Autor: Maíza Costa de A. Alves e Maira Costa de A. Alves (*)
1. Introdução
Após o julgamento do RE 718.874/RS pelo Plenário do STF, que decidiu pela constitucionalidade da contribuição previdenciária incidente sobre a receita bruta da comercialização da produção rural (Funrural), a partir da vigência da Lei 10.256/2001, o setor ruralista perdeu uma importante batalha na discussão que se arrastava por anos no Poder Judiciário.
Os produtores rurais, que se preparavam para uma vitória no STF ante aos precedentes exarados pelo STF nos RE 363.852 (2010) e 596.177 (2011) e ante a Resolução do Senado Federal 15/2017, se depararam com a declaração de constitucionalidade do Funrural na vigência do prazo para a habilitação no Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) instituído pela Lei 13.496/2017. Como parte do plano de recuperação da economia, paralelamente, o governo federal já sinalizava oportunidades ainda melhores que as oferecidas no Pert para que o setor ruralista pudesse regularizar os débitos de contribuição previdenciária com a União Federal através da Medida Provisória 793/2017.
O Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), resultante da Medida Provisória 793/2017 convertida da Lei 13.606/2018, passou por vetos presidenciais e pela promulgação de partes vetadas em 18 de abril de 2018, ou seja, 12 dias antes do encerramento do prazo para a adesão do contribuinte.
Não bastasse a insegurança jurídica que assola o setor após o julgamento pelo STF do RE 718.874/RS, a Lei 13.606/2018 traz ainda questionamentos acerca das formas de quitação dos débitos após a recente promulgação das partes vetadas. Isso porque toda essa disputa entre Poder Legislativo e Poder Executivo resultou em um texto normativo omisso acerca de um importante item de interesse do setor ruralista e que atinge principalmente os produtores menos estruturados. Trata-se da previsão de utilização de prejuízo fiscal para pagamento da dívida no PRR que contemplou as pessoas físicas e jurídicas, muito embora o procedimento de utilização tenha sido expressamente detalhado na lei somente para pessoas jurídicas.
2. Desenvolvimento
2.1. A disciplina legal do prejuízo fiscal para produtores rurais na pessoa física
De acordo com o artigo 18 da Lei 9.250/1995, “o resultado positivo obtido na exploração da atividade rural pela pessoa física poderá ser compensado com prejuízos apurados em anos-calendário anteriores”, desde que a pessoa física mantenha a escrituração do livro-caixa e mantenha os documentos que comprovem o prejuízo apurado em anos-calendário anteriores. Dessa forma, não restam dúvidas de que o produtor rural pessoa física também goza do direito de aproveitar o prejuízo fiscal tal como ocorre com as pessoas jurídicas optantes pelo lucro real no Brasil.
A tributação da atividade rural na pessoa física é uma prerrogativa dos produtores rurais no país, já que a exploração, além de simplificada em termos burocráticos, é também desonerada em função dos tributos incidentes sobre a renda. Ao oferecer a tributação da atividade através da pessoa física, o produtor está sujeito à alíquota máxima de 27,5% de Imposto de Renda, sem, contudo, realizar recolhimentos de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). A tributação do lucro da atividade rural pela pessoa física é concentrada no Imposto de Renda e tal fato representa uma economia de aproximadamente 6,5% ao ano se comparados aos 34% aproximadamente pagos pelas pessoas jurídicas optantes pelo lucro real que exercem a mesma atividade.
2.2. As disposições do PRR
O artigo 2º da Lei 13.606/2018 prevê as condições iniciais para adesão ao PRR e elenca os contribuintes que detêm a capacidade jurídica para formalizar adesão:
Art. 2º O produtor rural pessoa física e o produtor rural pessoa jurídicaque aderir ao PRR poderão liquidar os débitos de que trata o art. 1º desta Lei da seguinte forma:
I – pelo pagamento de, no mínimo, 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) do valor da dívida consolidada, sem as reduções de que trata o inciso II do caput deste artigo, em até duas parcelas iguais, mensais e sucessivas; e
II – pelo pagamento do restante da dívida consolidada, por meio de parcelamento em até cento e setenta e seis prestações mensais e sucessivas, vencíveis a partir do mês seguinte ao vencimento da segunda parcela prevista no inciso I do caput deste artigo, equivalentes a 0,8% (oito décimos por cento) da média mensal da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção rural do ano civil imediatamente anterior ao do vencimento da parcela, com as seguintes reduções:
a) 100% (cem por cento) das multas de mora e de ofício e dos encargos legais, incluídos os honorários advocatícios; e (Promulgação)
b) 100% (cem por cento) dos juros de mora.
A partir do caput do artigo 2º, fica claro que o PRR é extensivo a todos os produtores rurais, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, desde que sejam sujeitos passivos dos tributos previstos no artigo 25 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, e no artigo 25 da Lei 8.870, de 15 de abril de 1994. Mais adiante, o artigo 8º da lei, em texto recém-promulgado prescreve:
Art. 8º No âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, o sujeito passivo, na condição de contribuinte ou sub-rogado, que aderir ao PRR, poderá liquidar o saldo consolidado de que trata o inciso II do caput do art. 2º e o inciso II do caput do art. 3º desta Lei com a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), liquidando-se o saldo remanescente com parcelamento em até cento e setenta e seis meses (promulgação).
Até esse ponto no texto da lei, resta garantido o direito à utilização de prejuízos fiscais na liquidação de créditos no PRR tanto pelas pessoas físicas quanto pelas pessoas jurídicas, eis que são todas capazes de requerer habilitação no programa e são sujeitos passivos das contribuições previdenciárias referidas. A questão começa a se tornar omissa e obscura ao contribuinte a partir do parágrafo 4º do artigo 8º, que é omisso em relação à alíquota do Imposto de Renda aplicável às pessoas físicas para a determinação do crédito compensável:
§ 4º O valor do crédito decorrente de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL será determinado por meio da aplicação das seguintes alíquotas:
I – 25% (vinte e cinco por cento) sobre o montante do prejuízo fiscal;
II – 20% (vinte por cento) sobre a base de cálculo negativa da CSLL, no caso das pessoas jurídicas de seguros privados, das pessoas jurídicas de capitalização e das pessoas jurídicas referidas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VII e X do § 1o do art. 1o da Lei Complementar no 105, de 10 de janeiro de 2001;
III – 17% (dezessete por cento) sobre a base de cálculo negativa da CSLL, no caso das pessoas jurídicas referidas no inciso IX do § 1o do art. 1o da Lei Complementar no 105, de 10 de janeiro de 2001; e
IV – 9% (nove por cento) sobre a base de cálculo negativa da CSLL, no caso das demais pessoas jurídicas.
Diante do mais recente texto da lei, as pessoas físicas que apuraram prejuízo fiscal nos anos anteriores estão em dúvida sobre o montante que podem utilizar em créditos para a liquidação dos débitos no PRR em função do parágrafo 4º. Nem todos os produtores rurais estão sujeitos à mesma alíquota de Imposto de Renda na Pessoa Física, e a maioria dos que pagam a alíquota de 27,5% está sendo privada da utilização da integralidade do crédito tributário a que tem direito.
Não bastasse a omissão legal acerca do procedimento que as pessoas físicas devem observar na utilização de prejuízos fiscais para liquidação de seus débitos no PRR, a Receita Federal agravou a situação com a edição da Instrução Normativa 1.804, de 25 de abril de 2018 (DOU 26/4/2018). No artigo 4-A da IN, a Receita Federal limita o direito do contribuinte e prevê hipótese de compensação de prejuízos fiscais no PRR apenas para pessoas jurídicas. Tal restrição é ilegal, eis que, nas prescrições da Lei 13.606/2018, a utilização de prejuízos fiscais pela pessoa física é autorizada no caput do artigo 8º.
Essa questão deve ser resolvida pelo Poder Executivo, ainda que o presidente da República seja contra a utilização dos créditos para utilização no PRR, conforme explicitou em veto presidencial ao artigo 8º da lei. É uma questão de igualdade tributária, uma vez que os produtores rurais estabelecidos como pessoas jurídicas, nos termos do artigo 8º, parágrafo 4º, poderão utilizar a integralidade dos créditos decorrentes de prejuízos fiscais e base de cálculo negativa da CSLL. Com as lições do professor Paulo de Barros Carvalho, salientamos:
A isonomia de que desfrutam os sujeitos passivos das obrigações tributárias, além disso, é uma estimativa da mais elevada relevância, pois de sua concreta efetividade, em cada situação empírica, dependem dois sobrevalores, quais sejam, o da segurança das relações jurídico-tributárias e o da “justiça da tributação”. Percebe-se, claramente, que sem igualdade na distribuição das cargas tributárias não atingiremos os níveis adequados se segurança, impedindo a realização suprema da justiça na implantação dos tributos. (in Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008. 2ª ed.)
Com efeito, os sobrevalores da Justiça e da segurança estão ameaçados na medida em que o produtor rural pessoa física não pode ser lesado em 2,5% do montante do crédito a que tem direito, assim como aqueles que pagaram alíquota inferior a 25% não podem considerar crédito tributário em valor superior ao que pagaram a título de Imposto de Renda. Diante desses exemplos práticos, a omissão legislativa é evidente e deve ser reparada.
3. Conclusão
Não obstante o Funrural tenha sido um tema bastante debatido na comunidade acadêmica e no setor ruralista no ano de 2017, os débitos constituídos até então passaram a representar uma ameaça concreta à saúde financeira dos produtores rurais no Brasil. O PRR, instituído pela Lei 13.606/2018, foi estabelecido para proteger o setor e promover a regularização tributária dos produtores rurais após o último julgamento do STF.
Uma vez instituído o programa, as diversas batalhas entre Poder Executivo e Poder Legislativo sobre o texto da lei e a extensão dos benefícios concedidos aos contribuintes trouxeram insegurança jurídica no que diz respeito à utilização de prejuízos fiscais pelos produtores rurais pessoas físicas. A omissão sobre as alíquotas aplicáveis na determinação do crédito decorrente de prejuízo fiscal das pessoas físicas é um exemplo de insegurança que deve ser combatida.
Em função do princípio da igualdade tributária e dos mais relevantes valores jurídicos da Justiça e da segurança, a omissão legislativa apontada deve ser sanada em tempo hábil para que os contribuintes possam se habilitar no PRR conscientes dos montantes que serão devidos após a consolidação dos pagamentos e dos parcelamentos.
Autores: Maíza Costa de A. Alves é sócia da área tributária do Lott, Oliveira Braga Advogados Associados e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.
Maira Costa de A. Alves é sócia da área tributária do Lott, Oliveira Braga Advogados Associados e L.L.M em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Maastricht (Holanda).