O STF e a venda sem licitação de imóveis públicos

O STF criou relevante e perigosa orientação em emblemático julgamento, cujo acórdão foi publicado em 24 de agosto de 2007, ao estabelecer que lei específica pode permitir a venda de lotes irregulares situados em áreas públicas diretamente ao ocupante, fora das hipóteses de dispensa de licitação previstas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.

Trata-se do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.990, que considerou constitucional a Lei Federal nº 9.262, de 12 de janeiro de 1996, cujo principal objeto é, atendidos determinados requisitos, permitir a venda direta sem licitação aos ocupantes de lotes nos chamados “condomínios irregulares” situados em terras públicas na Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio São Bartolomeu, que está predominantemente no Distrito Federal.

A Lei Federal nº 9.262/96 não tem o caráter de lei nacional, equiparando-se a uma lei estadual, distrital ou municipal, como veremos adiante.

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2.A regra geral para alienação de bens públicos. Competência constitucionalmente conferida para legislar a respeito do tema.

A Constituição Federal estabeleceu que a União é competente para legislar a respeito de normas gerais a respeito de licitação e contratação para todas as pessoas jurídicas de direito público e entidades da administração indireta:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(…)

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;”

Além disso, a Constituição Federal estabeleceu que, como regra geral, os contratos celebrados pela Administração Pública deverão ser efetuados mediante o procedimento de licitação:

“Art. 37. (…)

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

A teor do que se vê desses dispositivos constitucionais, a regra geral é a contratação por meio de licitação; a exceção é a contratação sem licitação, para as hipóteses especificadas na legislação.

Os casos que são ressalvados pelo inciso XXI do art. 37 devem ser os previstos nas normas gerais de licitações e contratos, que devem ser materializadas em lei de competência União, que terá caráter de lei nacional.

Caso assim não se conclua, poderá qualquer ente da federação, por lei própria, estabelecer hipóteses específicas em que a licitação não será necessária para a celebração de contratos com a Administração Pública, esvaziando de eficácia quase que completamente os mencionados dispositivos constitucionais.

Atendendo ao disposto no art. 22, XXVII, da Constituição Federal, a União editou a Lei nº 8.666/93, que trata a respeito de normas gerais de licitação e contratos para a Administração Pública, o que abrange as alienações de bens públicos.

O art. 17, I, Lei nº 8.666/93 estabelece que os imóveis públicos somente podem ser alienados com autorização legislativa e, como regra geral, por meio de licitação, na modalidade concorrência, que será dispensada em hipóteses especificadas nas alíneas do referido dispositivo.

Evidentemente, a lei que pode autorizar a venda de imóveis públicos deve ser editada pela pessoa política (União, Estado, Distrito Federal ou Município) que for proprietária do imóvel.

A alínea “f” do inciso I do art. 17 da Lei nº 8.666/93 dispensa a licitação para a alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública.

Portanto, fora dessa hipótese prevista na Lei nº 8.666/93, que trata de normas gerais de licitação e contratos da Administração Pública, parece que nem mesmo por meio de lei específica se poderia autorizar, sem licitação, a alienação de imóveis públicos.

Assim, a regularização de lotes e loteamentos situados em terrenos de propriedade do Poder Público parecia que somente poderia ser feita no âmbito de programas habitacionais destinados à população de baixa renda ou mediante procedimento de regularização fundiária no qual a venda dos lotes seria feita mediante concorrência (licitação).

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3.A jurisprudência anterior ao julgamento da ADIn nº 2.990.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), de forma pacífica, sempre julgou no sentido de que seria inconstitucional a lei local que autorizasse a venda direta de lotes situados nos chamados “condomínios irregulares” em terras públicas, ocupados sem título outorgado por órgão estatal, em razão da necessidade do processo de licitação pública, que só estaria dispensado quando os beneficiários fossem pessoas carentes, no âmbito de programas habitacionais (art. 17, I, “f”, da Lei n. 8.666/93). Entendia o TJDF que nesses casos a situação seria diversa da prevista pela Lei Federal nº 8.025, de 12 de abril de 1990, que autorizou a venda de imóveis da União para servidores públicos devidamente autorizados a residir em tais imóveis. [01]

Com efeito, o STF jamais afirmou a inválida a Lei nº 8.025/90, que no art. 6º permitiu ao legítimo ocupante de imóvel funcional situado no Distrito Federal a sua aquisição a preço de mercado, preenchidos determinados requisitos estabelecidos no próprio dispositivo.

A Lei nº 8.025/90 não tinha conteúdo de lei nacional e não foi editada com fundamento na competência constitucionalmente conferida à União para legislar sobre normas gerais de licitações e contrato. Ao revés, tratava-se de Lei de cunho meramente federal, uma vez que abrange apenas imóveis de propriedade da União, inaplicável aos demais entes da Federação.

Nesse mesmo sentido, o Estado do Amapá editou a Lei Estadual nº 159, de 28 de junho de 1994, referente a imóveis funcionais situados em Macapá, autorizando a venda sem licitação e não foi considerada inconstitucional pelo STF, no julgamento da medida liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 1.300. [02] Constou do voto condutor desse julgamento que referida Lei estadual praticamente reproduzia o teor e alcance da referida Lei Federal nº 8.025/90, que teria passado “pelo crivo de constitucionalidade”.

Já o Estado do Tocantins editou a Lei Estadual nº 147, de 18 de abril de 1990, também autorizando a venda de imóveis funcionais a servidores públicos sem licitação. Porém, ao contrário das leis acima mencionadas, a Lei tocantinense tratava da aquisição de lotes e moradias situadas no perímetro urbano de Palmas sem licitação, sem se limitar a imóveis que estivem legitimamente ocupados por servidores públicos em virtude de ato do Poder Público. Em razão disso, o STF afirmou a inconstitucionalidade dessa Lei por ocasião do julgamento da ADIn nº 651. [03]

Como se vê, o traço marcante que diferencia a Lei federal e a Lei do Amapá da Lei do Tocantins, no que se refere à possibilidade de venda sem licitação, é a exigência, contida nas duas primeiras leis, de estar o imóvel funcional legitimamente ocupado pelo servidor público, exigência tal que não existe na Lei do Tocantins. Com base nessa diferença, o STF julgou as duas primeiras leis constitucionais e a julgou a última inconstitucional.

Essa distinção, ao menos aparentemente, é irrelevante: as leis que tratam de normas gerais de licitação e contratos da Administração Pública em vigor à época de edição das mencionadas Lei Federal nº 8.025/90 (Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986) e da Lei Estadual nº 159/94 (Lei nº 8.666/93), não autorizavam a dispensa (note-se bem: dispensa!) de licitação na hipótese de alienação de imóveis legitimamente ocupados por servidores públicos.

Desse modo, poderia o STF apreciar a inconstitucionalidade da mencionada Lei do Amapá por ocasião do julgamento final da ADIn nº 1.300 e até mesmo da Lei Federal nº 8.025/90, caso proposta ação direta de inconstitucionalidade por algum dos legitimados.

Porém, não há notícia da propositura da referida ação, assim como a ADIn nº 1.300, após o indeferimento da liminar acima mencionada, foi julgada extinta por decisão monocrática do relator em 20/8/2008, que, entre outros fundamentos, apontou que “não são suscetíveis de controle concentrado as normas individuais e concretas como aquelas que se destinam a situações definidas e têm destinatários certos”, o que seria justamente o caso da Lei atacada, pois “os preceitos que se pretende alijar do ordenamento jurídico beneficiam não os servidores do Estado do Amapá genericamente considerados, mas apenas aqueles que ocupam imóveis individualmente identificados, ut singuli. Não resta dúvida de que se trata de normas que disciplinam relações jurídicas in concreto”. [04]

Assim, até o julgamento da ADIn nº 2.990, que veremos no item seguinte, não se poderia dizer de forma cabal que o STF tinha uma posição definida a respeito do tema: ele apenas deixou de considerar inconstitucionais leis que estabeleceram a possibilidade de venda sem licitação para servidores que ocupassem legitimamente imóveis públicos, implicitamente considerando constitucional a disposição no bojo de diversos julgamentos.

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4.O julgamento da ADIn nº 2.990 e sua influência no direito brasileiro.

A maior parte dos imóveis públicos situados na região mencionada pela Lei Federal nº 9.262/96 são de propriedade da Companhia Imobiliária de Brasília (TERRACAP), empresa pública controlada pelo Distrito Federal, que detém 51% do seu capital, sendo da União os restantes 49%.

O art. 3º da Lei nº 9.262/96 estabeleceu que, atendidos determinados requisitos, os imóveis públicos situados nessa região específica poderão ser alienados com dispensa dos “procedimentos exigidos pela Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993”.

Entre os requisitos exigidos pela Lei nº 9.262/96, destaca-se a necessidade de comprovação, perante a Terracap, de ter o ocupante “firmado compromisso de compra e venda de fração ideal do loteamento, prova esta que deverá ser feita mediante apresentação do contrato firmado com o empreendedor do loteamento ou suposto proprietário, além da comprovação de que efetivamente pagou, ou está pagando, pelo terreno” (art. 3º, § 2º).

O “empreendedor do loteamento ou suposto proprietário” ao qual a Lei se refere não é o Poder Público, mas sim a pessoa que, sendo “suposto proprietário” ou mesmo “suposto possuidor”, realizou o parcelamento do solo, mediante celebração de contrato com os adquirentes dos lotes, sem preencher os requisitos da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe a respeito de parcelamento do solo urbano..

Uma das principais causas dos problemas fundiários existentes no Distrito Federal foram as imprecisas desapropriações de terras particulares realizadas por ocasião da criação da nova capital. Por essa razão, a Lei nº 9.262/96 não distingue a hipótese em que o “empreendedor do loteamento ou suposto proprietário” é uma pessoa que, de forma realmente fundamentada, disputa judicialmente a propriedade das terras, da hipótese em que ocorreu pura e simples invasão (“grilagem”) de terras públicas e subseqüente venda irregular de parcelas dessas terras. Além disso, entre essas duas situações existe uma zona cinzenta, fazendo a questão mais complexa do que aparenta à primeira vista.

Sem entrar no mérito da existência ou não de boa-fé dos compradores dos lotes dos parcelamentos irregulares, é evidente que a Lei pretende promover a regularização fundiária da APA do São Bartolomeu, o que passa, necessariamente, pela regularização da propriedade territorial dos atuais ocupantes do território factualmente parcelado. O tema da existência ou não de boa-fé dos compradores, bem como dos seus limites e importância jurídica, é sensível e delicado, tendo provocado justificáveis manifestações com forte carga emocional por parte das pessoas envolvidas no tema.

Assim, a Lei nº 9.262/96 quer resolver o problema para o futuro, ainda que implicitamente possa chancelar alguns casos específicos de flagrante violação da ordem pública ocorridos no passado.

Evidentemente, a Lei nº 9.262/96 não foi editada pela União com base na competência estabelecida constitucionalmente para legislar a respeito de normas gerais de licitações e contratos. Ao revés, a Lei nº 9.262/96 é uma lei específica, abrangendo não apenas uma específica parte do território nacional, mas imóveis claramente determináveis.

A constitucionalidade da Lei nº 9.262/96 foi apreciada pelo STF por ocasião do mencionado julgamento da ADIn nº 2.990, cujo acórdão foi publicado em 24/8/2007.

O relator originário, Min. Joaquim Barbosa, votou pela inconstitucionalidade do art. 3º da Lei nº 9.262/96, sustentando que a regra geral estabelecida pelo art. 37, XXI, da CF é a da necessidade de licitação, sendo que a questão tratada pelo art. 3º da Lei nº 9.262/96 não se refere a nenhuma das hipóteses excepcionais contempladas nos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666/93. Porém, essa posição não prevaleceu.

Foi designado relator para o acórdão o Min. Eros Grau, que proferiu voto condutor no sentido de que a Lei nº 9.262/96 é constitucional ao “dispensar” a licitação porque no caso por ela tratado “não é possível competir: o loteamento será regularizado exatamente com a venda para aquele que ocupar o lote”.

Assim, o fundamento do julgamento da validade da Lei nº 9.262/96 não foi a criação de uma nova possibilidade de dispensa de licitação (art. 24 da Lei nº 8.666/93), mas sim o reconhecimento de que, no caso específico por ela tratado, não há possibilidade de competição, razão pela qual a licitação não seria viável, ou seja, inexigível (art. 25 da Lei nº 8.666/93).

Desse modo, embora o caput do art. 3º da Lei nº 9.262/96 afirme textualmente afastar “os procedimentos exigidos pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”, o STF decidiu pela validade da norma em razão da inexigibilidade de licitação (art. 25 da Lei nº 8.666/93), decorrente de uma afirmada inviabilidade competição.

Não foi apreciado nesse julgamento se uma lei federal – sem caráter de lei nacional, por não estar baseada na competência da União para editar normas gerais válidas para todas as unidades federativas – poderia validamente versar a respeito de imóveis que não são de propriedade da União.

O fato é que foi afirmado nesse julgamento pelo Min. Sepúlveda Pertence que “Essa lei é federal porque são terras da União, embora geridas pela Terracap”.

Sem pretender discutir se os imóveis são de propriedade da União ou da Terracap, o relevante é que esse julgamento estabeleceu a possibilidade de uma entidade da federação, por meio de lei específica, afirmar a possibilidade de venda sem licitação de lotes situados em terras públicas toda vez que esses lotes estejam ocupados.

Assim, o julgamento da ADIn nº 2.990 revela-se de grande importância para a definição da possibilidade de a lei ordinária estabelecer, de forma específica, a inexigibilidade de licitação baseando-se na inviabilidade de competição: a Lei nº 9.262/96, julgada constitucional pelo STF, refere-se a imóveis específicos, sem ter o caráter de norma geral.

Em razão dos princípios federalistas estabelecidos na Constituição Federal em vigor, o precedente criado pela ADIn nº 2.990 é válido para as leis das outras entidades da Federação, quando versarem sobre seus imóveis: por uma questão de coerência, deverão ser reputadas constitucionais pelo STF quando estabelecerem que um imóvel ocupado, no contexto da regularização fundiária, possa ser alienado ao seu atual ocupante sem licitação, em razão da suposta “inviabilidade de competição”. Isso significa que uma lei estadual, distrital ou municipal poderá estabelecer a venda direta e sem licitação nessa situação!

Além disso, a orientação da ADIn nº 2.990 parece ser aplicável a quaisquer outras hipóteses em que se entender por inviável a competição: não há razão para que se diga que a inexigibilidade de licitação prevista no art. 25 da Lei nº 8.666/93 deva se restringir as hipóteses nele exemplificadas, ou, tal como visto no emblemático julgamento do STF, a imóveis ocupados no contexto da regularização fundiária. Assim, diversos outros tipos de contratos, que não de alienação de imóveis públicos, poderão ser celebrados sem licitação, mediante autorização em lei específica, toda vez que se verificar inviabilidade de competição.

O STF, portanto, sinalizou no sentido de que podem os legisladores locais dispor a respeito de hipóteses específicas de inexigibilidade de licitação em razão de impossibilidade de competição. Sob esse aspecto, o precedente criado na ADIn nº 2.990 é perigoso!

Porém, o mesmo STF deverá impor limites a esse poder, toda vez que considerar que foi abusiva uma tentativa de reputar como inexistente a possibilidade de competição, sob pena de esvaziar o disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, que estabelece a necessidade de licitação para contratos da Administração Pública.

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Notas

01 TJDF, Conselho Especial, ADI nº 20030020082318, j. 02/08/2005, DJU 14/03/2006.

02 STF, Pleno, ADI nº 1.300 – Medida Liminar, Rel. Min. Maurício Correia, j. em 20/9/95, DJ de 13/10/95.

03 STF, Pleno, ADI nº 651, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 8/8/2002, DJ de 20/09/2002.

04 Decisão monocrática do Relator Min. Maurício Correia publicada em DJ 13/09/2000.

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Bruno Mattos e Silva

advogado, consultor legislativo do Senado Federal

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