O neoliberalismo é intervencionista?

Maurício Leal Dias
advogado em Belém (PA), mestre em Direito pela UFPA

1 – Introdução

O debate político e por conseguinte o econômico, jurídico e cultural tem girado em torno da ressurgência do ideário liberal que em novos contornos, passa agora a denominar-se neoliberalismo, face a débacle dos socialismos reais e o esgotamento da alternativa Social-Democrata do Estado Intervencionista, o chamado Welfare State, o neoliberalismo dita a cartilha econômica não só dos países Europeus e Norte-Americanos, liderados pela Inglaterra e Estados Unidos, como também, dos países de capitalismo periférico.

O neoliberalismo assume neste fin de siècle um papel proeminente dentre as teorias sociais, impulsionando revoluções e contra-revoluções, atraindo tanto defensores apaixonados como detratores furiosos. É circundando esta atmosfera que este trabalho tentará explicitar um dos momentos cruciais do neoliberalismo, qual seja, a sua concepção de Estado, bem como a sua crítica ao intervencionismo. Buscaremos através de uma análise assentada em base interdisciplinar, investigar o neoliberalismo realmente existente, desnudando suas facetas escondidas, principalmente a intervencionista.

Partiremos da descrição pontual de suas origens chegando até aos seus fundamentos contemporâneos, o que perfaz um discurso sobre os seus mais expressivos representantes, isto feito, confrontaremos o neoliberalismo e o intervencionismo. Com estes elementos e aliando uma perspectiva comprometida com a radicalização da democracia e a refuncionalização do Estado face aos ditames de um mercado globalizado é que apontaremos as ilusões do neoliberalismo, para ao final confrontarmos o neoliberalismo com os princípios da Ordem Econômica estatuídos na Constituição Brasileira de 1988.

2 – O Neoliberalismo

2.1 – Das Origens…

Para uma descrição histórica do neoliberalismo como fenômeno recente devemos partir do liberalismo clássico, que traz os seus fundamentos. O Liberalismo clássico assim como outras correntes do pensamento possui representantes que se destacam como os fomentadores do ideário liberal, disseminando os seus princípios e idéias fundamentais; dentre os liberais clássicos destacaremos três figuras que representam momentos distintos e sintetizam uma era liberal, são estes : John Locke, Adam Smith e Stuart Mill.

Em Locke encontraremos os lineamentos das reflexões fundamentais do liberalismo no que tange o direito natural e o contratualismo, pois Locke estava envolvido em uma atmosfera de formação do liberalismo, onde a reivindicação de direitos religiosos, políticos e econômicos e a tentativa de controlar o poder político eram o centro das reflexões de então.

De que é fruto esta reivindicação de direitos ? Podemos afirmar que decorre de um lado do movimento da Reforma Protestante , de outro do desenvolvimento do capitalismo que passa a reivindicar o controle político.

Para a consecução dos objetivos do capitalismo eram necessárias algumas idéias chaves (Direito Natural e Consentimento), que encontram em Locke um desenvolvimento que atendiam as expectativas do capitalismo emergente.

Locke modernizou a idéia de direito natural, legitimando-a conceitualmente. Esta idéia de direito natural decorreu do conceito medieval de direitos subjetivos, para o qual os homens possuem o domínio sobre as suas vidas ou bens não como um corolário do direito civil ou do intercurso social, mas da própria natureza das pessoas como seres humanos. Desta idéia de direito natural surge o contratualismo que influenciou todo o pensamento político de Hobbes a Rosseau.

O conceito central do contratualismo é a valorização do indivíduo, pois fundado em uma ética minimalista atende a dois princípios : a legitimidade de autopreservação e a ilegalidade do dano arbitrário feito aos outros. A autoridade legítima passou a ser encarada como coisa fundada em pactos voluntários feitos pelos súditos do Estado.

A principal contribuição de Locke para o contratualismo é a sua noção de consentimento, que deveria ser tácito, periódico e condicional. “Locke encarou os governantes como curadores da cidadania e, de forma memorável, imaginou um direito à resistência e mesmo à revolução. Dessa maneira, o consentimento tornou-se a base do controle político(1).

Para Merquior o contratualismo de Locke representou a apoteose do direito natural no sentimento individualista moderno. “Hobbes antes dele e Rosseau depois imaginaram contratos sociais em que os indivíduos alienariam por inteiro seu poder em favor do rei ou da assembléia. Por contraposição, em Locke os direitos pessoais provêem da natureza, como dádiva de Deus, e estão longe de dissolverem-se no pacto, no caso de Hobbes, abandonam todos os seus direitos, exceto um – suas vidas-, já os indivíduos de Locke só abandonam um direito – o direito de fazer justiça com as próprias mãos – e conservam todos os outros. Ao sacralizar a propriedade como direito natural anterior à associação civil e política, Locke realçou um tendência que já tinha quinhentos anos de idade: a fusão pós-clássica de ius e dominium, de direito e propriedade. Entronizando o direito de resistência, ele ampliou o princípio individualista de vontade e consentimento. E consentimento, em lugar de tradição, é a principal característica da legitimidade em política liberal”(2)

A contribuição de Adam Smith está no âmbito do pensamento econômico, pois fora Smith que elaborara o texto básico da economia clássica – A Riqueza das Nações, que consistiu em um cuidadoso exame dos mecanismos de mercado e da divisão do trabalho como fator subjacente da prosperidade moderna, é em Smith que a idéia de progresso, advinda do iluminismo, consubstancia-se em uma teoria do crescimento em termos de economia política. Como diz Merquior, “verdadeiro iluminista, Adam Smith conferiu ao tema do progresso sua profundidade socioeconômica. Promotor do pensamento liberal, Smith introduziu a idéia do progresso na defesa do liberismo. Não espanta que ele tenha sido um crítico persistente do privilégio e da proteção. Como pilares encadeados da sociedade pré-moderna, o privilégio e a proteção não foram muito atingidos pelos porta-vozes da virtude cívica. Mas tornaram-se alvos naturais do liberalismo enquanto a voz da modernidade”(3)

John Stuart Mill, produziu um ensaio que é tido como o ABC do liberalismo, intitulado On Liberty, neste ensaio Mill entrelaça vários ramos do pensamento liberal. Liberdade Política, autonomia negativa, autodesenvolvimento, liberdade como intitulamento, liberdade de opinião, liberdade como autogoverno, liberdade como privacidade e independência. Mill expressa ainda a necessidade de antepor limites ao poder, mesmo quando este poder é da maioria, louva a fecundidade do conflito, elogia a diversidade, condenando o conformismo.

O Estado para Mill, não deve apenas proteger um indivíduo do outro, mas também todos os indivíduos em seu conjunto enquanto grupo de um outro Estado, Mill para assegurar tal conjunto introduz um princípio de Justiça distributiva, pois na verdade já não basta mais a justiça comutativa, realizado um bem (ou mal) igual e contrário com base no critério da igualdade aritmética. Surge então uma dificuldade que encontraremos no debate sobre o estado social, qual seja a de saber-se o que distribuir ? Qual é o critério ?

O liberalismo clássico possui vários representantes tanto quantos forem os seus liberalismos, aqui não estudados, o que decorre da limitação temática, pois é nossa pretensão depreender dos autores aqui estudados, os elementos essenciais do liberalismo clássico, quais sejam: o individualismo, a limitação do poder político, as funções do mercado e a liberdade.

Acreditando ter perfazido este caminho passo ao estudo dos principais representantes do neoliberalismo, procurando acentuar os elementos que o distinguem do liberalismo clássico assim como as suas semelhanças.

2. 2 – …À Atualidade.

Para este trabalho destacaremos dentre aos representantes máximos do neoliberalismo dois autores que representam sob a perspectiva da teoria política e econômica (Hayek) e da teoria do direito (Nozik) o substrato teórico deste movimento, tal empreendimento deve estar aliado à percepção das causas do surgimento do neoliberalismo .

O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado Intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão , de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também, política, Heyek acusa ainda o planejamento e o Estado providência de levarem à tirania(4). Neste verdadeiro tratado político, Hayek enquadra o mercado e o progresso numa moldura evolucionista. Hayek partiu para apresentar o mercado como um sistema sem rival de informação: preços, salários, lucros altos e baixos são mecanismos que distribuem informação entre agentes econômicos de outra forma incapazes de saber, já que a massa colossal de fatos economicamente significantes está fadada a escapar-lhes. A intervenção do Estado é má porque faz com que a rede de informações do sistema de preços emita sinais enganadores, além de reduzir o escopo da experimentação econômica. Quanto ao progresso, este ocorre através de uma miríade de tentativas e erros feitos pelos seres humanos, pois a evolução social procede mediante “a seleção por imitação de instituições e hábitos bem-sucedidos”(5).

Três anos após ter publicado O Caminho da Servidão, Hayek, diante de uma conjuntura onde as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os célebres participantes estavam não só adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Na seleta assistência encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises (do qual Heyek era discípulo), Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polnyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neo-liberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro.

Nozick , por sua vez, é autor do livro Anarquia, Estado e Utopia, surgido em 1974. Nozick está convicto, como diz logo de saída, que “a questão fundamental da filosofia política, que precede qualquer outra sobre como o Estado deve ser organizado, é se ele deve ou não existir”(6)

A obra de Nozick move-se contra duas frentes: contra o Estado Máximo dos defensores do “Estado de Justiça”, ao qual são atribuídas funções de distribuição de riqueza, mas também contra a total eliminação do Estado proposta pelos anarquistas. Embora com argumentos novos, Nozick retoma e defende a tese liberal clássica do Estado como organização monopolista de força, cujo único e limitado objetivo é proteger os direitos individuais de todos os membros do grupo. Partindo da teoria Lockeana do Estado de natureza e dos direitos naturais, mas repudiando o contratualismo como teoria que vê o nascimento do Estado num acordo voluntário e se entrega à feliz (e talvez também falaz) idéia de uma criação da “mão invisível”, Nozick constrói o Estado como uma livre associação de proteção entre indivíduos que estão num mesmo território, cuja função é a de defender os direitos de cada indivíduo contra a ingerência por parte de todos os demais e, portanto, a de impedir qualquer forma de proteção privada, ou, dito de outra forma, a de impedir que os indivíduos façam justiça por si mesmos. Além do mais, quanto à determinação dos direitos individuais que o estado deve proteger, a teoria de Nozick está genericamente fundada sobre alguns princípios do direito privado, segundo os quais todo indivíduo tem direito de possuir tudo o que adquiriu justamente (ou princípio de justiça de aquisição) e tudo o que adquiriu justamente do proprietário precedente (princípio de justiça na transferência). Qualquer outra função que o Estado se atribua é injusta, pois interfere indevidamente na vida e na liberdade do indivíduos. A conclusão é que o Estado mínimo, embora sendo mínimo, é o Estado mais extenso que se possa conceber: qualquer outro Estado é imoral.

Após estas considerações gerais sobre os teóricos do neoliberalismo, passemos a centrar a análise na crítica do neoliberalismo ao intervencionismo, para tal é necessário uma breve discussão da transição do Estado Liberal para o Intervencionista, é o que faremos no tópico seguinte.

3 – Neoliberalismo x Intervencionismo

Como dissemos, é necessário para entender a crítica neoliberal ao intervencionismo, ter clara as condições históricas em que se deu a transição do Estado Liberal ao intervencionista.

O Estado Liberal constituía-se em antítese ao absolutista, pois com a ascensão da burguesia ao poder político, passaram a viger os seus princípios e valores. Fernando Scaff(7), divisa bem os institutos que caracterizam o Estado Liberal, são eles : a) o princípio da legalidade; b) a separação de poderes; c) o voto censitário; d) a liberdade contratual; e) a propriedade privada dos meios de produção e o fator “trabalho”, f) separação entre os trabalhadores e os meios de produção.

É ainda Fernando Scaff(8) que acompanhado dos estudos de Vital Moreira, Fábio Nusdeo, Paulo Bonavides, José Afonso da Silva e Geraldo Vidigal, que nos esclarece as causas , dentre várias, da transformação do Estado Liberal em Intervencionista. Aponta o publicista paraense: a) o surgimento do capitalismo em sua fase monopolista; b) as crises cíclicas do capital; c) as exigências sociais advindas da produção; d) o ideário socialista em conjunto com o planejamento econômico; e) a transformação da força de trabalho em mercadoria e; f) as guerras mundiais.

O que caracteriza o Estado intervencionista ? Vimos que o liberalismo clássico nasceu assentado no primado da liberdade individual com seus consectários no princípio da liberdade de empresa e da livre concorrência de mercado. Por isso mesmo, relaciona-se profundamente com os princípios e garantias da propriedade privada.

Observa-se que a intervenção do Estado no domínio era considerada deletéria ao livre jogo das forças econômicas no mercado regulado pelo ideal da concorrência perfeita. Ao Estado cabiam os assuntos políticos, não os econômicos. Evidentemente que este modelo liberal nunca chegou a ser realizar, permanecendo na esfera do tipo ideal, até porque teria que estabelecer um “marco zero” de intervenção, além do qual fosse caracterizada como indevida a atuação estatal(9).

A imagem , digamos, soft, suave, do mercado dos primórdios do capitalismo deu lugar a uma outra imagem, oposta a essa, dada a descoberta da violência no próprio processo produtivo industrial. Assim, o mercado, enquanto uma expressão de um modo de produção mais amplo, que inclui a relação direta entre o homem e a natureza, dos homens entre si, da transformação dos bens de produtos, apareceu como um locus de violência. Esta visão do processo capitalista é fruto das contribuições de Marx, que através do movimento socialista expandiu a crítica ao violento modo de produção hegemônico.

Temos, o Estado aparecendo como o contraponto bondoso, como o contrapeso às tendências maléficas do mercado. As forças livres do mercado, a “mão invisível”, não seriam por si a garantia da realização do interesse geral através do interesse individual (como queria a ideologia até então dominante). Reaparece a idéia de que é preciso um elemento de política, o Estado, e até um elemento de ética, para conter as forças cegas do mercado que largadas a si mesmas, seriam incapazes de realizar a felicidade humana.

Introduz-se a idéia que, através da atuação estatal é possível fazer algumas correções, colocar alguns freios no mercado. Há várias alternativas quanto ao grau de correção desejável, desde intervenções parciais para “domar a fera”, até a substituição do mercado pelo planejamento, ou seja, “a função primordial da intervenção Estatal é mitigar os conflitos existentes no Estado Liberal, e não sua destruição”(10).

Hayek e Mises foram, dentre o neoliberais que construíram os argumentos mais contundentes contra o Estado gestor da economia. Mises, a exemplo coloca a questão de se saber quais as consequências das intervenções do governo e de outras instâncias no sistema de propriedade privada ? A isto responde que a existência de duas ordens de organização social com divisão do trabalho, quais sejam, a ordem da propriedade pública e a da propriedade privada, não presume uma terceira ordem, qual seja, a da propriedade privada regulamentada pelo governo. “incidentalmente, devemos distinguir, cuidadosamente, entre a questão de o governo ser ou não necessário e a questão de em que casos a autoridade do governo é admissível. O fato de a vida social não poder prescindir dos instrumentos de coerção do governo não pode ser usado para se concluir, também, que o controle da consciência, a censura e medidas semelhantes sejam desejáveis, ou que certas medidas de economia sejam necessárias, úteis, ou apenas exequíveis”.(11)

Hayek opõe-se ao intervencionismo, que considera o mal essencial a ser combatido e que as crises econômicas do séc. XX resultaram do excesso de intervencionismo, com uma formulação da ordem espontânea do mercado, que segue regras universais de justa conduta, não podendo ser a ordem resultante do mercado fruto da vontade humana e que as instituições e regras que permitem o seu surgimento não são voluntária e conscientemente dominadas e conhecidas.

Gisele Citadino destaca os dois objetivos a que Hayek atinge com esta formulação: “por um lado, logra subtrair os resultados individuais do mercado de uma crítica fundada numa idéia de justiça. Por outro, pretende demonstrar que o próprio sistema de economia de mercado tem uma legitimidade mais fundamental que aquela conferida por sua utilidade imediata. Ao contrário, é na história que podemos encontrar o fundamento de legitimidade do mercado enquanto ordem espontânea”(12). Com efeito, em Hayek, as regras que permitem o funcionamento do mercado são “o puro produto da história… Posto que o mercado foi historicamente constituído, sua superioridade e sua legitimidade são estabelecidas pela história e pela seleção natural. Ele não é jamais conscientemente inventado… Ele se estabelece ele mesmo, historicamente, como o sistema mais eficaz(13).

É exatamente desta concepção do mercado como produto da história e da seleção natural que decorrem as críticas de Hayek ao intervencionismo estatal, assim como a defesa intransigente da liberdade individual. Vejamos agora como tais questões se articulam. E, para tal citemos o próprio Hayek: “o conceito central do liberalismo é o de que sob a aplicação de regras universais de conduta justa, protegendo um reconhecido domínio privado dos indivíduos, formar-se-á uma ordem espontânea de atividades humanas de muito maior complexidade do que jamais se poderia produzir mediante arranjos deliberados e que, em consequência, as atividades coercitivas do governo deveriam limitar-se à aplicação dessas regras”(14).

Diante desses argumentos hoje parcialmente vitoriosos no mundo, surge a questão de se saber quais foram os fatores que permitiram esta ascensão ?

Segundo Perry Anderson esta vitória se deu com ” a chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno”(15). As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, ” estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”(16).Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa crise generalizada das economias de mercado.

“O remédio, então, era claro: manter um estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentària, como as contenções dos gastos com bem-estar, e a restauração das taxas “naturais” de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos”(17).

Como podemos perceber através dos argumentos argutos de seus defensores o neoliberalismo perfazem uma crítica virulenta ao Estado de bem-estar, passando a empreender uma pregação voltada para o fortalecimento dos mecanismos autoregulatórios do mercado, livre das “amarras” do intervencionismo, seriam a base do retorno da estabilidade monetária e do crescimento, porém, será o neoliberalismo tão eficiente em suas propostas de crescimento econômico ? Ademais, acerca da preocupação central deste trabalho, o neoliberalismo lança o intervencionismo ao limbo ? E como este se comporta frente aos ditames da democracia ? Serão estas questões que nos ocuparemos no próximo tópico.

4 – As Ilusões do Neoliberalismo

Sem dúvida é no plano cultural mais que no econômico que veremos as principais repercussões do neoliberalismo, vejamos : a difusão de um Ethos sem raízes tradicionais precisas é um dos marcos de nosso tempo: o mito da mobilidade pelo esforço pessoal; as generosidades da livre empresa (“somos todos empresários”); o direito à diferenciação; a liberdade como valor máximo, embora como autodisciplina; e uma solidariedade não problemática para aqueles que não são beneficiados pelo mercado. O neoliberalismo investe no senso comum, alimentando o antiestatismo do povo, com a idéia de que o Estado é o causador da crise, o Estado que, para proporcionar, previdência social, cobra altos impostos; Estado que alimenta uma grande burocracia ineficiente e Estado que tem protegido exageradamente os trabalhadores sindicalizados.

Estes pressupostos do neoliberalismo são cumpridos em parte, pois, ao apresentar-se como alternativa ao Estado Social, o neoliberalismo enfrenta as seguintes contradições, apontadas por Henrique Toledo(18), como as seguintes: 1) permite às economias crescerem dentro de certos limites ou reduzirem taxas de inflação, mas às custas de uma polarização produtiva e social. A promessa de igualdade no mercado só se cumpre com desregulamentação e privatização, mas em nenhum momento atenta contra os monopólios, que crescem em poder com as políticas neoliberais; 2) A liberalização dos mercados ocorre com uma rígida política salarial que provoca uma queda nos salários reais. Neste mercado, o da força de trabalho, não se aplica a eliminação de fatores exógenos para que se chegue aos preços de equilíbrio. A crise de fato recai sobre os ombros dos assalariados; 3) A liberdade conseguida com a ruptura com os pactos corporativos, que distorcem os mercados, ocorre ao mesmo tempo em que se conformam grupos de pressão (formação de grupos privilegiados), sobretudo provenientes dos grandes capitais, para os quais as políticas ortodoxas são combinadas com apoios heterodoxos. O ator racional otimizador é substituído pelos magos das finanças e seus conhecimentos privilegiados de mercados e políticas do Estado”(19).

Theotônio dos Santos(20), denuncia a falácia do neoliberalismo, enquanto um intervencionismo escamoteado, através da análise dos gastos públicos de vários Estados Nacionais, que aumentaram do período de 1960 aos nossos dias drasticamente (incidindo sobre a corrida armamentista) da casa dos 20 a 30% para a dos 40% do Produto Interno Bruto, particularmente sob a égide do neoliberalismo de Thatcher, Reagan etc.

“No entanto, eles ainda se apresentam como feitores de uma colossal onda neoliberal. Trata-se, portanto, do neoliberalismo do capitalismo monopolista de estado que consiste no aumento da intervenção estatal para garantir a sobrevivência do capital, sobretudo dos grandes monopólios e do capital financeiro (o grifo é nosso). Quando se trata de defender esses interesses, a economia de mercado é mandada às favas, pois ela não se coaduna com o mundo dos monopólios, oligopólios e corporações multinacionais que dominam a vida econômica dos nossos dias”(21).

Eros Grau(22), dá-nos conta que a pretensão de modernidade, tida pelos neoliberais como sinônimo de livre mercado, é uma ilusão produzida por estes modernos, demonstra isto através de sua análise do tratamento normativo que os países desenvolvidos vêm conferindo à matéria do trato preferencial conferido pelo Estado, na aquisição de bens e serviços a empresas nacionais. Concluindo, que os ditos modernos, não fazem nenhum exemplo de mercado livre(23).

Estas afirmações nos conduzem a atestar que o Estado neoliberal não existe. O neoliberalismo realmente existente não é senão o Estado do grade capital que, por meio da derrota da classe operária, impôs rupturas ou limitações aos pactos corporativos do pós-guerra. A derrota proletária foi econômica e política, mas também ideológica, onde o Keynesianismo e o marxismo estão desprestigiados, e a atuação estatal virou sinônimo de ineficiência, inflação e privilégios.

As perplexidades trazidas pelo neoliberalismo se ampliam quando o confrontamos com a democracia, pois hoje torna-se um lugar comum associar o neoliberalismo com o autoritarismo.

Em observando as pautas neoliberais, que se punham como alternativa à crise global do capitalismo, veremos que o neoliberalismo sucede o Welfare State sem solucionar vários impasses, ao contrário acirrando-os: a) “o crescente aumento da distância entre pobres e ricos (em 1900 os ricos eram 33% do planeta, em 1990 a riqueza concentra-se nas mãos de 15%); b) a ascensão do racismo e dos xenofobismos, e Le Pen é um exemplo de rápida ascensão institucional ao poder, como efeitos por toda a Europa; c) a crise ecológica está ampliada. A não resolução dessas três realidades apontam para a barbárie”(24)

Norberto Bobbio em ensaio a respeito do tema nos esclarece que a incompatibilidade entre democracia e neoliberalismo é um dos objetivos dessa doutrina, vejamos: “por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica consequente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. Ninguém melhor do que um dos notáveis inspiradores do atual movimento em favor do desmantelamento do Estado de serviços, o economista austríaco Friedrich von Hayek, insistiu sobre a indissolubilidade de liberdade econômica e de liberdade sem quaisquer outros adjetivos, reafirmando assim a necessidade de distinguir claramente o liberalismo, que tem seu ponto de partida numa teoria econômica, da democracia, que é uma teoria política, e atribuindo à liberdade individual (da qual a liberdade econômica seria a primeira condição) um valor intrínseco e à democracia um valor instrumental. Hayek admite que, nas lutas passadas contra o poder absoluto, liberalismo e democracia puderam proceder no mesmo passo e confundir-se um na outra. Mas agora tal confusão não deveria mais ser possível, pois acabamos por nos dar conta – sobretudo observando a que conseqüências não-liberais pode conduzir, e de fato conduziu, o processo de democratização – de que liberalismo e democracia respondem a problemas diversos: o liberalismo aos problemas das funções do governo e em particular à limitação de seus poderes; a democracia ao problema de quem deve governar e com quais procedimentos”(25).

Com este esclarecimento de Bobbio, fica mais nítida a associação entre neoliberalismo e autoritarismo, pois para os neoliberais a excessiva participação do povo no governo, é traduzida em mais demandas para o Estado, e para o mercado isto é uma sobrecarga insuportável. Sem dúvida estamos hoje às voltas com a hegemonia da ideologia de mercado, porém não mais o mercado que educa e civiliza dos primeiros liberais, mas do mercado quase como guerra. “E o mercado como guerra gera, como Hobbes bem sabia, um Estado para pôr ordem nas coisas que não será o Estado Democrático, o Estado de Direito, mas o oposto”(26)

5 – Os Princípios da Ordem Econômica da Constituição Federal de 1988 face ao Neoliberalismo

Partindo de um referencial teórico que admite que o neoliberalismo anacroniza os pilares do paradigma liberal-legal, sob o qual está erigido o ordenamento jurídico brasileiro, devemos fazer uma breve análise de como a ordem econômica brasileira e seus princípios estatuídos na constituição sentem a repercussão do ideário neoliberal.

A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988, segundo Eros Grau, após uma análise de vários autores, “consagra um regime de mercado organizado, entendido como tal aquele afetado pelos preceitos da ordem pública clássica (Geraldo Vidigal); opta pelo tipo liberal do processo econômico, que só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando o aumento arbitrário dos lucros – mas sua posição corresponde à do neo-liberalismo ou social-liberalismo , com a defesa da livre iniciativa (Miguel Reale).

Segue Eros Grau em sua análise afirmando que a Constituição de 1988, “contempla a economia de mercado, distanciada, porém do modelo liberal puro e ajustada à ideologia neo-liberal (Washington Peluso Albino de Souza); a Constituição repudia o dirigismo, porém acolhe o intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado, mas a seu favor (Tércio Sampaio Ferraz Júnior); a Constituição é capitalista, mas a liberdade é apenas admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (José Afonso da Silva);

A Constituição consagra a “estatolatria” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho); o constituinte preferiu o modelo rígido-ortodoxo que conduz ao dirigismo econômico (Raul Machado Horta).

Quanto ao Princípios positivados da ordem Econômica na Constituição de 1988, observa-se que consagram valores entre si potencialmente conflitantes, a exemplo: a propriedade privada (incisos XXII do art. 5º. e III do artigo 170), a livre concorrência (inciso IV do art. 170) e a “busca do pleno emprego” (inciso VIII do art. 170), a livre iniciativa (inciso do art. 1º) e o caráter normativo e regulador da atuação do estado no exercício de suas funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174), no plano da efetiva aplicação desses dispositivos constitucionais quais deles devem efetivamente predominar quando todos estiverem ao mesmo tempo em questão ? Em termos mais específicos: na medida em que a constituição também enfatiza a dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º) e a erradicação tanto da pobreza e da marginalização econômica quanto das desigualdades sociais (inciso III do art 3º) estará ela subordinando estes princípios programáticos ao direito de propriedade? Ou, ao condicionar o exercício desse direito à sua função social, não o estará colocando como meio para a realização desses mesmos princípios? As respostas a estas questões ultrapassam os limites desse trabalho, sendo colocados no intuito de refletirmos sobre as contradições existentes em nosso ordenamento jurídico.

Passemos a analisar os princípios constitucionais da ordem econômica frente ao neoliberalismo, de antemão veremos que alguns deles são amplamente receptivos ao neoliberalismo, tais como : a propriedade privada (inciso II do art. 170) e a livre concorrência (inciso IV do art. 170), porém outros chocam-se com a perspetiva neoliberal, como a busca do pleno emprego (inciso VIII do art. 170) que uma meta de teor Keynesiano a quem o neoliberalismo é antípoda; a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e sociais (incisos III e VII do art,170) perfazem um princípio de justiça distributiva correlato da justiça social; e também a soberania nacional (inciso I do art. 170) que é desprezada pelo capital monopolista e internacionalista.

O quadro constitucional que temos diante do neoliberalismo é de clara indeterminação, pois diante da conflituosidade entre princípios antagônicos no que tange o seu arcabouço ideológico, nos leva a de certa forma reiterar a idéia inicial deste tópico de que o neoliberalismo anacroniza o paradigma liberal-legal sob o qual está erigido o nosso ordenamento jurídico.

6 – Esboçando Conclusões

Não é o fato de aceitarmos uma certa hegemonia da pregação neoliberal, que nos levará aceitar todos os seus ditames, pois como observamos, o discurso neoliberal é falacioso e não vem cumprindo com as suas promessas de progresso, não se mostrando , portanto, como verdadeira alternativa ao suposto esgotamento do Welfare State. Destarte, nos cabe corroborar a afirmação feita de que o Estado neoliberal realmente existente não existe. E respondendo à questão que nos propusemos, se o neoliberalismo é intervencionista, constatamos ao longo do trabalho que este vem praticando um intervencionismo perverso, bem mais do que o intervencionismo oficial que denuncia e contrapõe.

Ademais, a imperiosidade de desregulamentação do processo econômico, posta pelo neoliberalismo, no sentido de uma diminuição da ordenação normativa, encontra ressonância na conformação da ordem econômica na Constituição de 1998, a qual ora atende ao estado intervencionista, ora rende-se ao neoliberalismo. Acreditamos que para fazer face ao neoliberalismo, devemos passar por um processo de substituição da rigidez das normas jurídicas, dotadas de coatividade e sanção, pela flexibilidade das normas programáticas e dos regulamentos administrativos, isto se dá através do direito econômico com seu conjunto de normas-objetivos, que suplantando a tradicional normatividade da atividade econômica, possibiltará a realização de uma mediação entre o até então vitorioso neoliberalismo e as exigências de justiça social.

NOTAS

– Merquior, José Guilherme. O Liberalismo – antigo e moderno, S. Paulo, Nova Fronteira, 1991.p. 45
– Op.cit. p. 45.
– Op.cit. p. 58.
– ” se o resultado é tão diverso dos nossos objetivos- se ao invés de liberdade e prosperidade, é miséria e servidão o que temos pela frente- não está claro que forças funestas devem ter frustrado as nossas intenções, e que somos vítimas de algum poder malígno que deve ser dominado antes de retomarmos o caminho para melhores coisas”. F. A. Hayek, O Caminho da Servidão, Rio, Ed. Globo, 1946, p. 33.
– Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, Brasília, Ed. UNB, 1983. p. 59.
– Anarquia, Estado e Utopia, Rio, Zahar, 1991.p. 18
– Responsabilidade do Estado Intervencionista, S. Paulo, Saraiva, 1990.p. 26- 32.
– Op.cit. p. 33- 37.
FernandoScaff adeverte que o Estado contemporâneo somente pode ser considerado como intervencionista no dominío econômico se contraposto ao Estado liberal, em que a intervenção também ocorreu, apenas que no “ponto zero”. Op.cit. p. 38.
Scaff. Op.cit. p.40.
– Mises, Ludwig von. Uma Crítica ao Intervencionismo. Rio, Instituto Liberal. 1987.p. 16
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