O planejamento tributário no Brasil e a MP nº 66

José Henrique Longo*

O planejamento tributário consiste na organização da vida da pessoa, atenta às conseqüências fixadas pelas normas jurídicas tributárias, a fim de que o meio escolhido para um negócio não tenha previsão legal de incidência de tributo, ou então que tenha previsão com incidência em menor intensidade ou ainda cujo pagamento seja em período posterior.

O planejamento tributário faz parte do cotidiano das pessoas, ao lado de outras preocupações de ordem comercial, com objetivo de evitar o desperdício de dinheiro, diante não só da acirrada competitividade incrementada com a globalização mas também, particularmente no Brasil, da elevadíssima carga tributária a que se sujeitam os atos e negócios comerciais e civis.

Contudo, algumas pessoas passaram a sustentar uma corrente de pensamento no sentido de que a organização de negócio jurídico sem justificativa econômica – mas com único intuito de elidir a ocorrência do fato correspondente à hipótese de incidência do tributo – não pode se sobrepor ao interesse da coletividade em promover arrecadação de tributo em face da capacidade contributiva gerada por aquele negócio.

Essas vozes não faziam eco, porque a corrente situava-se basicamente em outros países, com sistemas normativos diferentes do Brasil. Por outro lado, os princípios constitucionais, em especial os de natureza tributária, conferem a certeza de que determinadas regras serão observadas na elaboração de normas que instituem e aumentam tributos, dentre elas o princípio da legalidade que tem como característica marcante no Direito Tributário a necessidade da tipicidade do tributo para que o contribuinte seja compelido a efetuar a prestação.

Por outras palavras, a lei deve descrever exatamente o fato para que a prestação pecuniária pretendida possa ser exigida, estando pois afastada a possibilidade da analogia; caso contrário, isto é, se o fato no mundo real não coincidir com a hipótese legal, não se instala a relação jurídico tributária e não há como exigir o pagamento.

No início de 2001, foi editada a Lei Complementar 104, que introduziu o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, o qual prevê a possibilidade da autoridade administrativa desconsiderar, para efeito fiscal, ato ou negócio jurídico praticado com finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação.

Alguns meses após a edição da LC 104, a Secretaria da Receita Federal, através da Escola de Administração Fazendária, promoveu Seminário Internacional sobre Elisão Fiscal, com palestrantes estrangeiros, para justificar a empreitada de criar uma norma geral antielisão.

Com efeito, no discurso de abertura, o Sr. Secretário da Receita Federal afirmou que a LC 104 é norma geral antielisão, e suscitou questões (com entonação de que suas respostas são todas negativas) se a elisão fiscal é um instituto que aproveita a justiça fiscal, se o contribuinte pode valer-se de formas para diminuir pagamento dos impostos, se a lei pode estabelecer situações de desvantagens competitivas entre contribuintes em virtude de seu conhecimento da lei.

Um ano após, foi promovido o Seminário Internacional de Planejamento Tributário, na cidade do Recife, no qual se debateu francamente, e com casos concretos, o conteúdo e alcance do parágrafo único do art. 116 do CTN.

Manifestaram suas opiniões eminentes professores da Argentina, da Espanha e do Brasil, ministra do Superior Tribunal de Justiça, advogados militantes e julgadores em tribunais administrativos federal e estadual.

Independentemente dos temas correlatos abordados em cada palestra e cada debate, restou claro para os participantes que aquele novo dispositivo do CTN não introduziu norma geral antielisão.

O parágrafo único do artigo 116 expressou que atos ou negócios, que encobrirem outro ato ou negócio, devem ser desconsiderados para efeitos fiscais. Ou seja, diante de uma simulação relativa, aquela em que há duas declarações de vontade, deve ser instaurada a relação jurídico tributária em razão do ato dissimulado correspondente à vontade real das partes, e deve ser desconsiderada a vontade declarada a terceiros que é falsa e encobriu a vontade real das partes.

Entretanto, a Medida Provisória 66, de 29/8/2002, trouxe no artigo 14 inovação ao sistema jurídico, recepcionando a pretensão da Secretaria da Receita Federal. Com efeito, estabelece também que são passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento.

Ora, esse dispositivo alargou a previsão do parágrafo único do artigo 116 do CTN, que é uma lei complementar, ao “cumprir” a determinação de estabelecer os procedimentos sobre a desconsideração de atos ou negócios que dissimulem.

Essa conduta do Executivo é muito pior do que simplesmente tentar sub-repticiamente incluir mais um item no seu já fortalecido armamento para combate à sonegação fiscal. É pior porque deflora um dos poucos princípios constitucionais tributários que restam ao contribuinte, qual seja, o da tipicidade, que representa a vinculação do Estado à norma específica para exigência do tributo. Sem esse princípio, deixa de ser afastada a pretensão natural do Fisco em exigir tributo num conceito geral e na subjetividade de seus agentes (fiscais).

O fundamento da corrente acima mencionada e que fez valer seu pensamento na MP 66 decorre de argumento axiológico que não se aplica no Brasil. Para justificar a norma geral antielisão, concede maior valor ao princípio da igualdade e ao seu desdobramento denominado capacidade contributiva na comparação com o princípio da legalidade e tipicidade. O interesse coletivo subjacente ao princípio da igualdade, pelo qual todos devem contribuir em face de suas riquezas, é superior ao interesse individual relativo ao princípio da tipicidade.

Acontece que o princípio da igualdade não se contrapõe ao princípio da legalidade, porque ambos favorecem o cidadão e estão previstos no mesmo artigo 5º da Constituição Federal, ainda que o da legalidade tenha previsão reforçada no art. 150, I. Enfim, o princípio da capacidade contributiva não é autorização para o Estado cobrar livremente onde encontrar riqueza ou disponibilidade; é, sim, proteção ao contribuinte de que as normas jurídicas, introduzidas por lei, somente podem fazer incidir tributo se houver capacidade contributiva.

O texto da Medida Provisória estabelece a tributação por analogia a critério do agente fiscal, ao arrepio do atual sistema jurídico brasileiro. Os atos administrativos são vinculados e obrigatórios, de maneira que não cabe discricionariedade ao agente na aplicação da norma.

O parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional representou um avanço da legislação para conter atos ilícitos dos maus contribuintes. Entretanto, a MP 66 tratou de mesma maneira, como se atos ilícitos fossem, os procedimentos lícitos tendentes a evitar a incidência da norma jurídica tributária.

É bom lembrar que normas específicas antielisão rotineiramente editadas são legítimas e representam defesa dos interesses coletivos, sem afronta à Constituição Federal.
Cabe aos contribuintes aguardar que, na sessão do Congresso Nacional, não se aprove o texto original do artigo 14 da MP 66, para que a Constituição Federal permaneça respeitada.

Revista Consultor Jurídico

José Henrique Longo é sócio do escritório Pompeu e Longo Advogados

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