O NOVO CONCEITO DE INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO

Victor Eduardo Rios Gonçalves
Janeiro/2002

Estabelece o art. 61 da Lei n. 9.099/95: são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

Logo que a Lei entrou em vigor, surgiram duas correntes acerca da interpretação do dispositivo. Uma delas entendia que não estariam abrangidas pelo conceito de infração de menor potencial ofensivo as contravenções penais para as quais existisse rito especial, como o jogo do bicho (Lei n. 1.508/51), enquanto a outra considerava que a exceção era apenas para os crimes. A polêmica, entretanto, foi logo encerrada, adotando-se o segundo entendimento, uma vez que as contravenções devem ser interpretadas como delitos de menor gravidade e, por conseguinte, o conceito de infração de menor poten­cial lesivo abrange todas elas (qualquer que seja a pena), bem como os crimes que tenham pena máxima não superior a um ano, exceto se houver rito especial para a apuração destes. O conceito abrange crimes previstos no próprio Código Penal e em legislações extravagantes, desde, portanto, que a pena em abstrato não exceda a um ano, e desde que não haja previsão de rito especial.

Acontece que a Lei n. 10.259, de 12.7.2001, regulamentando os Juizados Especiais Cíveis e Criminais na esfera Federal, estabeleceu em seu art. 2.º, par. ún., que:

Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

A mesma lei, em seu art. 20, expressamente vedou a sua aplicação no âmbito da Justiça Estadual.

Teríamos, então, duas definições de infração de menor potencial ofensivo, uma para a Justiça Estadual e outra para a Federal?

A doutrina não tardou a se manifestar sobre o assunto, posicionando-se no sentido de que a nova lei é inconstitucional no que se refere à proibição de ser aplicada na esfera Estadual, por claramente afrontar o princípio da isonomia (art. 5.º, caput, da Constituição Federal), bem como os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Com efeito, se vingasse a diferenciação que a nova lei pretendeu estabelecer, o agente que desacatasse um policial federal seria julgado perante o Juizado Federal com direito a todos os benefícios que disso decorrem (transação, procedimento sumaríssimo etc.), enquanto aquele que desacatasse um policial estadual não teria o mesmo direito, uma vez que o desacato possui pena máxima de dois anos. Essa diferença de tratamento obviamente ofende o princípio da igualdade e evidencia uma total desproporcionalidade na aplicação da norma penal, já que fatos de igual gravidade teriam tratamentos diversos.

Além disso, a distinção pretendida pela Lei n. 10.259/01 fere o próprio bom senso. Imagine-se um funcionário público estadual cometendo abuso de autoridade. Seria julgado pela Justiça Estadual Comum e não teria direito aos benefícios legais, porque o crime tem rito especial (Lei n. 4.898/65); porém, se cometesse o abuso juntamente com um funcionário federal ambos teriam tais benefícios, porque seriam julgados pelo Juizado Especial Federal (Súmula n. 122 do STJ). Essa interpretação é claro que não pode ser aceita.

Em razão disso, chegou-se à conclusão que tal lei trouxe nova definição de infração de menor potencial ofensivo, e que, por ser posterior, deverá ser aplicada tanto no âmbito estadual quanto no federal. Está, pois, derrogado o art. 61 da Lei n. 9.099/95, no que se refere aos crimes. Nesse sentido também a opinião de damásio de jesus, luiz flávio gomes, alberto silva franco, fernando capez, cezar roberto bittencourt, adauto suannes, cláudio dell orto, fernando luiz ximenes rocha, josé renato nalini e paulo sérgio leite fernandes (conforme artigos publicados na internet em 31.7.2001, pelo IBCCrim), e mariana de souza lima lauand e roberto podval (Boletim IBCCrim, out.2001, p. 22-23).

Em suma, a pena máxima para que um crime seja considerado de menor potencial ofensivo passou a ser de dois anos, abrangendo agora crimes como desacato, resistência, lesão corporal na direção de veículo automotor etc.

Ocorre que, analisando o art. 2.º, par. ún., da Lei n. 10.259/01, surge a necessidade de salientar que as conseqüências da nova definição são ainda maiores. Com efeito, ao contrário do que ocorre com a Lei n. 9.099/95, o novo texto não excluiu da competência do Juizado Especial Criminal os crimes que possuam rito especial, alcançando, por exemplo, os delitos de porte de entorpecentes, prevaricação, abuso de autoridade e outros, quer sejam de competência da Justiça Federal ou da Estadual. Partindo dessa premissa, é fácil vislumbrar as enormes modificações no plano prático, já que esses delitos deixarão de seguir as regras do CPP e das leis especiais, que estabeleciam rito diferenciado, para seguir os ditames da própria Lei n. 9.099/95 no que se refere à fase policial e judicial. Desse modo, deverá ser lavrado termo circunstanciado – e não auto de prisão em flagrante – em relação àquele que, p ex., seja surpreendido cometendo abuso de autoridade, mesmo que ele seja reincidente (é o que se depreende do art. 69, par. ún., da Lei n. 9.099/95). O procedimento a ser seguido em juízo, após a realização de audiência preliminar em que se frustre a tentativa de transação, será o rito sumaríssimo da Lei n. 9.099/95 e não o rito especial da Lei de Tóxicos, já que o delito passou a ser considerado de menor potencial ofensivo. Essas regras valerão também para os crimes de porte de entorpecentes, crimes contra a Administração Pública, contra a honra, ou qualquer outro delito cuja pena máxima não seja superior a dois anos.

Em suma, pode-se dizer que, após o advento da Lei n. 10.259/01, passarão a ser consideradas infrações de menor potencial ofensivo:

a) todos os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos (ainda que atualmente possuam rito especial);

b) todas as contravenções penais, independentemente da pena. A nova Lei não as menciona porque não poderia fazê-lo, já que a Justiça Federal não julga contravenções, nos termos do art. 109, IV, da Constituição Federal. Na esfera estadual, contudo, as contravenções continuam a ser infrações de menor potencial ofensivo;

c) os crimes para os quais haja previsão de multa em abstrato, alternativamente com pena privativa de liberdade, qualquer que seja o montante dessa multa. Tal conclusão decorre da parte final do art. 2.º, par. ún., da Lei n. 10.259/01: “…, ou multa”. Assim, os crimes contra a relação de consumo, previstos no art. 7.º, da Lei n. 8.137/90, que são apenados com detenção de dois a cinco anos, ou multa, também são considerados de menor potencial ofensivo. O mesmo ocorre com o crime de destruição de floresta de preservação permanente, descrito no art. 38 da Lei n. 9.605/98, cuja pena é detenção, de um a três anos, ou multa. Já o crime de dano qualificado – que tem pena de detenção, de seis meses a três anos, e multa– não é considerado de menor potencial ofensivo, porque a multa é cumulativa com a pena privativa de liberdade.

Observações:

1) Essas novas regras, nos termos do art. 5.º, XL, da CF, são retroativas, uma vez que são mais benéficas e têm inegáveis reflexos de natureza penal;

2) O instituto da suspensão condicional do processo não sofreu qualquer alteração, sendo permitido apenas para os crimes que tenham pena mínima não superior a um ano.

3) Existe entendimento no sentido de que as novas regras não seriam aplicáveis aos crimes de porte de entorpecentes, porte de armas e calúnia, porque esses delitos são apenados com detenção, de seis meses a dois anos, e multa, e a Lei n. 10.259/01 só as admitiria se a pena máxima fosse de dois anos, ou multa. Para os seguidores dessa corrente, o fato de haver previsão cumulativa de multa excluiria a competência dos Juizados Especiais Criminais. Tal raciocínio, entretanto, é absurdo. Inicialmente, porque se fosse essa a intenção do legislador, o texto deveria ser expresso. Em segundo lugar, porque existe uma vírgula separando a pena privativa de liberdade – máxima de dois anos – da menção à pena de multa. Além disso, considerando que o art. 61 da Lei n. 9.099/95 está derrogado, o acolhimento dessa interpretação acabaria excluindo da competência dos Juizados crimes como desobediência (detenção de um a seis meses, e multa), favorecimento pessoal (detenção de um a três meses, e multa), favorecimento real (detenção de um a seis meses, e multa).

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