O Poder Judiciário e a PEC 358/2005

“Vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei; nunca se viu a lei reformar a sociedade”.(Jean Cruet, a Vida do Direito e a Inutilidade das Leis).

A Constituição Federal dispõe que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Giorgio B. Pallieri, Professor da Universidade de Milão, sempre citado pelo saudoso Geraldo Ataliba, ensina que Estado Democrático de Direito é aquele em que todos se submetem à lei e à jurisdição. Não basta a submissão à lei, já que até em regimes totalitários há submissão às leis. A novidade mesmo é a submissão de todos, sem distinção, à jurisdição. Aí reside o diferencial caracterizador do Estado de Direito.

No Brasil, exerce a função jurisdicional, com exclusividade, o Poder Judiciário. É certo que existe a jurisdição administrativa, mas não com as notas que tipificam a jurisdição prestada pela Justiça, entre as quais o grau de definitividade de suas decisões.

O Poder Judiciário se distingue da mera autoridade judiciária. Francisco Rezek, que foi Ministro do STF e Juiz da Corte Internacional de Justiça, em Haia, Holanda, ensina que autoridade judiciária é aquela que julga as causas criminais e cíveis, estas na seara privada, entre particulares. Não lhe cabe arbitrar contendas entre o particular e a Administração Pública, e muito menos invalidar atos normativos das casas de leis.

O Poder Judiciário, diferentemente, é aquele que está habilitado, pela Constituição, e isso está cravado na nossa Lei Maior, art. 5º, XXXV, a decidir toda e qualquer contenda, não só aquela verificada entre particulares, como se dá entre locador e locatário, mutuário e banco, consumidor e comerciante etc., mas também aquelas que se estabelecem entre o particular, pessoa física ou jurídica, e o Poder Público.

No Brasil, onde há Poder Judiciário, o cidadão, inconformado com o ato do Poder Público, ilegal ou abusivo, busca, no Judiciário, e não na repartição pública ou no Departamento que faz o Contencioso Administrativo, caso da França, a resolução da questão ou do litígio. Se a lei ou ato normativo, editado pelas casas legislativas, estiver em desacordo com a Constituição, buscará o cidadão, não numa Comissão de Constituição e Justiça, mas no Poder Judiciário, a sua invalidação e retirada do mundo jurídico.

Em nosso País, onde desde a República o Poder Judiciário tem essa habilitação constitucional, a competência para invalidar atos do Poder Público e declarar a inconstitucionalidade da lei se distribui entre todos os juízes, de todos os graus de jurisdição, ou se concentra no Supremo Tribunal Federal. O primeiro chama-se controle difuso; o segundo chama-se concentrado.

A lei habilitou o cidadão e outras instituições, como o Ministério Público, a contrastarem o Poder Público, a Administração Pública, sempre que essa se desviar do caminho legal. O administrador público que desvia recursos ou os aplica em outros fins não previstos em lei comete, a grosso modo, o que se chama improbidade administrativa. Nesses casos, qualquer cidadão ou qualquer das entidades habilitadas pode buscar invalidar o ato ilegal e reparar os danos causados ao Erário.

Aos Juízes de primeiro grau ou instância compete o processo e julgamento da demanda instaurada contra o administrador ímprobo. É ao juiz estadual ou federal, conforme o interesse jurídico predominante, que cabe restaurar, em primeira mão de jurisdição, a legalidade e a moralidade, uma vez que, como soldado guardião da Constituição e das leis, tem a primeira sensação dos fatos, das provas e do povo.

Agora, numa tentativa de retirar essa competência do juiz de primeiro grau, daquele que está na linha de frente da jurisdição, pretende-se, por meio da PEC 358/2005, em tramitação no Parlamento, que somente os Tribunais Superiores e os de 2º Grau, que são os Tribunais de Justiça, no âmbito estadual, e os Tribunais Regionais Federais, no âmbito Federal, é que poderão processar e julgar os administradores surpreendidos em atos que configuram improbidade administrativa.

Os legisladores e os que comungam da tese da mudança por certo se baseiam no fato de que os tribunais, porque julgam em colegiado, sofrem menos pressão de natureza política ou outras espécies espúrias de influência. Ora, a integridade moral do homem que julga como juiz deve ser pressuposto da jurisdição tanto na primeira instância quanto nos tribunais. Não se pode defender a idéia de que a competência deve ser retirada do juiz de primeiro grau porque está mais sujeito a pressões. O juiz, todo juiz, deve ter retidão moral para suportar as pressões, evitar as más influências e afastar a parcialidade.

O que está em jogo, em resumo, é saber quem pode prestar a jurisdição com mais eficiência. Parece que o juiz de primeiro grau, aquele que inaugura o processo contencioso, tem mais condições de viabilizar o melhor resultado. É quem, no coração dos fatos, colhe as provas e instrui o processo. Os tribunais, diversamente, estão mais distantes dos fatos e não têm tradição para a instrução probatória nem estão devidamente aparelhados para exercer tal mister. Devem, isto sim, exercer a jurisdição em grau de recurso, após o debate vivo da causa e manuseio exaustivo das provas.

O projeto de emenda à Constituição sufocará ainda mais as Cortes de Justiça e representará um golpe mortal na jurisdição de primeiro grau, a primeira guardiã da Constituição e da cidadania.

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Jean Marcos Ferreira, Juiz Federal da 6ª Vara C. Grande/MS.

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