que se diz que o órgão jurisdicional deve ser subjetivamente capaz.

A incapacidade subjetiva do juiz, que se origina da suspeita de sua imparcialidade, afeta profundamente a relação processual. Justamente para assegurar a imparcialidade do juiz, as constituições lhe estipulam garantias (Const., art. 95), prescrevem-lhe vedações (art. 95, par. ún.) e proíbem juízos e tribunais de exceção (art. 5º, inc. XXXVII).”(3)

Desta forma, não hesitamos em afirmar que a imparcialidade nada mais é do que uma regra técnica de observância de algumas garantias processuais, muitas, inclusive, com fonte constitucional, como já percebemos.

Rememoradas e fixadas essas lições preliminares sobre a imparcialidade, passemos agora a distinguí-la da neutralidade.

A neutralidade pressupõe, do ponto de vista científico, o não envolvimento do cientista com o objeto de sua ciência, o que é, em nosso entender, algo de uma impossibilidade palpitante.

Isto porque, em qualquer atividade do conhecimento humano, haverá sempre, no mínimo, uma escolha, nem que seja no que diz respeito ao próprio objeto de pesquisa.

Desta forma, quem exige e impõe uma neutralidade, ao contrário do que se pensa, não está de forma alguma sendo neutro, pois aquele que propugna pela neutralidade acaba tomando uma posição (ainda que seja por esta busca da neutralidade).

Mas o juiz é neutro?

A priori, já se pode responder que não.

Isto porque é impossível para qualquer ser humano conseguir abstrair totalmente os seus traumas, complexos, paixões e crenças (sejam ideológicas, filosóficas ou espirituais) no desempenho de suas atividades cotidianas, eis que a manifestação de sentimentos é uma dos aspectos fundamentais que diferencia a própria condição de ente humano em relação ao frio “raciocínio” das máquinas computadorizadas.

Entretanto, para que tal afirmação seja demostrada, faz-se mister apontar algumas hipóteses onde a falta de neutralidade (a inexistência de paixão…) na atividade jurisdicional é algo facilmente verificável, até mesmo por quem não domina a técnica jurídica.

Passemos, portanto, para estes exemplos.

4. O problema das questões de Direito

Iniciamos este tópico, lembrando, novamente, algumas observações de Piero Calamandrei:

“Havia um médico que, quando era chamado à cabeceira de um enfermo, em vez de se pôr a observá-lo e a ouvi-lo pacientemente para diagnosticar seu mal, começava declamando certas dissertações filosóficas sobre a origem metafísica das doenças, que segundo se dizia, demonstravam serem supérfluas a auscultação do paciente e até mesmo a tomada da temperatura. Os parentes que esperavam o diagnóstico em torno da cama ficavam pasmos com tamanha sabedoria; e o doente, algumas horas depois, morria tranqüilamente.

Esse médico, se fôssemos defini-lo com jargão forense, poderia ser chamado de um especialista em ´questões de direito´.”(4)

As questões de direito são um campo fértil para a demonstração da falta de neutralidade do juiz.

Tal assertiva é facilmente demonstrável pela própria prática diuturna na atividade forense, quando por mais argumentos favoráveis que apresente determinado advogado, o juiz esforça-se em rejeitá-los, tendo em vista “ter posicionamento próprio sobre a matéria”.

Ora, se neutro ele fosse, não poderia ter posicionamento prévio sobre a questão, eis que ainda não ouviu os argumentos das partes, nem a prova dos autos.

E o mais interessante é que o vigente Código de Processo Civil, reconhecendo tal atitude como a coisa mais normal do mundo, visando, inclusive, a celeridade do processo, abraçou expressamente tal questão, suprimindo o debate jurídico, quando dispõe, no seu art. 330, I, in verbis:

“Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença:

I – quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência”

Como se vê, sendo a questão unicamente de direito, em nome da celeridade, suprime-se o saudável debate jurídico, que poderia auxiliar e muito o julgador na sua atividade solitária.

E – frise-se – mesmo reconhecendo a falta de neutralidade do juiz neste exemplo, não há como se falar em perda de sua imparcialidade, desde que garanta o contraditório, o que ressalta ainda mais a natureza de regra técnica desta exigência ao julgador.

Vejamos, agora, mais um outro exemplo.

5. A balela “in claris cessat interpretatio”

O brocardo “in claris cessat interpretatio”, conforme ensina Carlos Maximiliano, “embora expresso em latim, não tem origem romana. Ulpiano ensinou o contrário: Quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non est negligenda interpretatio ejus – ´embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva´.

A este conceito os tradicionalistas opõem o de Paulo: Cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio – ´Quando nas palavras não existe ambigüidade, não se deve admitir pesquisa acerca da vontade ou intenção.

O mal de argumentar somente com adágios redunda nisto: tomam-nos a esmo, isolados do repositório em que regiam muitas vezes casos particulares, e, descuidadamente, generalizam disposição especial. Quem abra o Digesto, logo observa que a máxima de Paulo só se refere a testamentos, revelando um respeito, talvez exagerado, pela última vontade; com o fim de evitar que lhe modifiquem a essência, a pretexto de descobrir o verdadeiro sentido da fórmula verbal. Ao contrário, a parêmia de Ulpiano refere-se à exegese do que teve força de lei, ao Direito subsidiário, aos editos pretórios.

No campo legislativo, embora perfeita a forma, cumpre descer a fundo, à idéia. Prevalece ali o ensinamento de Celso: Scire leges non hoc este, verba earum tenere, sed vim ac potestatem – ´saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder´, isto é, o sentido e o alcance respectivos.

A exegese, em Roma, não se limitava aos textos obscuros, nem aos lacunosos; e foi graças a essa largueza de vistas dos jurisconsultos do Lácio que o Digesto atravessou os séculos e regeu institutos cuja existência Papiniano jamais pudera prever.”(5)

Como podemos verificar, o ditado “in claris cessat interpretatio” tem uma origem específica no campo do direito de sucessões, notadamente, no que diz respeito às disposições de última vontade.

Entretanto, na atividade jurisdicional, é muito comum que o julgador se valha desta máxima para “fugir” à discussão de uma interpretação mais aprofundada de algum dispositivo normativo.

Desta forma, mantendo-se “coerente” com seu “posicionamento sobre a matéria”, nega-se a rediscutí-lo, repensá-lo, reanalisá-lo, como se suas “decisões anteriores” fossem inquestionáveis e perfeitas, ou seja, como se fossem verdades absolutas das quais dependam, inclusive, a paz de espírito de sua consciência, além de sua própria crença no ideal da justiça.

6. Por que a neutralidade é um mito?

Quando discutimos a diferença entre neutralidade e imparcialidade, já afirmamos que a primeira consiste no “julgar sem paixão” (utilizando as palavras do mestre Aurélio), o que, na nossa ótica, seria impossível, haja vista que até quem propugna pela neutralidade acaba tomando uma posição

Entretanto, é ainda muito forte a convicção, por parte principalmente dos setores mais tradicionais da sociedade e da própria magistratura, de que o bom juiz não só é neutro, como deve ser neutro, argumentando que a organização racional do meio social exige um julgador afastado, de forma segura, dos conflitos sócio-políticos, “condenado a funções residuais nos conflitos-limite da sociedade”.(6)

Sobre esta forma de organização social, vale lembrar Max Weber que, segundo Julien Freund, entende que o Estado “de um lado comporta uma racionalização do direito com as conseqüências que são a especialização do poder legislativo e judiciário, bem como a instituição de uma polícia encarregada de proteger a segurança dos indivíduos e de assegurar a ordem pública; de outro lado, apóia-se em uma administração racional, baseada em regulamentos explícitos, que lhe permitem intervir nos domínios mais diversos, desde a educação até a saúde, a economia e mesmo a cultura; enfim, dispõe de uma força militar por assim dizer permanente.”(7)

“Fazendo o aparelho jurídico funcionar como uma máquina tecnicamente racional, o formalismo jurídico garante aos interessados no seu funcionamento, singularmente, o máximo relativo de liberdade de movimentos, e sobretudo de calculabilidade das conseqüências jurídicas e das possibilidades da sua ação em busca de objetivos”, nas palavras de Max Weber(8).

Conforme expõe Luiz Antônio Nunes, comentando o trecho supracitado, na realidade, “a constatação de fatos como conseqüência de conteúdos de normas esconde interdependências estruturais muito intrincadas, e nesse contexto é possível manipular-se as estruturas contraditórias, sem que a contradição abale a função normativa.

Analisando-se a situação numa perspectiva do poder, o que se pode dizer é que pode estar havendo em curso um alto grau de sofisticação na manipulação do grande complexo do Estado e sociedade modernos, onde existem sempre mais possibilidades do que aquelas que se possa realizar e onde o recurso à força não deve ser exercido o tempo todo, mas sim estar presente nas consciências como uma possibilidade latente, pois isso neutraliza a visão real que se possa ter da força.

Numa perspectiva de justificação interna do sujeito que obedece enquanto consciência, é possível admitir-se legitimidade como fruto da inconsciência – individual ou coletiva.”(9)

Só mesmo a inconsciência da realidade leva à crença da possibilidade da neutralidade. O órgão julgador, apesar do princípio da legalidade tão valorizado pelo positivismo formalista como pressuposto lógico e condição indispensável para a certeza e segurança jurídica, não pode se mostrar alheio à realidade da sociedade em que vive.

José Eduardo Faria, analisando as transformações por que passa o judiciário, comenta que “se há um mérito no movimento dos magistrados gaúchos em favor do ´Direito Alternativo´, em que pese o fato de não efetuarem com clareza essa distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, é o de terem questionado as concepções exegéticas comuns ao Estado liberal clássico; concepções que, em nome da certeza jurídica, valorizam a igualdade formal sem permitir aos intérpretes que levem em conta a desigualdade real de sujeitos de direito localizados em espaços sociais fragmentários; espaços comunitários, associativos e corporativos diferenciados, que delimitam e mediatizam materialmente o tradicional princípio da igualdade formal. Ao enfatizarem a importância das funções políticas do direito, valorizando tanto as leis e os códigos em vigor quanto as teorias jurídicas em circulação como instrumentos de ação coletiva, esses magistrados chamaram a atenção para um fato em si óbvio (mas cujo reconhecimento público, pelo Judiciário, implicaria a ruptura de seu discurso institucional tradicional): se a solução judicial de um conflito é em sua essência um atributo de poder, na medida em que pressupõe não apenas critérios fundantes e opções entre alternativas, implicando também a imposição da escolha feita, toda interpretação, toda aplicação e todo julgamento de casos concretos sempre têm uma dimensão política; por conseguinte, a Justiça, por mais que seu discurso institucional muitas vezes enfatize o contrário, não pode ser, na prática, um poder exclusivamente técnico, profissional e neutro.(10)

7. Importância do mito na neutralidade – A questão do papel social

Pode parecer contraditório, mas, mesmo reconhecendo que a neutralidade do juiz é um mito, não há como não se perceber que ela é importante – diria mais, fundamental – para a credibilidade do Poder Judiciário.

A credibilidade deste Poder está intimamente relacionada com o exercício de papéis sociais e a crença na figura da Justiça, pois, conforme comenta Luiz Antônio Nunes, é preciso ressaltar “a necessidade que a sociedade e as instituições têm de manutenção de seus valores fundamentais. Valores dentre os quais se encontra a Justiça, que não pode ser destruída pela mostra de suas fraquezas. Não que estas precisem ser escondidas, ao contrário, precisam ser tratadas e eliminadas.

O que não se pode fazer é deixar que o símbolo de Justiça se destrua. O que se esvaiu, por exemplo, em nossa opinião, no quebra-quebra de Los Angeles, que se seguiu ao julgamento do caso Rodney King, foi a crença na Justiça. As minorias americanas até que suportavam particularmente várias violações e da mesma forma as praticavam. Mas havia sempre o último recurso à Justiça. Quando a câmara de vídeo mostrou o fato real, concreto, de Rodney King sendo espancado, nenhuma técnica ou retórica jurídica podia vencer na direção da absolvição dos policiais. Com a mostra da verdade, só havia um caminho: a condenação. Era a Justiça a ser feita. Os distúrbios advindos da absolvição mostram bem as conseqüências que podem surgir a partir da destruição da crença no valor da Justiça. Ela jamais pode ser atingida sob pena de desestruturação e desaglutinação social. A Justiça é um valor que mantém as pessoas dentro de certa normalidade.”(11)

No que diz respeito à questão do papel social exercida por cada indivíduo, trata-se de um ponto importante para se entender a importância deste mito da neutralidade do juiz.

Lembrando, novamente, Luiz Antônio Nunes, “a sociedade está organizada formalmente a partir da comunicação dos vários papéis sociais, ou seja, os elementos que compõem o sistema social estão permanentemente em comunicação e esses elementos são de fato papéis sociais: repertórios formais de funções sociais preenchidos temporalmente por indivíduos.”(12) “O papel social, do ponto de vista da tensão gerada pela constante e presente complexidade do mundo – e que não pára de se expandir – tem como vantagem estabilizar expectativas e estabelecer consensos, diminuindo em parte a angústia que as possibilidades do mundo geram: o indivíduo quando assume um papel, participa com ele da sociedade dentro de uma maior estabilidade, pois deixou de lado todas as outras possibilidades oferecidas; eliminado dúvidas, angústias.”(13)

Este consenso da sociedade se consiste, portanto, em uma expectativa em relação às atitudes dos indivíduos, enquanto exercentes de papéis sociais. Entretanto, justamente por se tratarem de indivíduos, há a possibilidade de que seu comportamento não seja “aparentemente” o esperado, influindo negativamente na instituição como um todo.

“Desta forma percebe-se que certos papéis e instituições estão mais preparados para receberem as cargas valorativas negativas. Contudo, mesmo esses papéis e instituições têm um limite de suportabilidade. Ultrapassado esse limite eles podem ruir. Traduzindo, mesmo a instituição política não suporta indefinidamente ser crivada de ataques e adjetivações negativas. Se isso ocorre há o risco de ruptura.

O remédio para a neutralização da negativação valorativa dos papéis e instituições, tem sido o desvio para o indivíduo. Se a instituição tem bons mecanismos de controle social e de auto-controle interno, ela rapidamente resolve o problema da adjetivação negativa, expulsando de seus quadros aquele indivíduo específico que agindo no papel não se comportou adequadamente. O papel e a instituição continuam positivos; era o indivíduo que estava agindo mal. E, assim, salvam-se papel e instituição.”(14)

Reinhard Bendix lembra que, “como os outros tipos de autoridade, a dominação legal baseia-se na crença em sua legitimidade e todas essas crenças são, em certo sentido, consideradas comprovadas. A autoridade carismática, por exemplo, depende de uma crença na santidade ou no caráter exemplar de uma determinada pessoa, mas essa pessoa perde a autoridade logo que aqueles sujeitos a ela deixem de acreditar em seus poderes extraordinários. A autoridade carismática existe apenas enquanto ´provar´ a si mesma, e essa ´prova´ é aceita ou rejeitada pelos seguidores. A crença na legitimidade de uma ordem legal tem um caráter circular semelhante.”(15) E citando Robert Bierstedt, coloca que “a liderança depende das qualidades pessoais do líder na situação em que este lidera. No caso da autoridade, contudo, a relação deixa de ser pesssoal e, se a legitimidade da autoridade é reconhecida, o subordinado tem que obedecer a ordem, mesmo quando desconhece a pessoa que a emite. Numa relação de liderança a pessoa é fundamental; numa relação de autoridade a pessoa é meramente um símbolo.”(16)

Enquanto exercente de um papel social, o juiz atua, portanto, numa relação de autoridade, e não de liderança, pelo que funciona como um mero símbolo para a sociedade, símbolo este que deve refletir os ideais de justiça, dentro da organização social.

Por isto, o discurso institucional do Poder Judiciário visa sempre reforçar esta ilusão da neutralidade do juiz, tendo em vista que, caso o indivíduo – investido na função de magistrado – se desvie de forma tão radical a ponto de que o jurisdicionado venha a questionar a legitimidade da autoridade, pode-se sempre taxá-lo com a pecha da falta de neutralidade, como se fosse um pecado a ser execrado para não se macular a Justiça.

Desta forma, resguarda-se o bom juiz, observador dos parâmetros e regras estabelecidas (notadamente, o princípio do contraditório), que mesmo trazendo para a sentença, ainda que de forma disfarçada ou inconsciente, todas as suas paixões e ideologias na interpretação, não poderá ser taxado de parcial, mesmo não sendo, na prática, neutro.

Isto é o que efetivamente viabiliza a crença na atividade de julgar, pois satisfaz a sociedade não somente com a prestação jurisidicional, mas com a “doce e saudável ilusão” de que o juiz não se vale de suas paixões e ideologias na função que exerce.

Sendo assim, o mito da neutralidade torna-se um importante elemento no papel social do juiz, eis que atende simultaneamente as expectativas da sociedade e sua correspondente sede pela justiça, pois, relativamente ao papel do juiz, “o que dele se espera é que ele se comporte dentro dos parâmetros e regras estabelecidos pelo sistema jurídico num Estado de Direito. Claro que nesse sentido, sua atuação deve ser técnica com um máximo de excelência. Contudo, não se espera só isso: há o imperativo moral que determina que ele seja justo (além, é claro, do imperativo das próprias normas jurídicas nesse sentido, por exemplo o art. 5º da Lei de Introdução do Código Civil)

Assim, podemos definir o bom julgador: é aquele que cumpre as normas, agindo com técnica exímia, mas que ao mesmo tempo e simultaneamente aplica a Justiça. O juiz é o sinônimo do justo!

Claro que o juiz, como conhece bem as técnicas de julgar, se quiser, pode ´abusar do direito´, ´abusar de seu poder´, da mesma maneira que qualquer indivíduo pode também fazê-lo em qualquer outro papel social: por exemplo, o professor que persegue determinado aluno. Nesses casos não é o juiz ou o professor que está errado, é o indivíduo por trás do papel. Daí a instituição tem que ter mecanismos para repreendê-lo – o indivíduo – indicar-lhe o caminho correto ou até retirá-lo dos quadros.

Por outro lado, os tempos atuais, como já se disse, exigem uma maior participação dos juízes, quer seja como juízes mesmos, quer seja como indivíduos, nas várias atividades sociais. O intercâmbio e interrelacionamento entre os vários setores sociais e os juízes é salutar e fará com que a sociedade quebre seus preconceitos em relação ao Judiciário, ao mesmo tempo que manterá os juízes a par da realidade social em todos os seus desdobramentos. O juiz não pode conhecer o ´mundo´ apenas através do processo, nem se manifestar através desse único canal formal (Ou no máximo, também, através da Ciência do Direito). É muito pouco para alguém como o juiz que tem tanto para dar e que, também, pode em contrapartida, muito receber do convívio social.”(17)

8. Conclusões sistematizadas e dúvida suscitada

Para efeito didático, podemos sistematizar algumas conclusões do presente trabalho da seguinte forma:

a) a neutralidade, do ponto de vista jurídico, não é sinônimo de imparcialidade;

b) em nenhum ramo do conhecimento humano, se pode falar em atividade neutra, tendo em vista que quem propugna pela neutralidade acaba fazendo também uma opção, o que é perfeitamente aplicável à atividade jurisdicional;

c) o juiz, como indivíduo que é, não pode ser neutro, tendo apenas a obrigação, inclusive constituticional, de ser imparcial;

d) a neutralidade, mesmo sendo uma ilusão, é importante elemento no papel social do juiz, eis que satisfaz as exigências da sociedade, bem como viabiliza a crença na atividade de julgar.

Entretanto, ao contrário da boa técnica dos trabalhos científicos, não queremos deixar aqui uma conclusão definitiva, mas sim suscitar algumas outras dúvidas.

Será que tudo que foi aqui exposto talvez não seja uma grande falácia?

Será que o que aqui se expôs não foi apenas mais uma argumentação técnica, apoiada em argumentos lógicos e de autoridade, muitas vezes dogmáticos, buscando comprovar a tese proposta originalmente, numa tentativa de valer-se do jurídico para comprovar algo ideológico?

Talvez sim… Talvez não…

Talvez só com alguma reflexão se possa achar uma resposta.

De qualquer forma, este modesto interlocutor já se dará por satisfeito, se fez os eventuais leitores refletirem sobre este tema, tão negligenciado pela dogmática jurídica.

9. Considerações finais

Apenas buscando arrematar estas considerações com chave de ouro, encerraremos este estudo transcrevendo mais um trecho do brilhante livro de Piero Calamandrei sobre a função jurisdicional:

“Um artigo do código de processo civil obriga as partes e seus defensores a se comportarem com “lealdade”. Do juiz, a lei não fala; mas a obrigação de lealdade está implícita em sua função, especialmente na fase em que ele se põe a redigir a fundamentação da sua sentença.

Sua lealdade consiste em escrever na sentença os fundamentos verdadeiros que o levaram a decidir assim e, antes de tudo, em procurar dentro de si (o que nem sempre é fácil) quais são os fundamentos verdadeiros.

Um estudioso alemão publicou, há cerca de dez anos atrás, um livro sobre a motivação das sentenças, em que demonstra, com uma análise muito penetrante de uma centena de decisões cíveis e penais, que muitas vezes os motivos declarados são bem diferentes dos verdadeiros e que, com muita freqüência, a fundamentação oficial nada mais é que um biombo dialético para ocultar os móbeis verdadeiros, de caráter sentimental ou político, que levaram o juiz a julgar assim.

Pode-se compreender, mesmo quando ele quer ser, na fundamentação, sincero a qualquer preço, que assuma sem querer uma posição mais de defensor do que de juiz. Quando o decisório já foi adotado, o redator é levado naturalmente, como fazem os advogados para defender seu cliente, a escolher e a pôr em evidência os argumentos que podem servir para defender aquele dispositivo não mais discutível.

Mas a deslealdade começaria quando a escolha dos fundamentos lhe fosse sugerida não pelo interesse geral da justiça, mas pelo interesse pessoal da sua carreira, o que aconteceria se o juiz – que, para explicar o dispositivo, poderia limitar-se a pôr em evidência a circunstância de fato que o colegiado achou decisiva – se pusesse a adornar a fundamentação com inúteis ostentações de ciência jurídica, para poder servir-se dessa decisão como um dos títulos para a sua promoção; ou se o juiz, para evitar que sua sentença fosse reformada em grau de cassação, procurasse esconder as razões de direito, que o Tribunal poderia achar errôneas, sob uma fundamentação de fato, que é inatacável, porque o Tribunal de Cassação não pode se manifestar sobre ela.

Estas são pequenas artimanhas cavilosas, às quais seria preferível que o juiz nunca recorresse, do mesmo modo que não gostaríamos de perceber que, certas vezes, os magistrados, chamados a enfrentar em suas sentenças questões gerais de ressonância política (como certas questões relativas à liberdade religiosa ou à liberdade de imprensa), decidem segunda a justiça no dispositivo, mas na fundamentação encontram o meio de se refugiar por trás de argumentos de fato, a fim de não se comprometerem a dar sua opinião sobre a questão de direito. Essa arte de eludir as questões comprometedoras pode ser apreciável num diplomata; no juiz, eu a qualificaria como inconveniente timidez.

O caso mais grave, porém, seria o do magistrado que, encarregado de redigir a fundamentação de uma decisão já adotada pelo colegiado, pusesse deliberadamente, em relevo, em vez dos fundamentos capazes de justificá-la, os que melhor servissem para desacreditá-la, com o propósito de fazer os leitores sagazes compreenderem que a decisão é injusta, e de pôr na boca dos julgadores do recurso os argumentos para reformá-la. Muitos anos atrás, essas sentenças eram chamadas ´suicidas´. Mas, em vez de suicídio, eu falaria de homicídio premeditado, porque elas nasciam sob a ameaça de um engenho explosivo de efeito retardado, que o juiz redator escondera habilmente nas entrelinhas da fundamentação. Assim, a decisão ia pelo mundo levando dentro de si, sem saber, a máquina infernal que no momento exato a faria saltar em pedaços.

Na verdade, esse protesto sorrateiro com que o juiz redator traía a vontade da maioria do colégio tinha todas as características do atentado terrorista que se rebela, com a violência, contra as regras do jogo colegiado; mais que uma deslealdade, era um ato de sedição.”(18)

NOTAS

1. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986, pág. 675;

2. Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 9ª ed., 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 1993, pág.53;

3. Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. ob. cit., p. 50;

4. Calamandrei, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado, 1ª ed. brasileira, São Paulo, Martins Fontes, junho/1995, p. 166;

5. Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 33/34;

6. Faria, José Eduardo, As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, obra organizada por José Eduardo Faria, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, p. 58;

7. Freund, Julien, Sociologia de Max Weber, 3ª ed., Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 159;

8. Weber, Max, Economia y Sociedad, apud Bobbio, Norberto, Ensaios Escolhidos, Ed. Cardim, 1988, p. 181;

9. Nunes, Luiz Antônio. A Lei, o Poder e os Regimes Democráticos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 85/86;

10. Faria, José Eduardo, ob. cit., p. 55/56, os grifos são nossos;

11. Nunes, Luiz Antônio, O Poder Judiciário, a Ética e o Papel do Empresariado Nacional, in Uma Nova Ética para o Juiz, obra organizada sob a coordenação de José Renato Nalini, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 127/128;

12. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 111;

13. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 112;

14. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 114;

15. Bendix, Reinhard, Max Weber – Um Perfil Intelectual, Brasília, Ed. Univ. de Brasília, 1986, p. 324;

16. Bendix, Reinhard, ob. cit., nota 474, p. 409;

17. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 128/129;

18. Calamandrei, Piero. ob. cit., p. 190/193;

10. Bibliografia consultada

Bendix, Reinhard, Max Weber – Um Perfil Intelectual, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1986;

Bobbio, Norberto, Ensaios Escolhidos, Ed. Cardim, 1988;

Calamandrei, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado, São Paulo, Martins Fontes, junho/1995;

Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 9ª ed., 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 1993;

Faria, José Eduardo, As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, obra organizada por José Eduardo Faria, São Paulo, Malheiros Editores, 1994;

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986;

Freund, Julien, Sociologia de Max Weber, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980;

Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994;

Nunes, Luiz Antônio, O Poder Judiciário, a Ética e o Papel do Empresariado Nacional, in Uma Nova Ética para o Juiz, obra organizada sob a coordenação de José Renato Nalini, págs. 107/129, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais;

Nunes, Luiz Antônio. A Lei, o Poder e os Regimes Democráticos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991;

Weber, Max, Economia y Sociedad, Ed. Fondo de Cultura Económica, México;

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