O problema do “calendário especial” na tramitação das PECs

Autor: Victor Aguiar Jardim de Amorim (*)

 

Quase que diariamente são veiculadas notícias acerca da aprovação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados de “calendário especial” para votação de determinada proposta de emenda à Constituição. É o caso da recentíssima Emenda Constitucional 96, decorrente da chamada PEC da Vaquejada (PEC 50/2016).

Mas, afinal, do que se trata o famigerado “calendário especial”? Trata-se, basicamente, de um requerimento parlamentar aprovado em Plenário que afasta a necessidade de interstício mínimo entre um turno e outro de votação no procedimento de tramitação das propostas de emenda à Constituição.

De se notar que a Constituição Federal, no parágrafo 2º do artigo 60, apenas estabelece a necessidade de a PEC ser “discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. Ou seja, foi estabelecida expressamente a imprescindibilidade de discussão e votação em dois turnos, contudo, a Carta Magna não especificou de forma objetiva qual seria o lapso de tempo mínimo compreendidos entre os dois turnos, ficando a matéria sujeita aos regimentos internos das Casas Legislativas. No Senado Federal, o interstício previsto é de, no mínimo, cinco dias úteis (artigo 362 do RISF); e na Câmara dos Deputados, de cinco sessões (artigo 202, parágrafo 6º, do RICD).

Assim, o afastamento das disposições regimentais por parte das próprias Casas é visto com reservas e críticas por considerável gama de estudiosos do tema.

Contudo, o presente artigo, destoando de tal perspectiva, tem por objetivo fazer uma breve incursão teórica da natureza jurídica das normas regimentais e apresentar considerações acerca de seu caráter dinâmico e flexível diante da necessidade de adequações pontuais e oportunas ao fluxo do processo político de deliberação parlamentar.

Por desempenhar função de cunho essencial para a formação do Estado moderno, o Poder Legislativo sempre se ressentiu da necessidade de observância de determinado procedimento para o desenvolvimento direto ou indireto de atividades legiferantes.

O fenômeno se torna ainda mais latente a partir dos eventos de independência do Parlamento, quando são estabelecidas as bases para a institucionalização da função legislativa, considerando-o como centro do poder político. O marco histórico de tal transformação é a Revolução Gloriosa, ocorrida em 1689 na Inglaterra, quando o Legislativo evidencia-se como um poder praticamente soberano. Por possuir status de verdadeiro poder soberano, convencionou-se que competiria ao próprio Parlamento estabelecer os contornos e eventuais limites a respeito da autonomia parlamentar no que tange, principalmente, à liberdade do uso da palavra, ao funcionamento interno, à disciplina dos procedimentos e às regras de debate.

No curso do século XVIII, o Direito continental europeu é extremamente influenciado sobre as bases da “autonomia parlamentar” inglesa. Em França, na oportunidade dos debates iniciais da Assembleia Nacional Constituinte no ano de 1789, trava-se a discussão a respeito da necessidade de ação de um regulamento para assegurar o bom andamento dos trabalhos legislativos, tendo em vista a experiência das tumultuadas e improdutivas sessões anteriores. Dessa forma, em 29 de julho de 1789, é aprovado o regimento definitivo da Assembleia Constituinte, estabelecendo-se regras essenciais de funcionamento, notadamente os trâmites internos, a ordem dos debates e a concessão da palavra, em clara influência da prática parlamentar inglesa.

É exatamente na ausência de distinção do “direito parlamentar” em relação às normas gerais que desponta a diferenciação do processo de incorporação da experiência inglesa por parte dos alemães em relação ao que se passou em França em fins do século XVIII.

Foi precursora a doutrina alemã no que tange à investigação a respeito da natureza dos regimentos internos, sendo pioneiro nesse intento Paul Laband (1838-1918), segundo o qual, o regimento seria um “estatuto autônomo”, expressão de um direito estatutário similar ao produzido no âmbito das corporações, obrigando, assim, apenas os membros da respectiva Câmara.

A seu turno, inspirados na tradição inglesa, os juspublicistas alemães Rudolf von Gneist (1816-1895) e Julius Hatschek (1872-1926) propõem-se a assegurar a autonomia de ação do Parlamento, enaltecendo a autolegitimação do Poder Legislativo.

Na França, Maurice Hauriou (1856-1929), que também se notabilizou por distinguir o Estado da sociedade, ressaltou a natureza consuetudinária dos regimentos das Casas Legislativas, que não passam de simples acordos e práticas parlamentares, “cuyo cumplimento por parte de los integrantes de las Cámaras se reserva a estas últimas a través de sus proprios instrumentos, sin que puedan intervir al respecto los jueces, los cuales no serían competentes para conocer de ellos”.

Léon Duguit, na obra Manuel de Droit Constitutionnel, cuja primeira edição circulou em 1921, define o regimento como um conjunto de disposições que determinam, sistemicamente, a ordem e método de trabalho de cada Casa Legislativa, tratando-se, a seu ver, de uma espécie de “direito interno”.

De se notar que os juspublicistas alemães e franceses, até o início do século XX, admitiam a autolegitimação dos Parlamentos tendo por pressuposto separação entre Estado e sociedade, de modo que seria a Câmara um órgão da sociedade e os parlamentares membros livres e iguais de uma associação.

Objetivando romper com tal entendimento, Georg Jellinek (1851-1911), em sua obra System der subjektiven öffentlichen Rechte (1892), assevera que o Parlamento constitui-se como um órgão do Estado, de forma que o direito parlamentar possui natureza estatal, cuja inobservância ou descumprimento não representaria uma violação de um direito subjetivo, mas uma lesão ao ordenamento objetivo do Estado.

O fim da Segunda Guerra Mundial e o advento do Estado Democrático de Direito no continente europeu, caracterizado pela valorização e reconhecimento da Constituição como norma suprema do ordenamento jurídico (Estado Constitucional), parece por termo à corrente de pensamento, gestada sob o pálio do Estado Liberal, tendente a sustentar uma “técnica de liberdade do Parlamento”, atribuindo-lhe ares de soberania para fazer frente aos demais Poderes. Diante da emergência do Estado Constitucional, parece restar superada a ideia do regimento como fonte primária do direito parlamentar, porquanto, o eixo e o centro do ordenamento jurídico passa a ser ocupado, em caráter indubitável e absoluto, pela Constituição.

Destarte, dois aspectos de extrema importância reorientam as teorias a respeito da natureza dos regimentos, em especial àquelas orientadas pelos primados do Estado Liberal e a tradição do parlamentarismo inglês: a) as normas de direito parlamentar ostentam juridicidade, porquanto emanadas de um órgão pertencente ao Estado; b) a “constitucionalização” do direito parlamentar.

A partir do “paradigma” inaugurado com o Estado Constitucional, parte considerável dos juristas que se debruçaram sobre o assunto passam a defender a plena integração das normas regimentais ao ordenamento jurídico e, enquanto regras de Direito Positivo dotadas de previsão constitucional, a sua obrigatória observância por todos os seus destinatários, não apenas os internos (os parlamentares), mas todo e qualquer cidadão ou autoridade.

Diante da expansão da regulamentação pelo próprio texto constitucional dos aspectos procedimentos e da rotina de funcionamento dos Poderes, é mister buscar empreender uma análise quanto à tensão entre uma disciplina constitucional mais verticalizada a respeito da matéria legislativa e a dinamicidade política inerente à lógica da engrenagem parlamentar.

Trata-se, portanto, de tentativa de estabelecimento ou conformação das balizas atinentes à autonomia parlamentar no contexto do atual paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual está implícita a superação do ideal liberal de “soberania” de desígnios do Parlamento.

Na concepção do jurista italiano Andrea Manzella, a Constituição estabelece em seu conteúdo um quadro de atribuições e princípios procedimentais de natureza elementar, conferindo, assim, um espaço ao poder autonormativo do Poder Legislativo de colmatar a disciplina referente ao procedimento e funcionamento interno em atenção à dinâmica e vicissitudes do funcionamento parlamentar.

Leon Matinez Elipe sustenta que a crescente rigidez oriunda da regulação constitucional do direito parlamentar poderá ser resolvida a partir da própria “espontaneidade e dinamicidade” do Parlamento, porquanto a “dinamicidad del ordenamiento jurídico parlamentario que mitigará las rigideces derivadas de los textos escritos, acomodando sus normas a la realidad social del momento e, incluso, si fuera preciso, modificándolos o dejándolos obsoletos”.

O entendimento a respeito da rigidez constitucional em torno do direito parlamentar supostamente calcado na supremacia da Constituição conduz, de fato, à acentuada limitação do Poder Legislativo a respeito da autonomia para disciplinar internamente sobre as minúcias do procedimento de formação das leis, levando em conta os aspectos da dinamicidade inerente aos processos políticos.

Considerando a atual quadra de desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo em países que adotam textos constitucionais prolixos e analíticos — o que já implica em acentuada “constitucionalização do direito parlamentar” —, admitir a ampliação da materialidade constitucional das normas regimental é relegar a suposta autonomia do Parlamento ao campo da história.

É exatamente nesse ponto que reside a crítica à postura de conferir legitimidade ao Poder Judiciário para atribuir a “materialidade constitucional” à determinadas normas regimentais. De se notar que, nesse contexto, existe uma superposição de Poderes, e não uma relação harmônica ou de check and balances, afinal, ainda que haja consenso (o que envolve a minoria), a manifestação política estaria sendo substituída pela apreciação jurídica de um pequeno número de juízes.

Em consequência, se observa a plena juridicialização do processo legislativo, retirando do Parlamento, sob a alegação de estabelecimento da segurança jurídica e da criação de instrumentos de defesa da minoria, a possibilidade de disciplinar, em última instância, os espaços deliberativos de colmatação do procedimento legiferante conferido pela própria Constituição.

De fato, a dinamicidade inerente ao funcionamento do Parlamento deve ser compatibilizada com o paradigma do Estado Democrático de Direito, evitando-se a rigidez dos regimentos internos “constitucionalizados” no sentido de dificultar — por não dizer inviabilizar — as adequações pontuais e oportunas à conjuntura política que venham, inclusive, a implicar na alteração ou afastamento circunstancial de determinada norma regimental.

Há que se conferir a devida apreciação e qualificação à suposta “inobservância” pontual das normas regimentais, porquanto a condução procedimental propriamente dita está submetida aos mesmos pressupostos da materialidade da função legiferante: respeito aos limites estabelecidos na Constituição e a decisão majoritária como critério democrático por excelência. Não é dado atribuir à alteração circunstancial do regimento interno os mesmos efeitos de violação à Constituição e, também, ignorar a diferença entre uma minoria “vencida” e uma minoria “sufocada”.

A inobservância ou afastamento pontual de uma regra regimental (que não seja reprodução do texto constitucional), a partir de um consenso formado no seio da Casa Legislativa tendente a viabilizar a tramitação de determinado projeto de lei, não enseja, necessariamente, um desrespeito à Constituição.

Como exemplo que materializa tal hipótese — e, ainda, atende aos reclamos de “normatização” para garantia de “segurança jurídica” —, tem-se a previsão contida no artigo 412, III, do Regimento Interno do Senado Federal. Tal dispositivo, cuja redação foi estabelecida pela Resolução 35/2006, estabelece a possibilidade de prevalência de acordo de líderes sobre norma regimental desde que aprovado, mediante voto nominal, pela unanimidade dos senadores presentes na sessão, resguardado o quórum mínimo de três quintos dos votos dos membros da Casa.

De se destacar que o regimento interno do Senado Federal estabelece, normativamente, a possibilidade de afastamento circunstancial de norma regimental, positivando, assim, o papel do consenso e a própria dinamicidade do funcionamento do Parlamento.

Note-se que a aplicação do inciso III do artigo 412 exige o consenso, porquanto o eventual requerimento para afastamento de norma regimental deverá ser aprovado pela unanimidade dos parlamentares presentes na sessão, desde que presente, no mínimo, três quintos dos membros da Casa. O mencionado dispositivo é exatamente o fundamento do “calendário especial” na tramitação de PECs.

À guisa de conclusão, vale lançar mão de instigante observação atribuída ao jurista Nelson Azevedo Jobim, deputado na Constituinte de 1987-1988 e ex-ministro do STF: “Só existe Regimento Interno onde não existe consenso”. Logo, considerando o regimento como “ordenamento interno” e dinâmico por excelência, diante de eventual consenso no sentido de se afastar um regra regimental, não haveria propriamente ofensa à Constituição, mas um adequado exercício da autonomia parlamentar conduzido por fatores políticos que lhe são inerentes.

 

 

 

 

Autor: Victor Aguiar Jardim de Amorim  é advogado especialista em Direito Público, mestre em Direito Constitucional e professor de pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB).


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