O STJ e a necessidade de meios para superação dos precedentes

Autores: Dierle Nunes e Marina Carvalho Freitas (*)

 

Em recente decisão monocrática proferida pelo ministro Luis Felipe Salomão no AREsp 1.170.332/SP, o STJ encampou mais uma vez o entendimento de que, contra decisão de inadmissibilidade de recurso excepcional que possua tese contrária a precedente firmado por tribunal superior, só seria cabível agravo interno (ao tribunal a quo) e, ainda, que contra a decisão final do tribunal de origem não seria cabível a apresentação de nenhuma outra irresignação dirigida ao STJ.

Nas palavras do ministro: “Na sistemática introduzida pelo art. 543-C do CPC/73, incumbe ao Tribunal de origem, com exclusividade e em caráter definitivo, proferir juízo de adequação do caso concreto ao precedente formado em repetitivo, não sendo possível daí em diante, a apresentação de qualquer outro recurso dirigido ao STJ […]”. Em linhas gerais, o que a referida decisão ocasionou foi a legitimação de um entendimento flagrantemente contrário ao sistema de precedentes idealizado pelo CPC/2015 e ao próprio processo constitucional democrático, como será demonstrado.

Esse entendimento remonta a período anterior ao novo CPC, no qual os padrões decisórios não eram dotados de força normativa (artigo 927, CPC/2015), na medida em que os pronunciamentos do STJ em recursos repetitivos cumpriam função prioritariamente persuasiva. No entanto, a partir do momento em que tais decisões passam a gerar obrigatoriedade de aplicação, os problemas dessa linha de raciocínio ferem de morte o devido processo constitucional e descumprem claramente o artigo 927, parágrafo 2º a 4º, CPC, na medida que se torna inviável a revisitação dos entendimentos dos tribunais superiores, dotando suas decisões de status superior ao das normas provenientes do parlamento.

Mesmo na época em que tal posicionamento se iniciou (2011), o saudoso ministro Teori Zavascki, em voto-vista decidiu no sentido de não acolher questão de ordem que consolidou tal posicionamento, ao ponderar que, “ao instituir o regime especial de julgamento de recursos especiais repetitivos, não criou restrição ao regime constitucional de cabimento de recursos ao STJ, nem modificou os requisitos legais de admissibilidade dos recursos sobre matéria idêntica”. Disse, ainda, que a tese defendida desse requisito negativo na questão de ordem chancelaria, indiretamente, o não cabimento do próprio recurso especial. Ou seja, “seria irrecorrível, para o STJ, o acórdão ou decisão do tribunal local cuja orientação coincidir com a do precedente do STJ”, sendo imutável tal precedente, o que não seria aceitável. Como pontuava:

[…] negando-se acesso ao STJ, em casos tais, o que se faz, na prática, é conferir aos precedentes julgados pelo regime do art. 543-C não apenas um efeito vinculante ultra partes, mas também um caráter de absoluta imutabilidade, eis que não subsistiria, no sistema processual, outro meio adequado para provocar eventual revisão do julgado. Essa deficiência não seria compatível com nosso sistema, nem com qualquer outro sistema de direito. Mesmo os sistemas que cultuam rigorosamente a força vinculante dos precedentes judiciais admitem iniciativas dos jurisdicionados tendentes a modificar a orientação anterior, especialmente em face de novos fundamentos jurídicos ou de novas circunstâncias de fato. É que a eficácia das decisões judiciais está necessariamente subordinada à cláusula rebus sic stantibus, comportando revisão sempre que houver modificação no estado de fato ou de direito.

Afirmou, por fim, que a proposta de substituir o recurso especial ou o agravo de instrumento pelo agravo interno no tribunal local poderia, na prática, apenas instituir um desvio para o próprio recurso especial a ser interposto contra a decisão proferida no julgamento do agravo interno.

O CPC/2015, em sua redação original, previa o fim do duplo juízo de admissibilidade aos recursos especiais e extraordinários, legitimando, assim, o acesso de todos eles aos tribunais superiores, uma vez que apenas esses passariam a ser competentes para a realização do juízo de admissibilidade. Porém, como é sabido, a Lei 13.256/2016, elaborada e aprovada às pressas pela pressão política exercida, principalmente, pela alta cúpula do Poder Judiciário, promoveu a alteração na redação original do CPC, retornando com o duplo juízo de admissibilidade aos recursos excepcionais e impondo à restrição delineada jurisprudencialmente.

Além de prever que esses recursos deverão passar inicialmente pelo crivo do presidente ou vice-presidente do tribunal a quo, a Lei 13.256/2016 estabeleceu que, contra a decisão de inadmissibilidade de recurso especial e extraordinário por contrariedade a precedente firmado em repercussão geral ou em recursos repetitivos (“recurso representativo de controvérsia”), o recurso cabível é o agravo interno ao próprio tribunal a quo (artigo 1.030, I, alíneas a e b c/c parágrafo 2°, CPC). Em reforço a isso, previu no artigo 1.042, caput, que o agravo em RE ou REsp, interposto contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir RE ou REsp, não é cabível quando a decisão se fundar na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos.

Em resumo, as alterações promovidas pela Lei 13.256/2016 serviram para inviabilizar o acesso ao STJ ou ao STF quando a temática objeto do REsp ou RE, respectivamente, já tiver sido analisada por essas cortes em sede de recursos repetitivos ou repercussão geral. Ou seja, o intuito é o de reforçar a força de tais julgados, agora guindados ao status de precedentes, impedindo-se que os tribunais superiores sejam “desnecessariamente incomodados” com matérias por eles já “pacificadas”. Porém, a consequência disso é que, ao mesmo tempo em que blinda as cortes superiores da rediscussão do que já decidiram, também as blindam de saudáveis e necessários diálogos que poderiam levar à superação dos precedentes por elas consolidados.

Duas técnicas são de essencial importância em um ordenamento que pretenda sistematizar precedentes: a distinção (distinguish) e a superação (overruling). Ao passo em que a distinção se refere à análise mediante contra-analogia das peculiaridades fáticas entre o caso a ser decidido e o caso paradigma, que se prestam a afastar o precedente e a conferir tratamento diferenciado ao que lhe foi dado, a superação se refere às modificações normativas ou sociais acerca da matéria, que impactam o próprio precedente formado, demandando a sua releitura por não mais se coadunar com a realidade jurídica ou social. Sendo assim, enquanto na distinção, o afastamento do precedente se dá apenas por se tratar de direito não aplicável ao caso concreto, de modo que a técnica possa ser aplicada por qualquer órgão julgador (ainda que de hierarquia inferior àquele que elaborou o precedente). Já na superação, por se tratar da “derrubada” de um precedente firmado, pode ser feita pelo parlamento (mediante alteração legislativa), pela própria corte que o proferiu ou por corte hierarquicamente superior.

Sendo assim, uma das principais preocupações dos juristas com a redação atual do CPC/2015 é que, na medida em que a Lei 13.256/2016 limitou a impugnação de decisões de inadmissibilidade do REs e REsps ao agravo interno, como seria possível promover a superação de precedente de tribunal superior se o acesso ao mesmo foi barrado (artigo 1.030)? E, não havendo previsão de recurso diretamente à corte superior, como será possibilitada a superação de seus precedentes?

Ao que parece, o CPC/2015 não previu expressamente meio de ataque específico contra a decisão do agravo interno, muito menos recurso que permitisse acesso direto ao tribunal superior. Nesse sentido, julgados como o que está sendo analisado nesse texto criam um pernicioso empecilho de acesso aos tribunais superiores, bem como impedem que tais cortes superem os precedentes por elas criados.

Ocorre que, em um ordenamento jurídico constitucionalizado, não se pode legitimar um sistema de precedentes no qual seja inviabilizada aos interessados, ao menos, a possibilidade técnica de superação de precedentes. Ademais, não se pode permitir que o Direito se torne estático e imutável, “na medida em que precisa acompanhar a evolução das relações sociais, os desenvolvimentos socioculturais e as novas ideias que vão surgir na sociedade”. Observa-se que o engessamento do Direito leva à mácula de um sistema normativo pensado para aprimorar o Direito e aproximá-lo do modelo constitucional de processo. Ou seja, ao passo em que um sistema de precedente deve almejar a formação de decisões do modo mais dialógico possível, o precedente não deve viabilizar um “dogma incontroverso que permite aplicação passiva e mecânica”.

Há algum tempo a literatura jurídica possui posicionamento flagrantemente contrário ao adotado no AREsp 1.170.332/SP, com o fito de construir meios para viabilizar o acesso às cortes superiores, promovendo o reexame dos padrões decisórios.

Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha sustentam o cabimento de reclamação contra a decisão que julga o agravo interno. O cabimento da reclamação para promoção da superação é medida apresentada e defendida também em dois julgados: a Rcl 4.374/PE e Rcl 25.078 AgR/SP, ambas do STF.

No entanto, como já se defendeu em outra sede, torna-se imperativa a aceitação de cabimento de novo RE ou REsp contra a decisão de não provimento do agravo interno, na seara da percepção do ministro Teori Zavascki em 2011, sendo tal técnica eficaz em garantir o acesso aos tribunais superiores e, consequentemente, garantir aos jurisdicionados o direito de suscitar argumentos para a superação dos precedentes, impedindo-se seu pernicioso engessamento.

O novo recurso especial deverá ser embasado em negativa de vigência e contrariedade ao disposto no artigo 927, parágrafos 2º a 4º (que prevê a superação), a ser pré-questionada no agravo interno interposto de modo a se evitar o engessamento do Direito, e de novo recurso extraordinário embasado na norma de seu cabimento (artigo 102, III, a).

Destarte, apesar dos diversos entendimentos doutrinários quanto ao meio cabível contra a decisão do agravo interno, o que importa salientar é que a doutrina é majoritária com relação à possibilidade de tal acesso. Ou seja, o que não pode ser de modo algum ser aceito é o entendimento, trazido no recente julgado, segundo o qual não haveria meio de ataque às decisões de agravo interno que visam destrancar recursos extraordinários, impedindo-se qualquer forma de superação de precedentes e acesso aos tribunais superiores. E é justamente a esse equivocado posicionamento que a decisão monocrática do AREsp 1.170.332/SP se filia. O que resta, agora, é reforçar a discussão na seara jurídica de modo a evitar que decisões como essa se estabilizem como um novo e odioso capítulo de jurisprudência defensiva.

 

 

 

Autores: Dierle Nunes  é sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia, doutor em Direito Processual e professor adjunto na PUC Minas e na UFMG. Integrou a Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do novo Código de Processo Civil, na Câmara dos Deputados.

Marina Carvalho Freitas é graduanda em Direito da UFMG.


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