O planet hemp e a hegemonia do cinismo

Alberto Zacharias Toron

É evidente que a liberdade de expressão não é ilimitada. Imagine que alguém resolva sair por aí pregando o extermínio de judeus e negros sob o argumento de constituírem “raças inferiores”, “malignas” ou coisa parecida. Embora não tão grave quanto os argumentos racistas, severamente reprovados pelas leis penais, ofensas à honra também são incriminadas. Uma sociedade democrática não pode prescindir de mecanismos de preservação dos valores cultuados. Como qualquer crime, independentemente do fato a que se refira a instigação e das consequências que dele possam advir, traz consigo uma ofensa ao sentimento de segurança dos cidadãos, resguardado pela Constituição. É da tradição do direito penal de praticamente todos os países a punição da apologia do fato criminoso ou do autor de crime (artigo 287 do Código Penal), cuja pena varia de três a seis meses de detenção ou multa.

A lei de tóxicos, de 1976, repete a idéia do Código Penal de 1940, só que, no caso de alguém contribuir “de qualquer forma” para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de drogas, vai ter, por um desses absurdos e injustificáveis excessos legislativos, a mesma pena que o traficante, isto é, de 3 a 15 anos de reclusão cumpridos integralmente em regime fechado. Enfim, de um ponto de vista jurídico e paranóico, matar uma pessoa ou pregar sua morte passou a ser a mesma coisa.

Se as penas para quem incentiva o uso de drogas são excessivas, o caso do grupo musical Planet Hemp chega a ser aberrante. É o resultado de uma mentalidade marcada pelo obscurantismo da guerra contra as drogas e, de outro lado, pela idéia de que, botando as coisas embaixo do tapete, tudo vai muito bem. Quer dizer, nesse tema, ou se fala contra ou não se fala nada. O curioso é que aqui no Brasil a banda já vendeu mais de 350 mil CDs e escandalizou alguns segmentos da sociedade com suas músicas tidas como criminosas, apenas porque defendem a idéia de que a maconha deve deixar de ser uma droga etiquetada como ilícita, ou porque apregoam não ser nociva.

Sadock e Kaplan, dois professores da faculdade de medicina da Universidade de Nova York, sustentam existir firmes evidências indicando que a maconha não provoca deterioração física ou mental (“Compêndio de Psiquiatria Dinâmica”, 1984, pág. 452). E mais: na edição de 1990, afirmam que entre os efeitos da Cannabis pode-se contar o aumento da sensibilidade para cores, música e arte (pág. 262).

Num artigo publicado pouco antes de sua morte, Paulo Francis prestou um depoimento pessoal no sentido de que não há vício em drogas. “Há viciados.” Embora exista aquele que as use e não pare mais, há muito mais pessoas que tomaram drogas de toda a espécie, pararam, ou continuaram vez por outra, e nada aconteceu com sua capacidade de funcionar. Maconha, segundo ele, é das “mais inofensivas” (“O Estado de S.Paulo”, 9/2/97).

Enfim, quando uma entidade respeitável como a Joseph Rowntree Foundation, da Inglaterra, demonstra que o perfil padrão do consumidor de drogas está muito distante daquele que o senso comum acredita, isto é, “que a maioria dos jovens que usa drogas é sociável, sensível, com padrões morais muito parecidos com os da média de sua faixa etária” (“O Estado de S.Paulo”, 9/11/97), soa ridículo que se queira tratar os jovens membros do grupo musical como criminosos por colocarem de uma maneira artística as mesmas coisas que são ditas na universidade, em livros, no Congresso Nacional e, de resto, entre jovens e adolescentes nas conversas informais. Quem aplaudiu a ação da polícia, reduzindo o acontecimento a mera aplicação da lei penal, por uma questão de coerência, deveria reclamar a prisão das pessoas citadas e, também, de uma legião de pessoas que pensam da mesma maneira.

O discurso moralista parte de premissas falsas, como a de que “o uso das drogas destrói a vida”, “perverte as relações humanas”, “corrói a vida familiar” e “inspira atitudes criminosas”. Colocações genéricas como essas servem para criar o alarmismo, mas ao confundir as inúmeras e diferenciadas drogas, cujos efeitos e sintomas são as vezes até opostos, caem no descrédito. Assim, uma coisa é a maconha, outra, bem diferente, o crack ou a heroína. Depois, são médicos que estão afirmando que a Cannabis, ao invés de incitar um comportamento criminoso, tende a suprimi-lo na exata medida que induz à letargia.

Podemos até discordar do que pensam alguns médicos, políticos, cientistas sociais e juristas, mas uma sociedade democrática não pode amordaçar os que discordam das idéias dominantes, sob o risco de se criar algo ainda pior, que é o totalitarismo engessador das inexoráveis mudanças sociais. Aliás, a liberdade filosófica teve por precursores toda a sorte de heréticos que o braço secular castigou durante todo o curso da Idade Média.

Alberto Zacharias Toron
Advogado criminalista, é professor de Direito Penal da PUC-SP. Foi presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes (1995-97) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (1995-96). É autor de “Crimes Hediondos: o Mito da Repressão Penal”.

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