O papel do vereador e a constitucionalidade

Por Manoel Carlos de Almeida Neto

A plena integração dos municípios ao pacto federativo pelo primeiro artigo da Constituição Republicana de 1988, que também lhes assegurou autonomia administrativa, financeira e competência para legislar sobre assuntos de interesse local, fez surgir a necessidade de se exercer a fiscalização de constitucionalidade de leis e atos normativos municipais.

Um importante levantamento revelado pela revista Consultor Jurídico e publicado no primeiro Anuário da Justiça de São Paulo constatou que, de cada dez leis produzidas pelas Câmaras Municipais paulistas que são questionadas no Tribunal de Justiça, nove acabam derrubadas porque ferem a Constituição Estadual, sem falar naquelas que não são impugnadas e as que violam a própria Carta Federal.

Com efeito, esse quadro desolador não é exclusivo das cidades paulistas, ao contrário, ele se reproduz nos 27 Tribunais de Justiça Estaduais responsáveis por verificar a compatibilidade de normas municipais com a Constituição Federal no julgamento de casos concretos, ou com a Constituição Estadual nas representações de inconstitucionalidade.

O controle de constitucionalidade das leis, como se sabe, não é tarefa exclusiva do Poder Judiciário porque o nosso sistema, à semelhança do francês, compartilha essa função com órgãos de natureza política. É que na França do século XVIII, os juízes do velho regime representavam o maior obstáculo à revolução, por suas frequentes interferências nas questões do Legislativo e do Executivo conforme reverberava, com propriedade, a pregação panfletária do abade Sieyès ao seu 3º Estado. Com a vitória dos revolucionários, esse controle foi confiado a órgão político, hoje consubstanciado no Conseil Constitutionnel.

No Brasil, em regra, a fiscalização judicial de constitucionalidade é exercida de forma repressiva, ou seja, depois que a norma inconstitucional produziu os seus efeitos e provocou algum dano. Daí a importância que se deve atribuir ao órgão político em sua relevante tarefa de compatibilizar, preventivamente, os projetos de lei com a Constituição.

Em nosso sistema constitucional, o controle político de constitucionalidade é previamente realizado nas deliberações do Congresso Nacional, Assembleias locais, Câmaras Municipais e, também, no veto do chefe do Executivo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Excepcionalmente, a Constituição autoriza o Legislativo a atuar de modo repressivo para sustar atos normativos do Executivo que desbordem de seus limites regulamentares.

Em 2012, o impacto do Poder Legislativo municipal será sentido em todo país por conta da edição de milhares de normas municipais que aumentam o número de vereadores nas respectivas comunas. Autorizados pelo Congresso Nacional por meio da Emenda Constitucional 58, promulgada em setembro de 2009, os municípios podem criar, em tese, até 7,7 mil novas vagas até 30 de junho de 2012, prazo final das convenções partidárias.

A despeito da consciência constitucional e do espírito político coletivo, muitos vereadores aumentam o número de cadeiras nas Câmaras Municipais tão somente para alargar as suas próprias chances de reeleição no pleito que se aproxima. Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Municípios, no final de setembro passado, revelou que 3,1 mil novas cadeiras já foram efetivamente criadas por leis municipais e que esse número pode chegar a 6,2 mil novos vereadores no próximo ano.

É evidente a legitimidade política do município para dispor sobre o número de vagas nas Câmaras segundo critérios político-constitucionais, entretanto que se observe a representação política local, e não interesses pessoais de reeleição em detrimento da população que pagará a conta.

Tendo em conta os 5.565 municípios brasileiros, podemos concluir, com certa margem de segurança, que vigoram milhares de leis e atos normativos municipais inconstitucionais pelo país provocando danos irreparáveis à população. Nesse sentido, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se deparou com diversas Leis Orgânicas Municipais que abandonaram critérios constitucionais e estabeleceram a posse automática, sem nenhuma eleição, do presidente da Câmara Municipal para completar os mandatos de prefeitos e vice-prefeitos cassados.

Situações ainda mais graves ocorreram no objetivo de driblar a Justiça Eleitoral. Nesses casos, após o TSE ter fixado eleição na modalidade direta, os vereadores fizeram mal uso de sua competência legislativa, alteraram as respectivas Leis Orgânicas e tentaram emplacar eleições indiretas, as quais descartam a participação popular por meio do sufrágio direto e geralmente culminam com a escolha fisiológica do presidente da Câmara para chefiar o Executivo local.

Em homenagem ao princípio da soberania popular, somente neste ano, o TSE determinou a realização de eleições diretas nos municípios de Mangaratiba/RJ, Umirim/CE, Magé/RJ, Luzilândia/PI, Itapororoca/PB e Cabixi/RO. Nesse último, mais recentemente julgado, o ministro Marco Aurélio chegou a recomendar, durante a sessão, mais “juízo” aos legisladores locais que, além de modificarem o tipo de eleição na undécima hora, já tinham previsto a posse do presidente da Câmara Municipal independentemente de eleição.

É imperiosa, portanto, a necessidade de conscientização do vereador de sua função preventiva de fiscalizar a constitucionalidade das normas que emanam do Poder Legislativo municipal. A Constituição formal não pode ser apenas uma folha de papel como advertiu Lassalle. É preciso que os nossos vereadores tenham compromisso permanente com a qualidade da produção legislativa local, pois, como disse Franco Montoro e é sempre bom relembrar, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”.

Manoel Carlos de Almeida Neto é secretário-geral do Tribunal Superior Eleitoral, doutorando em Direito do Estado pela USP e autor do livro “O Novo Controle de Constitucionalidade Municipal”, publicado pela Editora Forense.

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