O princípio bagatelar próprio e impróprio – conceito, classificação e aplicação

Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira

Promotor de Justiça/Promotor Eleitoral – MG
Professor de Direito Processual Penal 1 da FADOM(graduação) – Divinópolis/MG
Professor de Direito Eleitoral da FADOM(pós-graduação) – Divinópolis/MG
Professor de Pós-graduação(Direito Eleitoral) da Fundação Escola Superior do Ministério Público-Belo Horizonte
Professor/ Conferencista do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público-Belo Horizonte
Professor de Direito Eleitoral, Prática Forense, Estatuto da Criança e do Adolescente e Processo Penal do Curso Satelitário- Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF) – São Paulo/SP
Autor do livro Direito Eleitoral Brasileiro, 2ª edição, Del Rey, 2002
Autor do livro – Manual de Prática Forense, 1ª edição(no prelo), RT, SP, 2004
Autor do livro – Manual de Direito Penal Eleitoral & Processo Penal Eleitoral, 1ª edição, JUSPODIVM, Salvador/BA, 2004

Recentemente, uma discussão acadêmica foi travada no notável e culto Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo o conceito do princípio da bagatela.
O Ministério Público, inconformado com o Acórdão do TJ/RS, que reconheceu o princípio da insignificância penal, interpôs embargos declaratórios (70007545148, comarca de Rosário do Sul/RS), para fixar o conceito e previsão legal do mencionado princípio do jurista alemão Claus Roxin.
Infelizmente, o culto Desembargador relator, foi, data venia, deselegante com o Ministério Público, talvez num dia infeliz, já que o mesmo é conhecido por sua cultura e educação.
Na verdade, o princípio da bagatela, ainda hoje, desperta uma série de dúvidas, inclusive seu conceito, sua classificação e um limite quantitativo, leia-se, um teto, para sua efetiva aplicação, o que justifica, por si só, os embargos declaratórios dos colegas do parquet gaúcho, por força do artigo 5º, XXXV da CF/88(princípio da inafastabilidade da jurisdição).
Particularmente, tão logo ingressei na carreira do Ministério Público, entendia que o princípio da bagatela ou insignificância penal estava acampado pela Lei 9.099/95.
Porém, percebendo que havia um campo cinzento da Lei dos Juizados, onde não seria aplicável referido princípio, a uma camada miserável e abandonada; percebendo que leis casuísticas eram criadas para dar “tratamento vitalício” a uma elite que comete crimes(Lei 10.628/03) e considerando que na prática processual existe uma forte desigualdade jurídica entre réus, ditada pelo poder econômico, me convenci da aplicação do princípio da insignificância, independentemente das benesses criadas pela Lei 9.099/95 c/c 10259/01.
Penso assim, até que o Direito Penal seja, um dia, verdadeiramente eficaz, funcional e não um instrumento da elite(classe dominante, inclusive presente no processo legislativo) contra a classe dominada, desamparada juridicamente, com fome, miserável na cultura e acesso à educação e que a cada dia se agiganta no seio social.

Tenho certeza que muitos de meus colegas de parquet, ao ler esse artigo, lançarão as severas críticas dos puros de pecados, taxando de Direito Penal Mínimo a sustentação da tese, de aderir ao ilegal e assim por diante. Mas apesar disto, não peço a concordância jurídica e sim, tão somente, a leitura e reflexão do tema.

Atualmente, sou adepto do Direito Penal Moderado, assim posso definir aquele que, conforme Aristóteles afirmara, utiliza-se do meio:

“O ideal é o meio, não o laxismo exagerado que corrompe a moral da sociedade e nem o rigorismo exacerbado, que limita arbitrariamente os direitos individuais”

O Direito Penal moderado, assim o defino, como uma Escola Penal do meio-termo entre o Direito Penal Máximo e Mínimo, utilizando alguns de seus melhores institutos.
Assim, defendo que, conforme Mateus sustentava, “é preciso separar o joio do trigo”, ou seja, em crimes graves é necessário um rigor maior(proibição de progressão de regime em crimes hediondos; proibição do artigo 44 no tráfico; punição mais severa para organizações criminosas etc), enquanto que nos crimes menores ou de “menor potencial ofensivo” é preciso ampliar ao máximo as benesses(institutos despenalizadores da Lei 9.099/95; imputação objetiva; tipicidade conglobante; bagatela ou insignificância; co-culpabilidade etc).
Somente através de um Direito Penal e Processual Penal funcional teremos a verdadeira Justiça, pois do contrário teremos o Judiciário lento, moroso e cheio de processos fomentados pela própria desordem jurídica(e desigualdade fomentada por Leis como a 10628/02) e causas sociais cujo reflexo político é a inércia de sempre(reforma agrária; educação, saúde, habitação, etc).

Neste contexto, podemos definir e classificar, no Brasil, o princípio da insignificância ou bagatela da seguinte ordem:

(1) PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, DA BAGATELA OU BAGATELAR PRÓPRIO: se aplica quando NÃO houver uma efetiva ofensa à objetividade jurídica do crime, assim considerado quando ausentes um dos requisitos alhures:

1.1 – relevância da ação(imputação objetiva da conduta): leia-se,
(a) O sujeito somente responde penalmente se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante;
(b) Não há imputação objetiva quando o risco criado é permitido(exemplo, teoria da confiança);
(c) O sujeito somente responde nos limites do risco criado;
(d) Não há imputação objetiva quando o risco é tolerado(ou aceito amplamente pela comunidade);
(e) Não há imputação objetiva quando o risco proibido criado é insignificante( a conduta em si é insignificante)

1.2 – resultado jurídico penalmente relevante.
(a) o resultado deve ser relevante;
(b) o resultado deve ser transcedental(afetar terceiras pessoas);
(c) O resultado jurídico não deve ser fomentado ou tolerado ou autorizado ou determinado pelo ordenamento jurídico

Neste aspecto do conceito(resultado jurídico penalmente relevante), aplica-se o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, ou seja, necessário analisar cada caso concreto e a repercussão econômica para cada vítima, porém, com um teto máximo: R$ 5.000,00(interpretação doutrinária e jurisprudencial nos crimes previdenciários, tido como bagatelares até esse valor).

Como relembra Osmar Veronese e Emanuel Lutz Pinto, em “princípio da insignificância dos delitos de contrabando e descaminho”, publicada no Juris Síntese nº 35 – MAI/JUN de 2002,
“O Tribunal Regional Federal da Quarta Região (RS, SC e PR), bem outros TRF’s vêm decidindo sobre a inexistência do crime de descaminho em casos em que a internação de mercadorias, sem o regular recolhimento dos tributos (IPI e II), não cause uma ilusão de impostos superior a determinado montante.

Na avaliação dessa quantia, os juízes nacionais têm-se amparado em normas extrapenais, tais como a Lei nº 9.469/97, que estabelece o valor mínimo da propositura de execução fiscal em R$ 1.000,00 (mil reais), na Medida Provisória nº 1.973/63, que expõe o valor que a Fazenda Nacional desconsidera para inscrever os débitos em dívida ativa em valores até R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), e na Portaria nº 4.910 do Ministério da Previdência, que prevê o não ajuizamento das suas execuções quando o valor da dívida não ultrapassar R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

No entendimento dos juízes e desembargadores federais, no caso do descaminho, não haverá interesse ou significância na seara penal se, na área civil, não houver interesse na cobrança dos impostos iludidos”.
Assim, podemos limitar o princípio da bagatela com o seguinte exemplo: se a vítima subtrai uma bicicleta no valor de R$ 200,00 de uma vítima assalariada, responde por crime, ao passo que se subtrair uma bicicleta de R$ 3.000,00 de um empresário, neste caso, aplica-se o princípio da bagatela, retirando a tipicidade material axiológica do delito, deixando, para seara cível, as medidas legais pertinentes à espécie como restituição, reparação de danos, indenização.

Porém, se o valor subtraído, ainda que de um empresário for superior a R$ 5.000,00, neste caso, não se aplica o princípio da bagatela, em face de superar o teto máximo admitido para um crime mais grave(delito previdenciário). Se não se pode aplicar o princípio da bagatela para o crime mais grave(crime previdenciário), não se pode aplicar para o menos grave(furto), quando supera um limite razoável ou proporcional.

1.3- relevância do resultado(imputação objetiva do resultado): leia-se, o nexo causal entre a conduta e o resultado(leia-se, o sujeito somente responde pelos riscos criados ou incrementados).
Em relação ao princípio bagatelar próprio, no famoso Acórdão do TJ/RS(anexo a este artigo), o Ministério Público sustenta que o critério é a efetiva ofensa objetividade jurídica, levando em conta a situação econômica da vítima.
Já o TJ/RS veementemente discordou, sustentando que o princípio da bagatela ou insignificância somente se aplica, quando amparado num tripé:

(a) o valor irrisório da coisa, ou coisas, atingidas;
(b) a irrelevância da ação do agente;
(c) a ausência de ambição de sua parte em atacar algo mais valioso ou que aparenta ser, leia-se, o desvalor da intenção.

Em relação aos dois primeiros fundamentos concordamos(irrelevância da conduta e do resultado). Porém, discordamos do critério do “desvalor da intenção” como elemento integrante do princípio bagatelar próprio.
Em síntese, sustenta o Acórdão:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO. REJEITADOS. A alegação dos representantes do Ministério Público que o colegiado foi omisso nos fundamentos jurídicos que possibilitaram a aplicação do princípio da insignificância, não tem procedência. O acórdão, citando doutrina e jurisprudência, está motivado. Afinal, sabe-se, ou deveriam sabê-lo, que a idéia de afastar o direito penal destes fatos irrelevantes é uma criação da doutrina que vem sendo acolhida pelos tribunais. Não existem dispositivos legais a respeito. Embargos rejeitados. Unânime. Embargos de Declaração n. 70007545148, TJRS, Oitava Câmara, Rel. Sylvio Baptista. ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos os autos, acordam os Desembargadores da Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em rejeitar os embargos, conforme os votos que seguem. Custas, na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Desembargadores Roque Miguel Fank, Presidente, e Marco Antônio Ribeiro de Oliveira. Porto Alegre, 19 de novembro de 2003.SYLVIO BAPTISTA; RELATOR. RELATÓRIO. S. SYLVIO BAPTISTA (RELATOR): . Os Procuradores de Justiça apresentaram embargos de declaração ao acórdão deste colegiado, dado na Apelação-crime nº 70006845879, alegando, em resumo, que “devem constar os fundamentos jurídicos que possibilitaram a aplicação do princípio da insignificância ante a condição econômica da vítima.” VOTOS: DES. SYLVIO BAPTISTA (RELATOR): (…) 3. No caso em exame (e somos obrigados a discutir a subtração de poucas abóboras, meus Deus), o acórdão, como se verá infra, analisou os fundamentos jurídicos aplicáveis à insignificância e concluiu por sua aplicação. Não houve nenhuma omissão, a não ser que os autores da petição de embargos, “porque não tem nada a fazer e o ócio cansa”, querem o impossível: dispositivos legais a respeito. Afinal, eles sabem, ou deveriam sabê-lo, que a idéia de afastar o direito penal destes fatos irrelevantes é uma criação da doutrina que vem sendo acolhida pelos tribunais. Não existem normas legais a respeito. Por outro lado, dizer, como está na petição, que “a fim de chegar-se a constatação acerca da existência ou não de tal ofensa, torna-se necessário observar as condições econômicas da vítima, as quais permitirão chegar a conclusão se o valor do objeto material em questão chegou a ofender o bem jurídico já citado”, estão falando uma arrematada besteira. E se o ladrão furtar cem mil reais de um grande banco, teremos um crime insignificante? De acordo com a opinião, sim. Em conclusão, a perda daquele valor mal arranhou o patrimônio da vítima. Ora, o que distingue uma ação considerada de bagatela ou insignificante, de outra penalmente relevante e que merece a persecução criminal, é a soma de três fatores: o valor irrisório da coisa, ou coisas, atingidas; a irrelevância da ação do agente; a ausência de ambição de sua parte em atacar algo mais valioso ou que aparenta ser. Na hipótese, e por isso considerado fato de bagatela, o apelante e o não apelante furtaram 21 abóboras, avaliadas em quinze reais, porque só queriam subtrair as frutas que, inclusive, foram recuperadas pela vítima”

Como sustenta o professor Luiz Flávio Gomes, Direito Penal, volume 2, RT, SP, 2004, no prelo:

“Não se pode incluir na conceituação, desvalor da intenção. Nesse ponto o julgado 70007545148, TJRS, Oitava Câmara, Rel. Sylvio Baptista não nos parece sustentável.
Afastar a tipicidade de uma conduta insignificante em razão do desvalor da da intenção é recuperar para dentro do Direito penal toda teoria subjetivista de ZIELINSKY, KAUFMANN etc. Isso nos parece exagerado.
O sujeito acaba sendo punido pelo que ele queria, não pelo que ele fez. Sem base legal autorizativa isso não é possível. Nesse ponto houve equívoco do julgado, segundo nosso juízo”

Realmente, o desvalor da intenção pune pelo que o agente queria e não pelo que fez, o que até vai de desencontro com a imputação objetiva, cujo Direito Penal, numa evolução do funcionalismo, deve ser voltado ao indivíduo, ao caso concreto, e não meras projeções ou intenções.

(2) PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, DA BAGATELA OU BAGATELAR IMPRÓPRIO (ou “IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO”): trata-se de modalidade penal nova, introduzida no Brasil pelo jurista Luiz Flávio Gomes, na obra Direito Penal, volume 2, RT, SP, 2004, no prelo, em avant-première neste artigo.
Referido princípio se aplica quando, apesar de haver ofensa real a bem jurídico tutelado, o que impede a aplicação do princípio da insignificância próprio, o fato passa a ser um irrelevante penal, em virtude do princípio da necessidade da pena(previsto no artigo 59 do CP, já que o mencionado artigo estabelece que o juiz aplicará a pena quando SUFICIENTE).
Exemplo: tentativa de roubo sem relevância, vislumbre-se, réu primário, jovem, sem uso de arma, apenas de ameaça, onde o agente ficou 6 meses preso provisoriamente, confessou e arrependeu.
O artigo 59 do CP resolve pelo princípio da necessidade da pena: haveria necessidade, proporcionalidade ou razoabilidade em condenar um jovem primário de 4 a 10 anos de reclusão, sendo que confessou, se arrependeu, ficou preso provisoriamente por 6 meses e apesar da ofensa real a objetividade jurídica, não há mais relevância penal do fato ? Ressalva-se que desejam incluir na Constituição Italiana tal princípio.
Este princípio serve exatamente para limitar a injusta intervenção do Estado na dignidade da pessoa humana, única forma viável de, no processo de conhecimento, prevenir o crime, impedindo que um jovem recuperável se transforme num meliante escolado e perigoso para a própria sociedade que o quer condenado.
Mas certamente essa novidade trará muito inconformismo, pois o novo e a prevenção, por vezes é confundida com impunidade ou intolerância.

Estas, em suma, são as novas linhas mestras penais que surpreenderão os incrédulos, os céticos, os conservadores e desprotegidos por um sistema legal desigual
Basta saber se um dia, ao menos, todos farão uma enorme reflexão a respeito, já que o conjunto destes fatores compõe a própria sobrevivência da sociedade.

Como diria Carnelutti, nas “Misérias do Processo Penal”,

“Não me iludo a respeito da eficácia de minhas palavras.
Porém, de acordo com o ensinamento do filósofo sensacional, que todos deveriam reconhecer no Cristo, ainda que o considerando apenas um homem, sei que as palavras são sementes.

E assim, sem presunção, mas por DEVOÇÃO, sigo semeando. Não espero que a colheita me remunere com cem, sessenta ou mesmo com trinta por um.
Ainda que um único grão germine, não haverei semeado em vão”.

ANEXO:
Na íntegra, o Acórdão-

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO. REJEITADOS. A alegação dos representantes do Ministério Público que o colegiado foi omisso nos fundamentos jurídicos que possibilitaram a aplicação do princípio da insignificância, não tem procedência. O acórdão, citando doutrina e jurisprudência, está motivado. Afinal, sabe-se, ou deveriam sabê-lo, que a idéia de afastar o direito penal destes fatos irrelevantes é uma criação da doutrina que vem sendo acolhida pelos tribunais. Não existem dispositivos legais a respeito. Embargos rejeitados. Unânime.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos, acordam os Desembargadores da Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em rejeitar os embargos, conforme os votos que seguem. Custas, na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Desembargadores Roque Miguel Fank, Presidente, e Marco Antônio Ribeiro de Oliveira.

Porto Alegre, 19 de novembro de 2003.

Sylvio Baptista
Relator

RELATÓRIO
Des. Sylvio Baptista (Relator):

1. Os Procuradores de Justiça apresentaram embargos de declaração ao acórdão deste colegiado, dado na Apelação-crime nº 70006845879, alegando, em resumo, que “devem constar os fundamentos jurídicos que possibilitaram a aplicação do princípio da insignificância ante a condição econômica da vítima.”
VOTOS
Des. Sylvio Baptista (Relator):

2. É possível, para a felicidade deles, que os membros do Ministério Público não tenham serviço suficiente e podem “brincar” de recorrer das decisões desta e de outras Câmaras, o que é bastante inconveniente para nós Desembargadores que, como é sabido, estamos com excesso de trabalho.

E se não conhecesse o Procurador de Justiça que primeiro assina o requerimento, sei que é uma pessoa séria e excelente profissional, diria os representantes do Parquet estão tão desocupados que, para fazer alguma coisa, “procuram chifre em cabeça de cavalo”. Ou gostam de piadas de mau gosto. É o que ocorre no caso em exame: “briga” por condenação de ladrões de abóboras.

O que é pior. Manifestações, como a presente, que tem o cunho exclusivo do recurso às Cortes Superiores, acabam por desmoralizar a instituição. Se houver publicidade destes embargos, ou de outros do gênero (eu pessoalmente já tive semelhantes), veremos estampado nos jornais de amanhã, abaixo de manchetes e reportagens sobre o aumento da violência no país, a notícia que o Ministério Público gaúcho está recorrendo aos Tribunais Superiores do furto de algumas abóboras que foram avaliadas em R$ 15,00. Como será a repercussão?

Assim, antes de adentrar na questão principal, permito-me uma sugestão, uma vez que parece faltar trabalho sério aos Procuradores de Justiça: façam uma força-tarefa e vão ajudar os colegas de primeiro grau na persecução criminal daqueles delitos realmente graves. Tenho observado, e não importa aqui os motivos, que esta Câmara, como as demais deste Tribunal, tem absolvido réus de delitos graves, mas que, aparentemente, são culpados. Isto porque a prova criminal não é feita ou muito mal feita ou, ainda, um mau trabalho da Acusação em termos de denúncia e (ou) alegações finais.

Parem com esta picuinha, ridícula e aborrecedora, de que todas as decisões devem ser iguais àquelas dos pareceres. Parem de entulhar esta Corte e as Superiores com pedidos realmente insignificantes: furtos ou outros delitos insignificantes, aumento de pena de dois ou três meses etc.

3. No caso em exame (e somos obrigados a discutir a subtração de poucas abóboras, meus Deus), o acórdão, como se verá infra, analisou os fundamentos jurídicos aplicáveis à insignificância e concluiu por sua aplicação.

Não houve nenhuma omissão, a não ser que os autores da petição de embargos, “porque não tem nada a fazer e o ócio cansa”, querem o impossível: dispositivos legais a respeito.

Afinal, eles sabem, ou deveriam sabê-lo, que a idéia de afastar o direito penal destes fatos irrelevantes é uma criação da doutrina que vem sendo acolhida pelos tribunais. Não existem normas legais a respeito.

Por outro lado, dizer, como está na petição, que “a fim de chegar-se a constatação acerca da existência ou não de tal ofensa, torna-se necessário observar as condições econômicas da vítima, as quais permitirão chegar a conclusão se o valor do objeto material em questão chegou a ofender o bem jurídico já citado”, estão falando uma arrematada besteira. E se o ladrão furtar cem mil reais de um grande banco, teremos um crime insignificante? De acordo com a opinião, sim. Em conclusão, a perda daquele valor mal arranhou o patrimônio da vítima.

Ora, o que distingue uma ação considerada de bagatela ou insignificante, de outra penalmente relevante e que merece a persecução criminal, é a soma de três fatores: o valor irrisório da coisa, ou coisas, atingidas; a irrelevância da ação do agente; a ausência de ambição de sua parte em atacar algo mais valioso ou que aparenta ser.

Na hipótese, e por isso considerado fato de bagatela, o apelante e o não apelante furtaram 21 abóboras, avaliadas em quinze reais, porque só queriam subtrair as frutas que, inclusive, foram recuperadas pela vítima.

4. Mas vamos ao acórdão, para mostrar que a decisão não foi omissão em nenhum ponto:
“Deixo de examinar a preliminar de nulidade, porque vou dar provimento ao apelo. Trata-se de ação de irrelevantíssima repercussão que não merecia tanto trabalho e custo do Estado, praticados pelos seus órgãos. O apelante e seu comparsa furtaram algumas abóboras que foram avaliadas em quinze reais. E, para completar, foi detidos e o bem devolvido à vítima.

A situação em tela se enquadra bem nas decisões dos Tribunais pátrios que já declararam: “…Revestindo-se a ação de ínfima gravidade, não lesionando nem ameaçando o bem jurídico de valor irrisório, de forma a justificar a necessidade de invocar proteção penal, cabível a aplicação do princípio da insignificância. Recurso improvido, pelo reconhecimento do crime de bagatela. (TJAP, Rel. Juiz Mello Castro…). Não deve o aparelho punitivo do Estado ocupar-se com lesões de pouca importância, insignificantes e sem adequação social. … Aplicação da teoria da insignificância. Precedentes da 3ª e 4ª Turmas… (TRF 1ª R., Rel. Juiz Olindo Menezes…). A tendência generalizada da política criminal moderna é reduzir ao máximo a área de incidência do Direito Penal. O fato penalmente insignificante deve ser excluído da tipicidade penal e receber tratamento adequado (como ilícito civil, administrativo, fiscal, etc.). O Estado só deve intervir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico.” (TRF 1ª R., Rel. Juiz Mário César Ribeiro…). (ementas extraídas do CD Juris Síntese, nº 28).

Ainda, como exemplos: “Furto. Pequeno valor da res, avaliada em pouco mais de dois por cento do salário mínimo. Irrelevância social do fato. Crime de Bagatela. Conduta atípica. Absolvição decretada. Apelo provido. Sentença reformada.” (Apelação 296030976, Rel. Des. Marco Antonio Ribeiro de Oliveira). “Princípio da Insignificância – Furto pequeno valor da coisa furtada – Atipicidade do fato ante a ausência da lesividade ou danosidade social – A lei penal jamais deve ser invocada para atuar em casos menores, de pouca ou escassa gravidade. E o princípio da insignificância surge justamente para evitar situações desta espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crime sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.” (TASP, Rel. Márcio Bártoli).

Eu mesmo já tive oportunidade de examinar hipóteses semelhantes à destes autos, decidindo: “Além dos argumentos do julgador de primeiro grau para absolver a apelada da prática de tentativa de furto, a sua absolvição também se impõe face à insignificância de sua ação delituosa. Trata-se de crime de bagatela, diante da irrelevância social daquele fato, até porque o estabelecimento vítima recuperou os objetos e seu prejuízo foi nenhum.” (Apelação 70005388939 etc.).
Finalmente, destaco lição de Luiz Luisi que escreve: “Claus Roxin, recorrendo à máxima romana minima non curat proetor, e ajustando-a a moderna concepção técnico-jurídica do crime, formulou, na década de 60, o princípio da insignificância (Das Gerinfügigkeits Prinzip). Através desse princípio, sustenta textualmente o ilustre penalista alemão, “permite-se na maioria dos tipos, excluir desde logo danos de pequena importância” (in Política Criminal e Sistema de Derecho Penal, Ed. Espanhola, 1972, p. 52). Este entendimento, ou seja, a insignificância da lesão ao bem jurídico tutelado como excludente da tipicidade, tem sido acolhido pela doutrina penal, e endossado em decisões dos tribunais de diversos países, inclusive entre nós. … O princípio da insignificância embasa-se na ausência de uma lesão (dano ou perigo) relevante do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.

Ou melhor: em ser tão inexpressiva a lesão ao bem jurídico, de forma a não constituir uma efetiva ofensa. E por carência de tal ofensa ao bem jurídico tutelado, não se caracteriza a tipicidade. E inexistindo esta, não há crime. … E permitimo-nos a ousadia, pois em um País onde se somam a muitos milhares de mandados de prisão não cumpridos, algumas centenas de delitos de bagatela e uma criminalização desvairada, não despiciendo é preconizar que na aplicação da lei penal se tenha presente a norma do art. 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1789, ou seja: as penas devem ser apenas as “estrita e evidentemente necessárias”.” (O Princípio da Insignificância e o Pretório Excelso, IBCCrim, fevereiro de 1998).
Responder ao processo criminal, para o tipo de delito cometido, furto de abóboras, já serviu de castigo ao recorrente, não precisando outra pena. Com inteligência e propriedade, ensina Weber Martins Batista: “O processo existe como garantia do acusado, para evitar que o mesmo seja condenado por crime que não cometeu, ou que seja punido por crime que cometeu, mais severamente do que merece. Ocorre que não é menor sua expressão como sofrimento imposto ao mesmo, seja ele culpado ou inocente. “Desgraçadamente – brada Carnelutti – o castigo não começa com a condenação, mas, muito antes, com o debate, a instrução, com os atos preliminares.
Não se pode castigar sem julgar, nem julgar sem castigar”.” (Juizado Especial Criminal, e Suspensão Condicional de Processo Penal, ed. Forense, 1996, pág. 381).
4. Assim, nos termos supra, dou provimento ao recurso e absolvo o apelante com fundamento no artigo 386, III, do Código de Processo Penal. E, na forma do artigo 580 do mesmo diploma legal, estendo a decisão ao não apelante Luciano, também o absolvendo.”

5. Assim, nos termos supra, rejeito os embargos.

Sylvio Baptista
Relator

Des. Roque Miguel Fank (Vogal):
Acompanho o Relator em seu voto.

Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira (Vogal):
Também acompanho o Relator.

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