O problema do fim do foro por prerrogativa é o guarda da esquina

Autor:  Doorgal Gustavo Borges de Andrada (*)

 

O Supremo Tribunal Federal começou a discutir uma nova interpretação para aplicação do instituto do foro por prerrogativa de função — o foro privilegiado —, de modo restritivo, sem os crimes comuns. Pelo novo modelo decorrente da prerrogativa de função — dos parlamentares, magistrados, membros do MP, ministros de Estado e governadores —, será relativizado.

Alguns pontos negativos que advirão dessa mudança precisam ser analisados. Primeiramente, é de se ressaltar que o “foro por hierarquia da função” existe por razões históricas, sociológicas, jurídicas e filosóficas, e não é uma invenção brasileira, mas fruto de uma evolução jurídica ao longo de séculos na Europa, onde, aliás, todos os 28 países praticam o foro especial de forma ampla, como de resto todos os países da América do Sul. Ainda agora, o Ministério Público francês está a solicitar do Parlamento europeu, sediado em Estrasburgo, autorização para poder processar criminalmente a conhecida deputada Marine Le Pen. Além do foro especial, o parlamentar na Europa tem imunidade parlamentar.

Alguns argumentam que a nossa suprema corte não possui estrutura material e já conta com quase 500 processos criminais em tramitação. Em média, então, cada ministro tem cerca de 45 processos criminais em decorrência do foro por prerrogativa. Ocorre que, com a restrição de foro, os processos de crimes comuns cometidos pelas autoridades irão para a 1ª instância, onde as varas criminais têm mais de 4 mil processos em andamento, e cabem inúmeros recursos. Certamente, a morosidade será muito maior que no STF. Logo, a alegação de que a alta corte está assoberbada não é um argumento viável, pois a maioria dos juízes de 1º grau e dos tribunais de 2º grau convive com fantástico acúmulo de trabalho. Quantos são os juízes de Direito que desejam, como o STF, diminuir o serviço e o número de processos sobre suas mesas? Devem ser milhares…

Cabe esclarecer que o juízo federal de Curitiba, que julga a “lava jato”, foi obrigado a paralisar todo o seu trabalho para ficar por conta daquele. Além disso, precisou receber vários juízes-cooperadores, uma equipe exclusiva de membros do MP e inúmeros policiais federais a sua disposição. Está demonstrado que o juiz de 1º grau normal, comum, não possui estrutura para enfrentar processos tão complexos, como possuem os tribunais.

Ora, soa como incoerência alegar que o forte e poderoso STF não tem condições físicas e materiais para processar as altas autoridades da República, imaginar que os juízes de 1º grau, muitos sem assessores, sem servidores em número adequado, sem equipamentos, sem espaço físico necessário para trabalhar estão mais aptos… A impunidade pela prescrição aumentará muito.

Quanto à alegação de que “todos somos iguais perante a lei” e todos precisamos ser julgados na 1ª instância, parece uma argumentação inconsistente e de pouco saber jurídico. Todos somos, sempre, julgados igualmente pela mesma lei, pois todos respondemos igualmente pelos crimes previstos no Código Penal, pela mesma lei do Direito de Família, as mesmas regras do direito de propriedade, a mesma lei do direito de sucessão, a mesma CLT etc., seja o processo iniciado nos tribunais de Justiça, seja no foro da Justiça Federal, ou mesmo no STF. Altera-se apenas, e eventualmente, o local de tramitação, o foro — a competência —, mas a Justiça é unitária, e a lei, igual para todos. A igualdade perante a lei é garantida também por vários tipos de ritos processuais e a ampla defesa.

A prevalecer o entendimento equivocado de que há falta de igualdade, então, talvez, até teríamos que extinguir, por exemplo, toda a Justiça Federal: ora, por que o homicídio cometido por servidor público federal pode ser julgado no Tribunal do Júri na Justiça Federal e não no Tribunal do Júri da Justiça estadual comum? Seria isso um privilégio especial e uma falta de igualdade perante a lei? Evidente que não. Do contrário, a própria competência originária do STF não poderia existir, afinal, tudo e todos teriam que ser julgados sempre e apenas pelo juiz de Direito de 1º grau da Justiça comum.

Essa novel alteração de restrição ao foro por prerrogativa de função — cuja regra hierárquica é praticada em todos os países da Europa ocidental e os sul-americanos — nos levará a fatos curiosos. Poderão os ministros de tribunais ser denunciados pelo promotor de Justiça da comarca de qualquer cidade, e citado para lá ser interrogado. Caso seja condenado pelo juiz a uma pena maior que dois anos de prisão ou detenção (regime aberto), perderá o cargo de ministro, seja do STF, STJ, TST, STM ou TSE, e assim também todos os desembargadores, membros do MP estadual ou federal, o PGR, deputados, senadores, governadores etc.

Cidadãos que se julgarem ofendidos ou difamados por um discurso ou entrevista concedida por um governador, senador, ministro do STJ ou do STF, procurador da República etc. poderão processá-lo em diversas cidades ao mesmo tempo, através de oferecimento de queixas-crime e/ou abertura de inquéritos policiais.

Juízes de Direito irão julgar os promotores de Justiça que atuam na mesma comarca e até julgar eventuais crimes dos procuradores da República. Também os promotores de Justiça terão poder para denunciar os juízes da comarca, os desembargadores, ministros de Estado e os membros do STF, TST e STJ. O delegado de polícia da comarca poderá requerer a prisão do juiz ou do promotor com quem trabalha. Tudo bem próprio de uma anarquia hierárquica.

No interior do país, um policial que tenha antipatia por um juiz, desembargador ou ministro, ou que seja desafeto político-ideológico de deputado, governador ou senador, poderá encontrar razões para dar voz de prisão em flagrante delito inúmeras vezes àquelas pessoas, legalmente.

Com a restrição do foro por prerrogativa, veremos que “o problema é o guarda da esquina”. Foi com essa frase histórica que o ilustre e renomado ex-vice-presidente da República Pedro Aleixo respondeu ao então presidente da República, Marechal Costa e Silva, quando este tentava esclarecer que o AI-5 que se implantava (suspendia direitos fundamentais e permitia prisão sem motivação) não seria perigoso, pois a Presidência da República jamais o utilizaria de forma corriqueira. Na verdade, o então vice-presidente — grande jurista — alertava que o problema era a vida cotidiana, o dia a dia nas cidades. Aquela clássica resposta, então, voltará agora a ter validade se tivermos a limitação do foro por hierarquia de função.

O foro por prerrogativa de função constitucionalmente faz parte da divisão dos Poderes da República, dos “freios e contrapesos” democráticos. Exemplificando: se é o chefe do Executivo federal que propõe e ordena o orçamento dos Três Poderes; se são os membros do Legislativo federal que aprovam e delimitam o orçamento que valerá para os Três Poderes; então, por conseguinte, os membros de ambos os poderes (Executivo e Legislativo) devem ser controlados e julgados pelos membros do órgão máximo do Judiciário nacional. Juridicamente, não é dado ao colendo STF o direito de não exercer sua função maior, por mais difícil e impopular que seja.

Então, ao criarmos esse modelo de “foro jurídico abrasileirado” (foro privilegiado restrito) a ofender toda a história universal da evolução do Direito Constitucional nos países que adotam a civil law, iremos possibilitar que qualquer juiz de 1º grau possa legalmente decretar a prisão temporária ou preventiva dos ministros do STF, STJ, STM, TST, TRF e TRT, desembargadores, senadores e dos governadores.

Por analogia, essa interpretação de inversão de hierarquia poderá contaminar e se estender à administração pública — Direito Administrativo —, e surgirão grandes novidades: o funcionário de uma modesta repartição pública poderá abrir um processo administrativo para aplicar pena ao seu superior; o agente de Polícia Civil poderá presidir procedimento administrativo e punir com pena de suspensão o chefe de polícia; o tenente da PM (ou do Exército) terá direito a abrir um inquérito militar e/ou aplicar punição a um major ou general.

Nessa hora grave, em que a população brasileira quer “passar o país a limpo”, não seria desejável que o STF abandone o ônus/incômodo de julgar plenamente — absolver ou condenar — os homens poderosos da República. O Direito é a luta pela implantação da paz social, de uma sociedade justa, feliz, organizada, igualitária, com progresso, porém, jamais deve ser confundido ou ceder ao anarquismo administrativo, à busca do populismo jurídico, à submissão dos magistrados aos desejos da mídia, à audiência fácil nas transmissões pelas TVs, ao aumento da impunidade por “vias tortas”, à prevalência da “inquisição midiática” sobre o justo.

Pergunta-se: o juiz de uma vara judicial única e o promotor de Justiça, numa cidade carente e pobre, numa remota e isolada comarca — por exemplo, quase incomunicável —, do interior dos grandes estados do Centro-Oeste, do Nordeste ou da Amazônia, que, inseguro, convive com elevado índice de mortes por “encomenda” e tristes cenas de “matadores de aluguel” etc., terá melhores recursos materiais, maior força político-institucional, maior presença da Polícia Federal ou estadual, sofrerá menor pressão… do que os membros do STF para julgar um governador do Estado, um ministro de Estado, um senador da República ou um empresário milionário que supostamente mandou invadir e furtar centenas de cabeças de gado com apoio de maus políticos locais? Será essa mudança a melhor para o país?

 

 

 

 

Autor:  Doorgal Gustavo Borges de Andrada   é desembargador do TJ-MG. Foi juiz de Direito, promotor de Justiça, delegado de polícia e presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis).


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