O ser humano como fim em si mesmo: imperativo categórico como fundamento interpretativo para…

O ser humano como fim em si mesmo:
imperativo categórico como fundamento interpretativo para normas de imperativo hipotético

Marcelo Kokke Gomes
Procurador Federal junto ao INSS– Advocacia Geral da União, Professor da FADOM -Faculdades Integradas do Oeste de Minas, Pós-graduando em Processo Constitucional

I – Introdução

O presente trabalho possui como escopo relacionar o fundamento kantiano dos imperativos categóricos e hipotéticos à teoria da interpretação das normas jurídicas. Buscar-se-á relacionar ambos imperativos, caracterizando-os e expondo a essência dos mesmos paralelamente ao intento de identificar e comprovar uma estrutura própria da hermenêutica jurídica em relação ao ordenamento jurídico, a fim de vincular as bases da primeira dentro do imperativo categórico não obstante setorizado o ordenamento jurídico enquanto imperativo hipotético. Assim, prega-se que, em caso de conflitos entre normas principiológicas jurídicas, o alicerce interpretativo constante na Constituição pátria revela-se como imperativo categórico.

A primeira questão por se passar trata da identificação do imperativo categórico e igualmente das normas a que se atém. Entretanto, embora almeje-se a vinculação das normas de interpretação aos imperativos categóricos desviar-se-á de uma concepção de que as primeiras formam-se em um a priori da razão abstrata, mas estabelecendo uma vinculação da razão formada com o pano de fundo constante paradigma do Estado.

Assim, o que se pretende por meio do presente trabalho é sustentar a plausibilidade da formação de imperativo categórico pertinente à norma hermenêutica com base no pano de fundo estabelecido pelo paradigma do Estado, mais precisamente, do Estado Democrático de Direito. Logrando-se êxito, partir-se-á do postulado kantiano de que o ser humano é fim em si mesmo, mas avançando para além de uma derivação da razão, estabelecer uma afetação ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

II – O Imperativo Categórico e o Imperativo Hipotético

O conceito de liberdade alicerça a construção da filosofia kantiana, constituindo-se como princípio regulador da razão, atuando no uso prático da razão, fundamento de razão pura para a escolha livre das contingências empíricas. Observa-se aqui a atuação positiva da liberdade: fundamento de escolha com base em um dever. A externação da ação racionalmente necessária é produzida pela regra prática denominada imperativo.

O imperativo categórico torna necessária a ação de uma forma direta, sendo assim conceituado por Kant:

“Um imperativo categórico (incondicional) é aquele que representa uma ação como objetivamente necessária e a torna necessária não indiretamente através da representação de algum fim que pode ser atingido pela ação, mas da mera representação dessa própria ação (sua forma) e, por conseguinte, diretamente.” (KANT, 2003:65)

Complementando:

“O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal.” (KANT, 2003:67)

Portanto, o imperativo categórico possui o caráter de validade universal fundado em uma constrição interna da razão, mas alicerçado na liberdade. Enquanto o imperativo categórico possui conteúdo finalístico em si mesmo, o imperativo hipotético imprescindem de um conteúdo finalístico externo, como assinala Alexandre Travessoni Gomes:

“Surge a necessidade da razão impor regras à conduta humana, o que fará através dos imperativos. Para Kant, os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação possível como um meio de se alcançar um fim. Os imperativos categóricos mandam um ação objetivamente, necessária por si mesma, sem relação com qualquer finalidade: uma ação que é boa em si mesma.” (GOMES, 2000:63-64)

Assim, o imperativo hipotético configura-se por uma contingência externa na motivação, que deixa de ser objetiva e assume fóruns conformativos externos. O imperativo hipotético banha as normas jurídicas, considerando para tanto que o fundamento do cumprimento das mesmas é de ordem externa ao ser humano, o qual conforma sua ação em bases externas de motivação.

As normas jurídicas revelam-se assim como imperativos hipotéticos. Kant esclarece o ponto, deixando claro que o que distingue o direito em si não é o dever que gera, mas a origem motivadora da ação.

“Toda legislação pode, portanto, ser distinguida com respeito ao motivo (mesmo que concorde com outro tipo com respeito à ação que transforma em dever, por exemplo, ações que podem ser externas em todos os casos). Essa legislação que faz de uma ação um dever, e também faz deste dever o motivo, é ética. Porém, a legislação que não inclui o motivo do dever na lei e, assim, admite um motivo distinto da idéia do dever, é jurídica.” (KANT, 2003:71)

E continua:

“A doutrina do direito e a doutrina da virtude não são, conseqüentemente, distinguidas tanto por seus diferentes deveres, como pela diferença em sua legislação, a qual relaciona um motivo ou outro com a lei.” (KANT, 2003:73)

Joaquim Carlos Salgado vincula o imperativo hipotético ao direito como esquema de aplicação de princípios a priori do direito, os quais estruturariam-se em uma base categórica:

“O imperativo hipotético tem relevância para o direito, embora não seja o seu fundamento último. É o modo como aparece a norma jurídica no direito positivo e deve funcionar, pode-se dizer, como esquema de aplicação dos princípios a priori do direito (do imperativo categórico) ao mundo pragmático da legislação positiva, dada a sua participação, ao mesmo tempo, do teórico e do prático.” (SALGADO: 1995:211)

Considerando que o imperativo hipotético, como ressaltou Salgado, vincula-se ao imperativo categórico, enquanto mesmo esquema de aplicação, e ainda tendo em conta que não há um distinção de essência entre ambos, como apreende-se em Kant, mas tão somente em origens de motivação, buscar-se-á vincular a interpretação de normas jurídicas (imperativos hipotéticos) dentro de um esquema de princípios a priori do direito (de imperativo categórico).

Marcelo Campos Galuppo, citando Paton (1), explicita que o imperativo categórico apresenta-se em cinco fórmulas:

“Como sistematiza Paton, podemos encontrar o Imperativo Categórico em cinco fórmulas:

‘Fórmula I ou Fórmula da Lei Universal: Age apenas com base na máxima que tu possas desejar ao mesmo tempo que se torne uma lei universal. Fórmula Ia ou a Fórmula da Lei da Natureza: Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza. Fórmula II ou fórmula do fim em si mesmo: Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio. Fórmula III ou a Fórmula da autonomia: Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas. Fórmula IIIa ou a Fórmula do Reino dos Fins: Age de tal maneira que tu sejas sempre através de suas máximas um membro legislador em um reino universal dos fins.’ (Paton, 1948:129)” (GALUPPO, 2002:97)

Interessa-nos aqui a formulação segunda: Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio. O imperativo categórico do ser humano com fim em si mesmo afigura-se como princípio esquemático de aplicação de normas jurídicas espelhadas no imperativo hipotético.

III – Ser Humano como fim em si mesmo: formação de um imperativo categórico na interpretação das normas jurídicas

O imperativo categórico, conforme constou, reflete a necessidade da ação objetiva e internamente considerada, segundo a razão. Entretanto, o que aqui se sustenta é uma contextualização da razão formadora da motivação, ou seja, a formação de imperativo categórico hermenêutico do direito, para os fins que aqui se pretende, não ocorre em uma situação atemporal, mas sim em uma situação contextualizada. Sustenta-se assim a existência de imperativos categóricos dentro da hermenêutica jurídica que funcionam como esquemas interpretativos dos imperativos hipotéticos (normas jurídicas).

Assim, a formação do imperativo categórico acopla-se à conjuntura do pano de fundo em que a razão (aqui, histórica, temporal e espacialmente considerada). Nesta situação, atrai-se a argumentação habermasiana:

“os sujeitos agindo comunicativamente se tratam literalmente como falantes e destinatários, nos papéis das primeira e segunda pessoas, no mesmo nível do olhar. Contraem uma relação interpessoal, na qual se entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes mundanos. Nessa posição performativa, diante do pano de fundo de um mundo da vida intersujetivamente compartilhado, fazem simultaneamente, uns para os outros, experiências comunicativas entre si.” (HABERMAS, 2002:53)

Nestes termos, a identificação do imperativo categórico da valorização do ser humano como fim em si mesmo, como fim último, nunca podendo ser tratado como meio, aloca-se como imperativo categórico hermenêutico, considerando a razão paradigmatizada em um Estado Democrático de Direito, em que o pluralismo de projetos de vida humana integram-se, fundando-se a ordem jurídica nos direitos fundamentais (direitos humanos), e em especial na dignidade da pessoa humana.

Desta forma, a interpretação jurídica é banhada do imperativo categórico: interprete de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio, na aplicação de quaisquer normas jurídicas.

O conflito de princípios e o confronto de regras jurídicas, não obstante estes partilhem-se absorvidos no imperativo hipotético, é submetido enquanto esquema hermenêutico polarizado por um imperativo categórico: o ser humano como fim do ordenamento jurídico.

A penetração do imperativo categórico kantiano na hermenêutica jurídica atrai para o ato de interpretar um balizamento ético, ao que qualquer interpretação da norma jurídica que posiciona-se o ser humano como meio afigura-se não somente como vedada pelo postulado ético, mas igualmente rechaçado pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, fonte contextualizadora da razão formada.

Consideráveis as razões e argumentos trazidos por Miracy Barbosa de Souza Gustin, citando inclusive Agnes Heller:

“Todas as necessidades devem ser reconhecidas e satisfeitas, com a exceção daquelas cuja satisfação exija-se que um homem seja meio para outro homem. (2)” (GUSTIN, 1999:63)

Continua a Professora da UFMG:

“Seguindo as orientações kantianas, Heller completa dizendo que as necessidades sobre as quais não recai um juízo moral negativo devem ser consideradas boas. E se pergunta se devem ser consideradas igualmente boas. No sistema social de prioridades essa é, sem dúvida, uma questão importante para o estabelecimento de políticas públicas. Quem indicaria, contudo, as necessidades boas ou que deveriam ser priorizadas pelo sistema público? Heller responde: ‘O sistema de necessidades humanas deveria corresponder ao sistema de necessidades eleitas pelos humanos.’” (GUSTIN, 1999:63)

Considerando assim o imperativo kantiano do ser humano como fim em si mesmo, e atraindo-o para a escala hermenêutica no sentido de que a interpretação deve considerar o ser humano como fim da norma jurídica, e nunca como meio, tem-se que em casos de confronto entre normas jurídicas atinentes ao direito financeiro, ao direito administrativo, ao direito tributário, e normas imediatamente vinculadas aos direitos fundamentais, estas nunca podem ceder àquelas, sob pena de transformar-se o ser humano em meio de satisfação de políticas públicas, violando-lhe os direitos fundamentais e sua dignidade enquanto ser humano, estruturais do paradigma do Estado Democrático de Direito, segundo o qual a norma deve se contextualizar.

Visualiza-se como permeado pelas idéias ora dispostas decisões judiciais tomadas na atualidade, citando-se inclusive Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que encontra justamente sua fundamentação filosófica e legitimadora nas bases expostas anteriormente, embora não as explicite.

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. PROTEÇÃO. ASTREINTE. A necessidade de proteção a direitos fundamentais à saúde e à dignidade da pessoa humana se sobrepõe à de resguardo a direitos de ordem econômica e administrativa. A astreinte constitui mecanismo de coerção ao cumprimento do preceito, indispensável à tão almejada efetividade da jurisdição. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO DESPROVIDO. (TJRS AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70006650790, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: MARA LARSEN CHECHI, JULGADO EM 28/10/2003)

IV – Síntese em Conclusão

Considerando assim o imperativo kantiano do ser humano como fim em si mesmo, e atraindo-o para a escala hermenêutica no sentido de que a interpretação deve considerar o ser humano como fim da norma jurídica, e nunca como meio, tem-se que em casos de confronto entre normas jurídicas atinentes ao direito financeiro, ao direito administrativo, ao direito tributário, e normas imediatamente vinculadas aos direitos fundamentais, estas nunca podem ceder àquelas, sob pena de transformar-se o ser humano em meio de satisfação de políticas públicas, violando-lhe os direitos fundamentais e sua dignidade enquanto ser humano, estruturais do paradigma do Estado Democrático de Direito, segundo o qual a norma deve se contextualizar.

BIBLIOGRAFIA

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença. Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

HABERMAS, Jügen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradução de Lúcia Aragão e revisão de Daniel Camarinha da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e igualdade. 2a Edição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995

NOTAS

1 PATON, H. J. The Categorial imperative; a study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1948, p. 129.

2 HELLER, Agnes. The power of the shame, p. 290.

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