O STJ e a questão da proteção autoral de obras arquitetônicas

Autor: Marcelo Frullani Lopes (*)

 

Uma empresa que comercializa tintas resolve utilizar a fachada de uma casa nas embalagens de seus produtos, com autorização do proprietário do imóvel; todavia, trata-se de obra arquitetônica protegida por direito autoral, sendo que a empresa não obteve autorização do autor para usá-la, nem mencionou seu nome. Nesse caso, há violação de direitos autorais (patrimoniais e morais)? No final do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça debruçou-se sobre essa questão no julgamento de um caso1, o que estimulou o debate sobre um tema bastante controverso, que é a proteção autoral de obra arquitetônica situada em logradouro público.

Um ponto discutido na ação diz respeito a quem pode autorizar a utilização da obra: o autor ou o proprietário atual da casa? Para se defender a segunda opção, deve-se considerar que o contrato celebrado entre o arquiteto e a parte que encomenda a obra levaria inevitavelmente à transmissão da titularidade sobre os direitos autorais. Esse não é o melhor caminho, pois não leva em consideração que a obra autoral não se confunde com seu suporte material. O artigo 37 da Lei 9.610/98 é claro ao dispor que “a aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos previstos nesta Lei”.

Não é incompatível com o ordenamento jurídico que um indivíduo seja proprietário do suporte material, mas não titular dos direitos autorais da obra fixada nele. O STJ, no caso estudado, decidiu exatamente nesse sentido, entendendo que apenas a autorização do proprietário do imóvel não é suficiente. A empresa de tintas foi condenada a indenizar o autor em danos materiais e morais, uma vez que também não citou o nome dele ao utilizar sua obra.

Ao tratar do tema da proteção autoral desse tipo de obra, José de Oliveira Ascensão afirma o seguinte, em trecho destacado pelo próprio relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, no acórdão:

(…) obra de arquitetura não é a construção na sua materialidade, mas a realidade incorpórea, encarnada ou não na construção. (…) No que respeita à obra de arquitetura, ela concretiza-se com a construção. Mas já existe antes desta, no estádio do projeto. (…) A construção é o modo típico de utilização duma obra arquitetônica. É uma modalidade de utilização da obra2.

Acolhendo a lição de ascensão, os ministros do STJ sustentam que, apesar de a obra protegida por direito autoral não ser a construção em si, existindo até mesmo antes desta, o imóvel é uma expressão da obra arquitetônica, assim como o projeto e o esboço. Dessa forma, a utilização de sua imagem, seja por meio de fotografia, desenho ou procedimento audiovisual, deve ser, em regra, autorizada pelo autor. Nesse sentido, a Lei 9.610/90 prevê o seguinte:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

(…)

X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência.

Não obstante a relevância das questões tratadas anteriormente, deve-se reconhecer que o dispositivo que causa maiores controvérsias no caso em questão é o artigo 48. Numa leitura apressada, esse dispositivo parece autorizar o uso da fotografia da casa na embalagem do produto, independentemente de autorização do titular dos direitos autorais, ao estipular que “as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”. Porém, não são poucas as discussões envolvendo esse texto.

Uma primeira controvérsia diz respeito à interpretação da expressão “logradouro público”. A casa em questão se encontra em terreno de propriedade privada, porém, a construção pode ser vista e fotografada na rua ou na calçada, ou seja, em locais públicos. O entendimento majoritário, acolhido pelo STJ, é no sentido de que mesmo uma obra situada em propriedade privada pode fazer parte do meio ambiente e da paisagem como um todo, devendo-se considerá-la situada em “logradouro público”, o que a encaixaria na hipótese prevista pelo artigo 48.

Mas não basta a obra estar em logradouro público para sua representação ser totalmente livre. Os ministros entendem que, na hipótese de haver finalidade lucrativa em sua utilização, deve-se adotar uma interpretação restritiva do artigo 48 da lei. Isto é, se estiver presente o escopo de lucro, restringe-se a interpretação do dispositivo, sendo permitida apenas a representação da paisagem; se não estiver presente, não se aplica essa interpretação, sendo livre a representação, seja exclusivamente da obra (é o caso de uma fotografia de um museu, por exemplo, para uso próprio), seja da paisagem em que a obra está inserida3.

O tribunal adota um entendimento consentâneo com a sistemática da Lei de Direitos Autorais, que em diversos pontos é mais restritiva para usos que visam o lucro do que para aqueles não que não têm esse escopo. Entretanto, essa dicotomia não é capaz de resolver todas as controvérsias que se impõem na discussão acerca do direito autoral sobre obras arquitetônicas. No caso apresentado, é evidente que a empresa de tintas se aproveitou da obra para deixar sua embalagem mais atraente, buscando chamar a atenção dos consumidores. Em outros exemplos, entretanto, a existência de abuso não é clara, o que põe em dúvida a utilização apenas do critério de finalidade lucrativa para se determinar a ocorrência de violação de direito autoral.

Tome-se como exemplo a polêmica envolvendo uma cena presente no filme Rio, I Love You. Em 2014, o diretor José Padilha pediu autorização da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que é titular dos direitos patrimoniais de autor sobre o Cristo Redentor, para utilizar a imagem da obra em uma cena do filme4, o que foi negado. Em nota, a arquidiocese alegou que não autorizou o uso, “pois considerou que as cenas produzidas atentariam contra a fé católica, caracterizando inclusive o crime de vilipêndio”5. Depois, em decorrência da pressão exercida por diversos setores, a entidade acabou voltando atrás; por isso, o caso não chegou ao Judiciário. Mas é importante levar em consideração suas peculiaridades, pois casos semelhantes podem surgir no futuro.

Nessa situação, o elemento da finalidade lucrativa não é suficiente para solucionarmos o litígio. O filme possui finalidade lucrativa, mas o contexto é claramente diverso do caso decidido pelo STJ. O monumento aparece em apenas uma cena, não sendo o objetivo principal do filme explorá-lo comercialmente, ao contrário do que ocorreu com a imagem da casa nas embalagens de tintas. Dessa forma, mesmo que o filme tenha escopo lucrativo, seria permitida a representação do monumento na hipótese citada, mesmo que de forma exclusiva, e não apenas como integrante da paisagem.

Portanto, na maior parte dos casos, o elemento da finalidade lucrativa será fundamental para considerar se houve abuso ou não na exploração de uma obra arquitetônica situada permanentemente em logradouro público. Contudo, nem sempre esse elemento é suficiente, pois existem situações nas quais outras peculiaridades podem alterar a resposta fornecida pelo sistema jurídico.

 

 

 

Autor: Marcelo Frullani Lopes é advogado graduado na USP, sócio do escritório Frullani Lopes Advogados e pós-graduando em Direito e Tecnologia da Informação na Escola Politécnica da USP.


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