O sigilo do procedimento arbitral envolvendo companhia aberta

Autor:  Jorge Lobo (*)

 

(Devemos) pensar concretamente sobre problemas frequentemente obscurecidos por discussões pomposas sobre privacidade.”
(Posner)

Deve ser sigiloso o procedimento arbitral em que seja parte companhia aberta?

Jamais deve ser secreto, nem mesmo quando tiver por objeto direitos de propriedade intelectual, embora certos e determinados documentos, como patentes de invenção, devam ser mantidos em segredo, mas, sobretudo, nunca deve ser confidencial quando visar à apuração da prática de ilícitos individuais ou coletivos de membros do conselho de administração ou da diretoria executiva.

Se não, vejamos.

O mercado de capitais ou financeiro é um sistema ordenado e unitário segundo princípios e valores: princípios, que norteiam a formação, exegese e aplicação das leis; valores, que inspiram os agentes econômicos a comportamentos éticos e legais.

Como todo sistema — científico, político, social, jurídico —, o mercado de capitais está em permanente mudança, pois ora surgem princípios e valores, ora outros caem em desuso ou desaparecem nos chamados choques disruptivos.

Há, todavia, princípios perenes e valores supralegais ou pré-positivos: por exemplo, no mercado de ações e derivativos, um dos segmentos do mercado financeiro, a publicidade é o princípio soberano, e a transparência, o valor existente a priori, ambas compondo o núcleo do direito inviolável do acionista à informação.

Destarte, podemos afirmar que o direito à informação é uma conquista irreversível do acionista, a publicidade e a transparência são da essência e da índole do mercado acionário, e não há mercado de ações seguro, confiável, eficiente e próspero sem a divulgação completa e célere sobre fatos, atos, negócios jurídicos e, em particular, contingências que possam culminar na perda do valor patrimonial da companhia.

Apesar desses postulados e embora a Lei de Arbitragem e a Lei de Anônimas não prevejam a confidencialidade do procedimento arbitral; o Código de Processo Civil a faculte; a Lei de Acesso à Informação permita a obtenção de dados de empresas estatais; a Constituição Federal garanta plena liberdade de informação jornalística e o Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC recomende que a “divulgação de informações abranja todas as informações relevantes, positivas ou negativas” (5.8., b. i), o Regimento da Câmara de Arbitragem do Mercado da B3 (CAM) determina que o procedimento arbitral tramite sob sigilo e o seu regulamento, que o estatuto da companhia contenha “cláusula compromissória”, supostamente para proteger a privacidade das partes.

O conflito entre o direito à vida particular, à honra e à imagem e o direito à informação foi resolvido no julgamento da ADI 4.815/DF, rel. min. Cármen Lúcia, restando claro que o conceito de Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1916 a 1939, right to be alone (direito de estar só), apenas se aplica à vida pessoal e familiar do individuo e não à vida social e profissional, rectius, à vida pública.

O acórdão, ao estabelecer a distinção entre “espaço privado e espaço público”, destaca que “a vida pessoal se altera pela escolha feita pelo sujeito de direito” e acentua que “aquele que não se quer expor ao público há de se manter nos umbrais da porta de casa… quem busca a luz não há de exigir espaço intocado da sombra”, incluindo, entre aqueles que fogem da sombra e procuram a luz, os que “promovem as suas atividades em público e para o público” e os que “extraem e retiram dos cidadãos, pelo exercício de sua função ou atividade, os ganhos materiais ou profissionais…”, como soe acontecer com os administradores de companhias abertas com dezenas de milhares de acionistas.

Diante dessa realidade — dirigentes de sociedades anônimas de grande porte são pessoas públicas —, “instituições arbitrais internacionais”, por exemplo, “BITs norte-americano e Espanha – México, Nafta e CAFTA” e, “como conseqüência, o ICSID também passou a incorporar algumas regras de transparência e publicidade ao procedimento arbitral, mas sempre conferindo às partes o poder de sigilo”, consoante anotam Gustavo J. Oliveira e Caio C. Figueiroa (site ConJur em 9/12/2015).

Observe-se, contudo, que o “poder de sigilo” das partes não tem guarida quando o procedimento arbitral visa à apuração da prática culposa ou dolosa de atos de administradores contrários à lei e ao estatuto social e objetiva puni-los pelos prejuízos causados à companhia, acionistas e credores, matéria que é sempre e indiscutivelmente de interesse público, um notório e incontestável fato relevante, que deve ser divulgado por todos os meios e modos possíveis, para conhecimento dos investidores e do mercado.

Por fim, tenha-se em mente a advertência de Richard Posner: “A privacidade é um valioso bem privado, mas, às vezes, é um mal para a sociedade. Um alto grau de privacidade é fonte … de perigos potencialmente sérios para a ordem social. Crime, subversão e fraude, tudo isso é facilitado pela privacidade…quem desmascara a reputação não merecida de um individuo, enriquece aqueles que poderiam realizar transações com esse individuo” (Levando o Direito a Sério, p. 562).

 

 

Autor:  Jorge Lobo  é advogado, professor e procurador de Justiça aposentado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito da Empresa pela UFRJ e doutor e livre-docente em Direito Comercial pela Uerj.


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