O sentido da crise do ensino jurídico: uma leitura

Reinéro Antonio Lérias

Quando me solicitaram para que escrevesse sobre o ensino jurídico no Brasil, a primeira palavra que me veio à mente foi crise; ou seja, pareceu, pelo menos para mim, que falar sobre o ensino jurídico no Brasil era o mesmo que falar em crise.
Contudo, se refletirmos um pouco, isso não seria um reflexo inconsciente da própria dimensão que a palavra crise assumiu? Em outras palavras, o que é que não se encontra em crise, nos dias que correm? A educação? A família? O Estado? A economia? A ordem? Os valores? A justiça? A sociedade? E por ai vai numa seqüência `ad infinitum´. Parece que nada consegue passar incólume diante desta palavra. Conseqüentemente, me apercebi que para discorrer sobre o ensino jurídico no Brasil primeiramente deveria me ater sobre o sentido etimológico da palavra; seu desenrolar no tempo e sua influência nos demais campos do conhecimento, além, obviamente, daquele que é a razão de ser destas linhas.
O termo crise é oriundo do grego krisis, que quer dizer em sua origem: a ação de escolher, decidir, julgar, discernir, distinguir; portanto, com um sentido totalmente diferente daquele que hoje conhecemos. Foi no século V a. C, com o médico Hipócrates de Cós (460 – 377 a. C), que a palavra passou a ter o significado que conhecemos hoje, ou seja, o ponto culminante de uma doença que caminha para um desfecho, favorável ou não: a cura ou a morte.
Esta digressão etimológica se faz necessária, a nosso ver, porquanto, no mais das vezes, mesmo antes de compreender aquilo a que nos referimos sempre, ou quase sempre, o fazemos num sentido pessimista; haja vista os exemplos dados acima no que tange à expressão: “o que é que não se encontra em crise”?
É curioso, no mínimo, perceber que esse tipo de comportamento, quando nos referimos ao termo crise, não é uma reação apenas nossa, ou produto cultural peculiar à sociedade brasileira; mas sim, é uma reação humana diante daquilo que se considera anormal, sobretudo de algo que está próximo. Em uma palavra, é uma reação dos homens diante do novo; daí a palavra misoneista, aversão às mudanças. Dificilmente podemos ter consciência do que está ocorrendo aqui, agora, do quando é; o que geralmente acontece é que nos apercebemos do ocorrido quando ele já é passado. Tomamos consciência disso quando da perda da liberdade, da juventude, da saúde, da vontade, da alegria, do amor etc. O presente é tão ou mais fugaz que a velocidade de um míssil de última geração; pois ele não desafia apenas as barreiras da velocidade do tempo, do som ou da luz; mas, sobretudo, desafia aquelas que configuram a existência de nossa espécie.
Os gregos já asseveravam que o presente é a idade do ferro, enquanto o passado representa a idade de ouro. Nós incorporamos, infelizmente, esta idéia milenar. Quem já não ouviu frases como estas: antigamente as coisas eram diferentes; os valores eram outros; os jovens respeitavam os mais velhos etc. Diferentes em quê? Os valores podem mudar ou permanecer inalterados? Será que os jovens respeitavam mesmo os mais velhos? Ou tinham medo? Se a resposta for afirmativa, então porquê os primeiros códigos escritos, a exemplo do código de Hamurabi (+_ 1750 a.C.) e das Leis Mosaicas (+_ 1200 a.C.) eram tão violentos no tocante ao relacionamento entre pais e filhos? No primeiro, os filhos que renegassem o pai ou a mãe, biológicos ou não, tinham a língua cortada; no segundo, podiam ser apedrejados até a morte. Pode-se, diante disso, até argumentar que hoje a incidência de casos é maior que no passado. Entretanto, pode-se também, contra-argumentar que do ponto de vista das incidências, há que se levar em conta o quantitativo, pois hoje a população é incomparavelmente maior que no passado, além do fato de os meios de comunicação registrarem e transmitirem os acontecimentos com uma rapidez descomunal.
Diante do exposto, acreditamos ter deixado claro que o termo crise não se circunscreve apenas ao campo do ensino jurídico brasileiro; seu alcance é universal, atingindo também os demais campos do conhecimento, conforme veremos a seguir. Raymond Williams, renomado historiador britânico, argumentou em uma de suas obras (1997. p.21 et passim) que para se falar na crise agrária inglesa contemporânea, seria preciso regressar à Utopia de Thomas Morus (séc. XVI), pois nela já se encontra passagens concernentes a esta crise: “(…) nada deixam da terra para a lavoura, porém tudo demarcam para servir de pastagem; derrubam casas; demolem aldeias, nada deixam em pé senão a igreja, para servir de estábulo para carneiros.” (id. Ib. p.24). Prosseguindo, reafirma que se quiser, pode-se retroceder até o jardim do Éden, quando da expulsão de Adão e Eva.
Alguns exemplos, em outras áreas do conhecimento, são por demais ilustrativos. Comecemos pela psicanálise freudiana.
Parafraseando Francisco Fukuyama, historiador norte-americano, em obra recente (2003. p.54.), o desenvolvimento da neurociência faz com que o freudismo possa ser comparado a uma tribo indígena primitiva, diante dos mecanismos de um carro em funcionamento com o capô fechado. Segundo ele, os indígenas relacionariam apenas o ato de pisar no acelerador e mover-se para frente, mas jamais poderiam entender algo sobre hidrocarbonos, combustão interna, válvulas e pistões que são responsáveis pela conversão de energia.
O mesmo está ocorrendo na física e na química; conforme nos esclarece o renomado pesquisador Ilya Prigogine (1996); que a verdade, em ciência, era uma visão determinista, proveniente da nossa própria ignorância, pois o que podemos realmente discutir neste sentido refere-se a probabilidades, não a certezas. Uma de suas indagações personifica seus questionamentos “in totum”: por que alguns répteis começaram a voar e outros idênticos permaneceram no chão? Ou, por que certos macacos se tornaram, talvez, ancestrais dos homens e outros permaneceram como macacos?
Quiçá, ninguém mais do que um naturalista possa colocar mais controvérsias e crises em nossas certezas, na medida em que, põe em xeque o maior instrumental de conhecimento da espécie humana, o cérebro. São palavras de Stephen Jay Gould (2003. P.22 e 23.): “O cérebro humano, com sua espantosa peculiaridade, emergiu como um produto da evolução, repleto de modos de raciocínios estranhos (e muitas vezes enganadores) originalmente desenvolvidos para outros propósitos, ou mesmo para nenhum propósito explícito. Esse cérebro, então, descobre a verdade central da evolução, mas constrói culturas e sociedades humanas repletas de crenças e preconceitos que nos predispõem a rejeitar boa parte das explicações do próprio processo que nos criou.”
Os exemplos dados demonstram, cabalmente, que há uma crise que afeta todos os ramos do conhecimento, a ponto de a própria razão ser posta em dúvida. O fim das certezas no campo do conhecimento faz reavivar o aforismo socrático; um tanto quanto esquecido: ”só sei que nada sei, e nem mesmo isso tenho certeza.” Retomemos a crise do ensino jurídico.
Conquanto, muitos, a exemplo de renomados operadores do direito, discordem, o estudo interdisciplinar desta área do conhecimento se faz necessário para que possa redimensionar o sentido do termo crise. Conforme o visto, é justamente a contextualização interdisciplinar, das várias áreas do conhecimento, que permite ver que a crise não está circunscrita a esta ou aquela área do conhecimento, ela é geral, na medida em que, estamos imersos em um oceano de dúvidas. Se existe alguma ilha de certezas, ela só pode ser encontrada no mar da ignorância, palavras de Edgar Morin; sociólogo coevo, consagrado.
Quando se propõe estudar a crise do ensino jurídico no Brasil, nota-se, claramente, que ela se nos apresenta em forma de um mosaico, permutando figuras e cores de todos os matizes, visto que o grau de abrangência do campo jurídico em suas relações com o social, com o político, com o econômico, com o ideológico além de incomensurável é, ao mesmo tempo, paradoxal; a começar pelos sentidos e as funções etimológicas das palavras. À guisa de exemplo: como definir palavras como direito e justiça?
O termo direito é, no mínimo, polissêmico; pois além de prestar-se a inúmeras conceituações de cunho ideológico, tem por essência e fim, justificar e legitimar o “status quo”, bem como, o seu demiurgo: o Estado; acabando por legitimar aquele que o legítima, em uma relação simbiótica entre criador e criatura.
Tércio Sampaio é bastante feliz em sua conceituação do direito, quando o apresenta (2001. p. 32 et passim.) com característica bifronte, isto é, ao mesmo tempo em que vem em defesa dos fracos diante dos fortes, em defesa dos governados diante dos tiranos, pode ser também manipulável por aqueles que têm real acesso a ele e o conhecem bem. Em suas palavras: “Por tudo isso podemos perceber que o direito é muito difícil de ser definido com rigor.” Diante de tal passagem, há que se indagar: se para um expoente do pensamento jurídico o direito é de difícil conceitual, o que poderá ser dito no tocante a um leigo nesta matéria?
Não menos difícil ainda é a palavra justiça. Como é possível conceituá-la? Quantas tentativas foram empreendidas neste sentido? Quantos absurdos foram cometidos em seu nome? Quantas vidas foram ceifadas? Nada mais emblemática do que esta passagem de Chaim Perelman (1996. p.8.) “Todas as revoluções, todas as guerras, todas as revoltas sempre se fizeram em nome da justiça. E o extraordinário é que sejam tanto os partidários de uma ordem nova como os defensores da ordem antiga que clamam com seus votos pelo reinado da justiça. E, quando uma voz neutra proclama a necessidade de uma paz justa, todos os beligerantes ficam de acordo e afirmam que essa paz justa só será realizada quando o adversário for aniquilado.”
Portanto, se apenas duas palavras, direito e justiça, causam tanta celeuma, pensemos agora em tentar mapear as razões responsáveis pela crise no ensino do direito no Brasil, as quais têm raízes de todos os matizes, a começar por aquela do tempo histórico. Citarei abaixo duas passagens, cujo distanciamento temporal, é de um século e meio; atualizando a grafia fica difícil para o leitor identificá-las, cronológicamente. Atentemos para elas: a) “(…) o que se pode dizer, segundo alguns autores, é que a crise do ensino jurídico não é meramente pedagógica. É antes de tudo um problema político. Os cursos de Direito (…) são centros reprodutores da ideologia do poder estabelecido. Dessa forma, servem à manutenção do status quo, tanto em nível de estado como de sociedade civil.” (RODRIGUES, 2000. p.18). b) “(…) Os cursos jurídicos se acham enfermos, mas os médicos com os seus estatutos não reconhecem a moléstia, e por isso ele vai afligir o doente em vez de curá-lo. Tudo quanto se quis conseguir com os novos estatutos foi rigor para com os estudantes, e rigor para com os lentes… As causas do mal são outras, e uma delas é o patronato do Governo que com muitos avisos, tem relaxado a execução desses mesmos estatutos que por frouxos se quer reformar, e tem produzido o desânimo de muitos professores.” (Discurso no Congresso do Deputado D. Manuel em 06/07/1853. Apud. Bastos, 2000, p.56).
Nota-se, claramente, que as duas passagens, embora intercaladas pelo tempo, atribuem culpa à crise do ensino jurídico à esfera política, ou seja, o Estado é o culpado. Ora, depreende-se disso que não se pode setorizar a crise, torna-se muito cômodo elencar apenas um dos elementos e atribuir-lhe toda a culpa. As razões são muitas a permear, desde a prática do magistério aos fins que se destina o direito na sociedade. Destarte, para discutí-las é preciso contextualizá-las em todos os planos que campeiam e fundamentam a sociedade brasileira: o econômico, o político, o social, o cultural, o ideológico etc. para fazê-lo, contudo, serão necessário toneladas de tinta e papel, buscando com elas responder às indagações que engendram a chamada crise no ensino jurídico brasileiro.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução de Paulo Henrique de Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.21 et passim.

FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós humano: conseqüências da revolução da biotecnologia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p.54.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução mde Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1996.

GOULD, Stephen Jay. A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci: ensaios sobre a história natural. Tradução de Lejane Rumno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.22 e 23.

FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito técnico, decisão dominação. 3. ed.. São Paulo: Atlas, 2001. p.32 et passim.

PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.8.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O ensino do direito, os sonhos e as utopias. In: ensino jurídico para que(m)? Florianópolis: Fundação Boiteux. 200. p.18.

Discurso do Congresso do Deputado D. Manuel em 06/07/1853. In: BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil. 2. ed.. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p.56.

Reinério Antônio Lérias é Doutor em História e professor de História do Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos.

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