O Novo Código Civil Brasileiro e a Teoria da Empresa

Daniel Carneiro Machado

“A empresa continua sendo um fenômeno desafiante para o Direito, não obstante já tenham decorrido tantos anos desde o seu primeiro aparecimento na legislação através do Código Napoleônico.”

Waldirio Bulgarelli
1. Introdução:

No atual cenário econômico tomado pelo processo da globalização e pelos avanços tecnológicos, é importante destacar a crescente influência e participação da empresa como coração da sociedade contemporânea, estando, ela, sem dúvida, no centro da economia moderna, constituindo a célula fundamental de todo o desenvolvimento industrial.
Neste cenário, promulgou-se o novo Código Civil Brasileiro, que regula o “Direito de Empresa” no seu Livro II, marcando o abandono do sistema tradicional consagrado pelo Código Comercial de 1850, baseado no comerciante e no exercício profissional da mercancia – teoria dos atos de comércio, trocando-o pela adoção do sistema do empresário e da atividade empresarial – teoria da empresa.
O presente estudo se propõe, assim, a demonstrar a mudança de ótica do Direito Comercial, cujo objeto de atuação sofrerá profunda ampliação com a entrada em vigor da nova codificação em 2003, na medida em que o comerciante deixará de ser o centro nuclear do sistema, igualando-se os tipos de atividades econômicas produtivas (principalmente os de indústria e de serviços), passando todos a figurar em um mesmo plano, o da empresa como atividade economicamente organizada para a produção ou oferta de bens ou serviços aos mercados.
As conseqüências serão, sem dúvida, de grande monta, a principiar pelo abalo na estrutura tradicional do Direito Comercial, alcançando inclusive sua própria denominação, que futuramente não tratará esse direito como comercial, mas sim como “direito de empresa”, ou “direito empresarial”, que possui abrangência de significação muito maior.

2. Da evolução histórica até o advento da teoria da empresa:

Para facilitar a compreensão e o debate, mister se faz discorrer de forma suscinta sobre a evolução do Direito Comercial, demonstrando as teorias que explicaram a incidência das normas comerciais nas diferentes épocas, até o surgimento e evolução da Teoria da Empresa e sua implantação com o novo Código Civil Brasileiro.
O Direito Comercial remonta a Idade Média, quando intensificaram o surgimento das feiras e corporações nas cidades medievais. Naquela época, o crescimento das cidades e do comércio deu origem a profissão de comerciante e, em seguida, deu origem a classe burguesa em contraposição aos senhores feudais.
Conforme ensina o Professor Rubens Requião :
“É nessa fase histórica que começa a se cristalizar o direito comercial, deduzido das regras corporativas e, sobretudo, dos assentos jurisprudenciais das decisões dos cônsules, juízes designados pela corporação, para, em seu âmbito, dirimirem as disputas entre comerciantes…
Temos, nessa fase, o período estritamente subjetivista do direito comercial a serviço do comerciante, isto é, um direito corporativo, profissional, especial, autônomo, em relação ao direito territorial e civil, e consuetudinário.”
Os comerciantes faziam as leis que lhes seriam aplicadas pelos cônsules, também comerciantes, que tinham função jurisdicional dentro das próprias corporações. Somente os membros dessas corporações estavam sujeitos à jurisdição consular e aos costumes formados e difundidos pelos mercadores.
Esta fase do desenvolvimento histórico do Direito Comercial é classificada como a da teoria subjetiva porque somente aqueles que estavam matriculados nas corporações é que eram considerados comerciantes, e somente estes tinham acesso aos tribunais do comércio.
Contudo, começou-se a perceber que nem toda a vida e a atividade do comerciante eram absorvidas pelo exercício profissional do comércio, impondo-se a necessidade de se delimitar o conceito da matéria comercial. Além disso, verificou-se também a generalização do uso de alguns institutos por não comerciantes, como, por exemplo, a letra de câmbio, o que demonstrou a inadequação da teoria puramente subjetiva para se delimitar a aplicação das normas e prerrogativas mercantis.
A partir daí, iniciou-se a formação e expansão do conceito objetivista calcado sobre os atos de comércio.
A proposta da teoria dos atos de comércio é alterar o modo de classificar o comerciante de forma puramente subjetiva (aquele que estava matriculado nas corporações, que tinha acesso aos tribunais do comércio), para um critério mais objetivo (praticar determinado ato de comércio de forma profissional). É o exercício profissional de determinada atividade que fará com o que o comerciante seja considerado como tal.
O marco histórico desta teoria é a entrada em vigor do Código Napoleônico, em 1807. Inspirados nos ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – a proposta dessa teoria é abarcar com o direito comercial todos aqueles que se dedicassem à atividade mercantil, independentemente de estarem ou não afiliados a alguma corporação de classe. Pela teoria dos atos de comércio, comerciante era aquele que praticava atos de comércio.
A orientação dita objetiva do Código Francês de 1807 acabou sendo seguida por vários outros códigos. Assim foi com o Código Comercial Espanhol de 1829, o Código Comercial Italiano de 1882, o Brasileiro de 1850, o Português de 1833 e outros.
Nascido em meados do Século XIX, o Código Comercial Brasileiro sofreu profunda influência do direito francês, adotando a teoria dos atos de comércio permeada, contudo, por uma certa subjetividade quando dispõe no artigo 4o. que comerciante é aquele que esteja matriculado em algum Tribunal do Comércio do Império e que faça da mercancia profissão habitual.
Como se vê, o código não se refere a atos de comércio, mas a mercancia, que só foi definida pelo Regulamento 737, no seu artigo 19, enumerando determinadas atividades.
A dificuldade da teoria dos atos de comércio é justamente estabelecer o conceito científico destes atos. Não existe um critério certo e lógico para defini-los, o que gera situações anacrônicas e incompatíveis com a conjuntura da economia moderna, na medida que exclui determinadas atividades econômicas do campo de incidência das normas comerciais. Ato de comércio ficou sendo aquilo que o legislador estabelecesse. O que não estivesse previsto em lei, seria ato civil não sujeito às normas e prerrogativas comerciais.
Conforme ensina o Professor Waldirio Bulgarelli :
“Como os atos de comércio não se constituem em categoria lógica, como já fizemos referência, mas sim em categoria legislativa, seu conceito varia bastante em relação ao tempo e ao espaço, como se verifica nos vários países. Em última análise, compete por isso à lei definir o que seja ato de comércio.”
Alfredo de Assis Gonçalves Neto arremata da seguinte forma:
“O principal argumento contrário ao sistema objetivo é justamente a precariedade científica da base em que se assenta – uma enumeração casuística de atos de comércio, feita pelo legislador ao acaso (de acordo com aquilo que a prática mercantil considerava, à época, pertencer ao Direito Comercial). Com isso, sequer se consegue encontrar o conceito de seu elemento fundamental, o ato de comércio.”
Essa dificuldade de se conceituar os atos de comercio, enfim, gerou, e gera até hoje, distorções no alcance das normas do Direito Comercial, limitando sobremaneira a matéria do comércio.
Em face da deficiência jurídico-conceitual, a teoria objetiva se mostrou lacunosa, não abrangendo atividades econômicas tão ou mais importantes que o simples comércio de bens, intermediação de vendas ou mediação especulativa entre a oferta e a procura de mercadorias.
Não é mais sustentável negar o caráter empresarial das atividades econômicas desenvolvidas de forma organizada e em massa, tais como a prestação de serviços, a agricultura, a negociação imobiliária entre outras. Não as considerar matérias do comércio sujeitas às normas e prerrogativas comerciais, como a falência e concordata, significa distorcer a realidade.
Importante frisar que não adianta criar leis esparsas para declarar certas atividades como sendo comerciais visando incluí-las sob a ingerência do direito comercial, como foi feito em relação à construção civil (Lei n. 4.068/62), à incorporação imobiliária (o incorporador está sujeito à falência – Lei n. 4.591/64), às empresas de trabalho temporário (Lei n. 6.019/74), entre outras. Sabe-se que a simples edição de novas leis não resolverá as distorções, visto que as atividades comerciais são dinâmicas e inovadoras, sendo certo que, na conjuntura atual da economia, novas formas de produção e circulação em massa de bens e serviços sempre irão surgir. É o caso do comércio eletrónico via internet.
A solução dependerá, pois, da mudança total de ótica do próprio Direito Comercial.
Daí que surgiu a teoria moderna da empresa que tem o sentido prático de ampliar o campo de incidência do direito comercial, conforme se verá a seguir.

3. A Teoria da Empresa:

O cerne dessa teoria está nesse ente economicamente organizado que se chama “empresa”, a qual pode se dedicar tanto a atividades eminentemente comerciais como a atividades de prestação de serviços ou agricultura, antes não abrangidas pelo Direito Comercial. Para a teoria da empresa todo empreendimento organizado economicamente para a produção ou circulação de bens ou serviços está submetido à regulamentação do Direito Comercial.
O Professor Waldirio Bulgarelli afirma que “nos dias que correm, transmudou-se (o direito comercial) de mero regulador dos comerciantes e dos atos de comércio, passando a atender à atividade, sob a forma de empresa, que é o atual fulcro do direito comercial” .
A dificuldade da teoria da empresa é justamente estabelecer o conceito jurídico da “empresa”.
Carvalho de Mendonça considera o conceito econômico de empresa também como jurídico, assim definindo-a:
“Empresa é a organização técnico- econômica que se propõe a produzir mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresário, isto é, daquele que reúne, coordena e dirige esses elementos sob a sua responsabilidade.”
Coube, todavia, ao jurista italiano Asquini o desbravar desta selva de dificuldades sobre a novel instituição da empresa, resultando sua decomposição interpretativa em quatro facetas sob as quais encará-la, às quais denominou de perfis, que fez publicar na Rivista del Diritto Commerciale (v.41-I, 1943), como sendo: perfil subjetivo, perfil objetivo, perfil funcional e perfil corporativo, assim entendidos a empresa como empresário, como estabelecimento, como atividade e como instituição, respectivamente.
Apesar da dificuldade de se delimitar o conceito jurídico de empresa, foi com o Código Civil Italiano de 1942 que se verificou uma tentativa séria de implantação dessa teoria, instituindo um regime legal amplo para a empresa, regulando os aspectos das relações de trabalho no âmbito da mesma, disciplinando o estabelecimento comercial e regulando o exercício de atividade pelo empresário.
Na codificação italiana, o legislador, reconhecendo que o Direito ainda não havia conseguido formular o conceito jurídico de empresa, conceituou apenas o empresário no artigo 2.082, segundo o qual “É empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”.
A influência italiana foi marcante e o legislador brasileiro seguiu a orientação no novo Código Civil, regulando a empresa através da pessoa do empresário, ou seja, consagrando o perfil subjetivo da empresa.
O conceito de empresário do novo Código Civil praticamente repete o conceito do italiano. Define também no artigo 1.142 o conceito de estabelecimento como “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.
Tomando a empresa, em seu perfil subjetivo, o novo codex conceitua o empresário por traços definidos em três condições: exercício de atividade econômica destinada à criação de riqueza pela produção de bens ou de serviços para circulação; atividade organizada, através da coordenação dos fatores da produção; e exercício profissional.
Pode-se dizer, neste contexto, que, com a promulgação do Novo Código Civil Brasileiro – Lei nº. 10.406 de 10 de Janeiro de 2002, marcou-se definitivamente o abandono do sistema tradicional baseado no comerciante e no exercício profissional da mercancia, substituindo-os pelo sistema do empresário e da atividade empresarial.
A implantação destes novos conceitos (de empresário e estabelecimento comercial) no ordenamento jurídico brasileiro, sem dúvida, irá refletir no campo de aplicação do Direito Comercial que, aliás, já pode ser até definido como Direito Empresarial.
O comerciante e os atos de comércio não mais serão considerados como peças angulares, como ocorre no sistema atual, pois o fundamento da qualificação do empresário não será, como agora, “o exercício profissional da mercancia” (artigo 4o. do Código Comercial de 1850), e, sim, a empresa como noção relacionada à atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida profissionalmente.
Essa nova codificação admitirá, assim, a existência de empresas nos vários setores da atividade econômica, sendo certo que o termo empresário não corresponderá mais ao antigo comerciante, mas, também, ao produtor rural (empresa rural), ao prestador de serviços, ao Estado (empresas públicas), o que alterará profundamente o campo de atuação do Direito Comercial hoje vigente, sobretudo no que tange à aplicação dos institutos jurídicos da falência e da concordata.

4. Conclusão:

A revogação da primeira parte do Código Comercial de 1º de junho de 1850, com a introdução do Direito de Empresa no novo Código Civil, é um avanço, que merece destaque especial, até porque torna o comerciante um empresário voltado para a atividade econômica, que é a nova leitura que se deve fazer nos tempos modernos.
A nova codificação, ao regular o Direito de Empresa no Livro II, como já dito, abandonou o sistema tradicional do Código Comercial de 1850, baseado no comerciante e no exercício profissional da mercancia, trocando-o pela adoção da Teoria da Empresa em seu perfil subjetivo, o do empresário.
Já se tornou notório que a empresa, independentemente do setor de atuação, domina o panorama da economia moderna, principalmente porque é ela a responsável pela produção e comercialização em massa, mas também pelos progressos tecnológicos verdadeiramente revolucionários que utiliza e, consequentemente, pela dimensão extraordinária que alcançou.
Neste contexto, mostra-se de suma importância a Teoria da Empresa, voltada para a organização dos fatores de produção, que proporcionam a circulação de bens e serviços, com vistas ao lucro, conduzindo a uma reformulação total no entendimento do objeto das sociedades, sejam elas comerciais ou civis, fulcrado no ato de comércio, passando estas sociedades, a partir daí, a terem os seus objetos voltados às atividades empresariais, independentemente da prática ou não de atos ditos mercantis.
O novo Código Civil, promulgado recentemente, segue orientação do Código Civil Italiano de 1942, consagrando essa teoria no Livro II, do “Direito de Empresa”. As sociedades antes conhecidas por sociedades comerciais passam a se denominar “sociedades empresárias”.
No dizer do Professor Miguel Reale , “o tormentoso e jamais claramente determinado conceito de ato de comércio é substituído pelos atos de empresa e atividade empresarial, assim como a categoria de fundo de comércio cede lugar à de estabelecimento”.
Para haver harmonia ao novo regime legal, os diversos institutos comerciais, como a Falência e a Concordata, deverão ser interpretados à luz dessa teoria, o que ampliará a incidência das normas comerciais para diversos setores da economia.
A adoção da Teoria da Empresa implicará, pois, sem dúvida, no avanço do Direito Comercial, que permitirá a adequação das normas jurídicas à evolução da economia moderna.
5. Bibliografia:

– Asquini, Alberto. Perfis da Empresa. Tradução com anotações do Professor Fábio Comparato, Revista de Direito Mercantil 104/109.
– Waldirio Bulgarelli. O Direito das Empresas. São Paulo: Ed. RT. 1980.
– Bulgarelli, Waldirio. Direito Comercial. 14ª Edição. São Paulo: Atlas, 1999.
– Bulgarelli, Waldirio. Direito Comercial. 15ª Edição. São Paulo: Atlas, 2000.
– Bulgarelli, Waldirio. Sociedades Comerciais. 8ª Edição. São Paulo: Atlas, 1999.
– Gonçalves Neto, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2a. Edição. Revisada e Atualizada. Curitiba: Juruá, 2000.
– Lei nº. 10.406 publicada no Diário Oficial em 10 de Janeiro de 2002 – Novo Código Civil Brasileiro.
– Martins, Waldemar Ferreira. Compêndio das sociedades comerciais. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1940.
– Mendonça, J. X. Carvalho. Tratado de direito comercial brasileiro. Volume nº. 3, São Paulo: 1945.
– Miguel, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. Revista de Direito Mercantil. Volume 118/07.
– Paes, P. R. Tavares. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Editora RT, 1987.
– Pacheco, José da Silva. Tratado de Direito Empresarial, Empresário: Pessoa e Patrimônio. São Paulo: Saraiva, 1979.
– Reale, Miguel. Exposição de Motivos do Projeto de Código Civil. Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, v. 5, t. 2, Brasília, 1989, p. 17.
– Wald, Arnoldo. A Evolução do Direito Societário. Revista de Direito Mercantil. Volume 120/56.
– Requião, Rubens. Curso de Direito Comercial. 22a. Edição. Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.
– Salles, Marcos Paulo de Almeida. A visão jurídica da empresa na realidade brasileira atual. Revista de Direito Mercantil. Volume 119/ 94.

DADOS DO AUTOR:

Daniel Carneiro Machado, advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG, especialista em Direito de Empresa, sócio do Escritório Santos, Diniz e Machado Advogados S/C, em Belo Horizonte/MG

Este artigo foi elaborado em fevereiro de 2002.

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