O problema não está na proatividade dos tribunais de contas

Autor: Ismar Viana (*)

 

Algumas notícias e artigos publicados em sites jurídicos especializados têm trazido, nos últimos dias, conteúdo questionador da atuação dos tribunais de contas, em formato de crítica ao desempenho das atividades constitucionalmente outorgadas aos órgãos de controle, suscitando dúvida acerca da legitimidade de atuação desses órgãos, especificamente em relação ao controle preventivo, com ênfase na expedição de medidas cautelares que buscam proteger o erário, e rechaçando, por vezes, o reconhecimento da sua condição de indutores de políticas públicas, partícipes necessários do processo que abrange as fases de formulação, execução e controle dessas políticas, fases que são, por ilação lógica e dentro da rotina de conhecimento sobre gestão pública, interdependentes entre si.

Em recente texto publicado em O Globo, intitulado “O risco de ‘infantilizar’ a gestão pública”, Bruno Dantas, ministro do TCU, abordou, em linhas gerais, que órgãos de controle não são detentores de legitimidade democrática para formular políticas públicas. Arrazoou que é preciso resistir à tentação de substituir o gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo e que tem sido recorrente a prolatação de decisões bem-intencionadas causarem resultados desastrosos.

Em artigo publicado neste espaço, sob o título “Dilema entre controle de eficiência e de legalidade é falso”, Fabrício Motta, professor e procurador, defende que cabe ao Tribunal de Contas avaliar a eficiência da gestão pública e assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade, “mas não lhe cabe capturar o campo de atuação administrativa que o ordenamento atribuiu ao gestor público”.

João Doria, prefeito de São Paulo, afirmou, no jornal Folha de S.Paulo, que “Tribunal de Contas exagera em suas funções e prejudica SP”. Referindo-se especificamente ao TCM-SP, o gestor da maior capital do Brasil declarou que “o TCM deveria atuar na fiscalização das contas e da execução fiscal da prefeitura de São Paulo, e não em manifestações prévias”.

A funcionalidade do TCM-BA também foi alvo de questionamentos. O governador daquele estado, Rui Costa, sob a alegação de que recursos públicos despendidos com o controle das contas públicas poderiam ser transformados em investimento em educação, saúde e infraestrutura, mostrou-se favorável à extinção do TCM baiano. Foi também alicerçado em argumentos dessa natureza que o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará foi extinto, dando azo às discussões sobre a viabilidade de manutenção dos demais tribunais de contas dos municípios em funcionamento no Brasil.

Como se vê, a crítica à proatividade dos tribunais de contas tem como objeto, via de regra, o regular desempenho da missão preventiva de ocorrência de dano ao erário, materializada por meio da expedição de medidas cautelares, de indiscutível sedimentação no Supremo Tribunal Federal. Supostas interferências na função executiva, se e quando configuradas, constituem iniludível ofensa ao princípio da segregação das funções, carecendo, portanto, de força cogente, por não se revestirem de legitimidade, situação de fácil percepção pelas procuradorias dos órgãos e entes, além de passíveis de combate, seja no âmbito do próprio Tribunal de Contas, seja no âmbito do Poder Judiciário.

Não se pode confundir, contudo, insurgência aos instrumentos de controle com o exercício regular do controle, que constitui condição indispensável à manutenção da democracia. Da mesma forma, não se pode confundir controlador com controlado, assim como não se pode deixar de reconhecer, também, a inexistência de vínculo de subordinação hierárquica entre ambos.

Quanto às críticas ao controle de eficiência, faz-se oportuno esclarecer que a Constituição de 1988 avançou nesse sentido, não se limitando ao controle de legalidade, o que demanda dos órgãos de controle, por óbvio, a implementação de ações e o uso de instrumentos que possibilitem o irrestrito cumprimento do mandamento constitucional. É preciso deixar claro, sempre, que foi o legislador constituinte originário que assim quis, e não os agentes controladores, que são, tão somente, agentes controlados, cumpridores do pacto constitucional, assim como são os gestores da coisa pública.

No que tange à subjetividade do controle de eficiência, há, de fato, margem para tanto. Isso, entrementes, não oportuniza ao agente controlador margem de confusão entre discricionariedade e arbitrariedade, até porque isso pode vir a constituir abuso de autoridade, passível, portanto, de controle judicial, importando responsabilização do agente transgressor. Hodiernamente, não há espaço para intuições ou julgamentos lastreados no querer pessoal, na vontade do controlador, sob pena de se julgar mal.

Não se pode olvidar que, diferente do Poder Judiciário, cuja atuação se encontra condicionada à provocação, os tribunais de contas podem e devem agir de ofício. Ao não submeter os tribunais de contas ao princípio da inércia da jurisdição, o legislador constituinte originário quis que a proatividade das casas fiscalizadoras dos gastos públicos fosse a regra e, para cumprir tal mister, dotou os tribunais de contas de autonomia, não os subordinando hierarquicamente a nenhum dos Poderes da República, tudo para que a falta da independência técnico-funcional não constituísse óbice à regular e eficaz atuação desse importante órgão guardião dos bens e valores públicos.

Não por outra razão, esse delineamento constitucional da estrutura e do funcionamento dos tribunais de contas objetivou, em última análise, afastar quaisquer interferências no mérito de atuação das casas controladoras, garantindo ao controlado, consequente e reflexamente, o direito a uma atuação imparcial, livre da benevolência e da maleficência.

De forma diametralmente oposta à linha dos que alegam a antieconomicidade do controle exercido pelos tribunais de contas, o controle concomitante dos gastos públicos, feito por esses órgãos de estatura constitucional, materializado por meio das inspeções e auditorias realizadas pelos auditores de controle externo, para além do atingimento dos fins a que ordinariamente se propõe, tem possibilitado aos órgãos com legitimidade para propor ações de improbidade, às polícias investigativas e ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, agirem efetivamente, buscando elementos de informação e de prova necessários ao ajuizamento das ações cabíveis e garantindo, por via de consequência, o resguardo do dinheiro público e a responsabilização daqueles que gerirem mal a coisa pública.

Essa proatividade dos tribunais de contas colocou para trás aquele velho modus operandi de fiscalizar os gastos públicos anos depois de exaurida a produção dos efeitos dos atos, num verdadeiro e ineficiente exercício de autópsia. A escassez de recursos, associada à má aplicação deles, motivou o controlador a se adequar à conjuntura atual, priorizando o controle concomitante, que constitui um eficiente exercício de biópsia. É justamente esse agir tempestivo que tem a força de evitar que o dano ocorra, além, é claro, de instrumentalizar os organismos policiais e o Ministério Público na missão de punir, exemplarmente e sob o manto do devido processo legal, todo aquele que comete crimes contra a administração pública.

Mas não é só. Há de observar, ainda, que, com o advento da Lei 12.846/2013, comumente intitulada Lei Anticorrupção, a atuação dos tribunais de contas ganhou ainda mais relevo. É que a predita lei define os atos lesivos à administração, trazendo, especialmente, ilicitudes na seara de licitações e contratos, matérias inequivocamente sujeitas à apreciação dos auditores de controle externo, no regular exercício das inspeções e auditorias, levando o Ministério Público junto aos tribunais de contas ao imprescindível exercício da função ministerial, de conformação legal, e aos conselheiros e ministros, titulares e substitutos, ao exercício da função de julgar. Esse é o caminho que deve ser inevitavelmente trilhado.

É bem verdade que, nos últimos anos, houve um alargamento dos reflexos da atuação dos tribunais de contas, que, ao fim e ao cabo, pode atingir direitos subjetivos de gestores públicos, na seara eleitoral, administrativa, cível e criminal, razão por que se afirmar que a atuação imparcial, no âmbito do controle externo, além de constituir um dever dos agentes de controle, a quem interessa proteção jurídica à sua situação funcional, é um direito daqueles que mantêm algum vínculo legal ou contratual com a administração pública, que devem ser tratados como sujeitos de direitos, e não como meros objetos processuais. Em última análise, a imparcialidade é, ainda, um direito da sociedade, a quem interessa o bom combate à corrupção.

Nesse sentido, parece-nos que o problema não reside na proatividade dos tribunais de contas, que têm por razão de existência a missão de controlar a administração pública, inclusive preventivamente, mas na necessidade de reconhecimento, por parte de quem se coloca à disposição para gerir a coisa pública, da indissociabilidade entre controle e Estado Democrático de Direito. Reside, também, na necessidade de reconhecimento, por parte dos agentes controladores, de que a Constituição Federal, sob a égide da qual os mandamentos infraconstitucionais são praticados e sob o manto da qual são editados, constitui limitador de atuação e legitimador das ações de controle. Pensar diferente desse balizamento é subverter a ordem que ampara a atuação dos órgãos de controle, é contribuir para a ampliação da margem de desacreditação social nesses órgãos.

 

 

 

Autor: Ismar Viana é auditor de controle externo, advogado, professor e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

 


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