O Supremo Tribunal Federal, células-tronco e o início da vida humana

Em 24/03/2005, o Congresso Nacional aprovou a Lei Federal 11.105/2005, também conhecida como Lei de Biossegurança, que, dentre outros aspectos, regulamentou a utilização das denominadas células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de pesquisa científica no país. Diz, in verbis, o art. 5º da mencionada lei:

Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de

congelamento.

§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art.15 da Lei no. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Inconformado, o então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), que recebeu o nº. 3.510. O Procurador baseia sua inconformidade nos seguintes argumentos:

a) “a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação”, desenvolvendo-se continuamente;

b) o zigoto, constituído por uma única célula, é um “ser humano embrionário”;

c) é no momento da fecundação que a mulher engravida, acolhendo o zigoto e lhe propiciando um ambiente próprio para o seu desenvolvimento;

d) a pesquisa com células-tronco adultas é, objetiva e certamente, mais promissora do que a pesquisa com células-tronco embrionárias.

Em sessão daquela Egrégia Corte realizada no último dia 05/03/2008, para o julgamento da ADIN, o atual Procurador-Geral da República, Antonio Fernando de Souza, e o advogado da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), Ives Gandra Martins, discursaram pela inconstitucionalidade da lei, defendendo que a Constituição garante o direito à vida e que o embrião já seria um ser vivo.

Segundo noticias veiculadas pelo “site” de noticias Folha Online (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u379054.shtml), o procurador teria reiterado que “há consistente convicção científica de que a vida humana acontece a partir da fecundação e o artigo 5º da Constituição garante a inviolabilidade da vida humana”.

Todavia, o Ministro Relator da ADIN, Min. Carlos Ayres Britto, em seu voto, posicionou-se pela Constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança (leia na íntegra o voto proferido no próprio “site” do STF, em http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/adi3510relator.pdf).

A agência de notícias do STF assim sumarizou o voto do Min. Britto:

Em seu voto, de quase duas horas de duração, o ministro qualificou como “perfeito” e “bem concatenado bloco normativo” o dispositivo questionado, ao lembrar que ele apresenta uma série de condicionantes para o aproveitamento das células-tronco embrionárias “in vitro”. Entre elas estão a que restringe o uso para pesquisa àquelas não aproveitadas para fins reprodutivos; àquelas que não tiverem viabilidade; àquelas que estejam congeladas por três anos ou mais; e àquelas que, congeladas, completarem três anos nesse estágio. Também mencionou a necessidade de consentimento do casal doador para realização de pesquisas científicas para tratamento de doenças; o exame de mérito pelos comitês de ética e pesquisa; e a vedação de sua comercialização.

Ayres Britto disse que a Constituição Federal, quando se refere a direitos e garantias constitucionais, fala do indivíduo pessoa, ser humano, já nascido, desconsiderando o estado de embrião e feto, mas a legislação infraconstitucional cuidou do direito do nascituro, do ser que está a caminho do nascimento.

O ministro sustentou, entretanto, a tese de que, para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano. Segundo ele, tem que haver a participação ativa da futura mãe. E o embrião não sobrevive no útero sem a mãe. Segundo ele, o zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado.

“O zigoto não pode antecipar-se à metamorfose”, observou. “Seria ir além de si mesmo para ser outro ser”. Ele citou como exemplo a relação entre a chuva e a planta, a crisálida e a lagarta. “Ninguém afirma que a semente já é planta ou que a crisálida é uma borboleta”, afirmou. “Não há pessoa humana embrionária, mas um embrião de pessoa humana. Esta, sim, recebe tutela constitucional, moral, biográfica, espiritual, é parte do todo social, medida de todas as coisas”.

Entende o Relator que a vida só começa após o nascimento. Segundo suas declarações, “Vida humana é o fenômeno que transcorre entre o nascimento e a morte cerebral. No embrião o que se tem é uma vida vegetativa que se antecipa ao cérebro”.

O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, que teria, a partir daquela data, 10 dias, prorrogáveis por até mais 20 dias, para analisar o processo e devolvê-lo ao Tribunal.

Apesar da interrupção, a Min. Ellen Gracie já antecipou seu voto, tendo acompanhado o do Relator. Segundo ela, “Não constato vício de inconstitucionalidade. Segundo acredito, o pré-embrião não acolhido no útero não se classifica como pessoa”.

Não restam dúvidas de que a decisão, qualquer que seja, terá reflexos não apenas na questão da utilização de células-tronco embrionárias, mas alcançará também a discussão de outros temas, particularmente o do aborto. O que ocorrerá nas próximas semanas é certamente ainda uma incógnita. As linhas que se seguem são um tentativa de elucidar alguns aspectos que julgamos interessantes e relevantes no processo e que, certamente, tem passado pela mente de todos aqueles que vêm acompanhando o debate.

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Quando realmente começa a vida humana?

A questão de quando tem início a vida humana, que se projeta sobre o debate em curso no STF, tem sido feita ao longo de toda a história da civilização. As respostas têm se mostrado extremamente mutáveis, alterando-se de acordo com o tempo e as características da sociedade, sendo fruto de suas crenças e valores.

Até mesmo a Igreja Católica, que hoje defende a sacralidade da vida humana desde sua concepção, durante a maior parte de sua história, ou seja, por cerca de 1800 anos, pouca atenção deu à questão. Em 1588, o Papa Sisto (ou Sixto) V condenou o aborto à excomunhão. Esta decisão, todavia, foi revogada pelo Papa Gregório XIV (1590-1591), retomando a Igreja à tradicional visão de que o aborto não era homicídio e, assim, não deveria ser penalizada de tal forma. Assim, se a Igreja não aprovava o aborto, pelo menos não o condenava. Somente com o Papa Pio IX (1846-1878), a questão foi retomada e a condenação pela excomunhão outra vez aplicada. Mencione-se que, ao que tudo indica, tal posição foi tomada muito mais pelo princípio da prevenção do que por uma definição clara do momento em que a alma era realmente recebida; ou seja, ao não se saber em que momento recebe o homem sua alma, melhor prevenir e protegê-la desde seu potencial início. De acordo com Shannon e Wolter (Shannon, Thomas A. and Wolter, Allan B. 1990. Reflections on the Moral Status of the Pre-Embryo. Theological Studies. Volume 51), a atual doutrina da Igreja Católica mantém a crença de que é no momento da fertilização, com a formação do zigoto, que uma nova vida humana tem lugar e recebe sua alma. Isto, como já afirmado, é todavia relativamente novo. Um feto não era considerado realmente uma pessoa e o aborto não era considerado homicídio pela Igreja Católica até o final do século XIX.

A literatura científica contém um conjunto bastante rico de informações que pode ser, e tem sido, utilizado para determinar o efetivo início da vida humana. Vejamos algumas delas.

a)Inicio da vida e ciclo vital

Um ciclo, como o próprio nome indica, é algo que se repete continuamente. Não tem assim nem início, nem fim. Tanto o espermatozóide quanto o óvulo são unidades de vida e sua fusão apenas a perpetua, ainda que com características distintas de cada uma delas individualmente. O que se forma é uma vida diferente, como são diferentes os indivíduos em cada uma das etapas da vida. Um embrião é diferente de uma criança, que é diferente de um adolescente, que é diferente de um adulto. Mas são todos componentes de um ciclo contínuo. Assim, nem a união dos gametas nem qualquer outra fase do ciclo pode ser denominada de início da vida. Esta questão, sob tal óptica, é na verdade irrelevante. A vida é um processo contínuo e qualquer um dos pontos utilizados para marcar suas fases, tais como o implante no útero ou o aparecimento de ondas eletroencefalográficas, são meras tentativas de categorizar os eventos e facilitar seu estudo, não tendo qualquer significado na definição do momento em que a vida realmente se inicia.

b)A fertilização

A fertilização é um dos eventos que tem sido mais utilizados para marcar o início da vida humana, particularmente aquele em que os cromossomos oriundos do óvulo e do espermatozóide colocam-se lado a lado (pareamento) e dão origem a uma célula dita diplóide, com características únicas.

O primeiro problema advém do fato de que a fertilização não é um momento, mas uma seqüência de eventos que pode durar várias horas (geralmente de 12 a 24 h). Assim, dizer que a vida começa na fertilização não resolve a questão, já que fertilização, ao contrário do que muitos acreditam, não é um único momento.

Um segundo problema advém do denominado “argumento dos gêmeos”. Após a formação do zigoto, por um período de até 2 semanas aproximadamente, as células que se formam seguindo a fertilização podem se separar formando gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos etc. Assim, até passar o período em que a formação de gêmeos seja possível, não se pode dizer que o zigoto existente seja um indivíduo; na realidade, o processo de individualização não se encerra até que a possibilidade da formação de gêmeos desapareça totalmente.

A questão, ao contrário do que possa parecer, não tem relação com a individualidade genética, pois cadáveres, tecidos isolados, órgãos para transplante etc. gozam de absoluta individualidade genética. Assim, não pode ser este o fato que determina o início da vida humana. Além disso, identidade genética pode ser compartilhada por vários indivíduos, como os gêmeos univitelinos, o que não os faz perder suas individualidades humanas.

c)A gastrulação

Depois da fertilização, a célula então formada começa a sofrer um conjunto de divisões, dando origem a um número crescente delas. À medida em que aumenta o número de células, também se inicia um processo de diferenciação, ou seja, as células passam a já não ser exatamente todas iguais. Depois de passadas cerca de 2 semanas, as células podem ser divididas em duas grandes categorias, ectoderma e endoderma, seguindo-se a formação de uma terceira, o mesoderma. Tais grupos de células são denominados de folhetos embrionários. São estes folhetos que darão origem aos diferentes tecidos do corpo humano, tais como músculos, pele, tecido nervoso etc. É também por volta desta fase que o embrião se fixa no útero materno.

Para vários pesquisadores, é apenas nesta fase, após passado o período de possível formação de gêmeos, que a verdadeira individualidade do embrião se apresenta. As propriedades básicas que governarão o embrião e conduzirão à formação de seus distintos órgãos e tecidos não estão presentes até esta fase e, apenas durante ela, perdem as células presentes a capacidade de gerar novos indivíduos. Assim, é apenas durante esta fase que se completa a “individualização”. Temos aqui, sem dúvida, um novo indivíduo.

Há quem argumente, não sem certa razão, que a questão mais importante não é ser ou não ser um indivíduo do ponto de vista biológico. Gêmeos univitelinos, como já mencionamos, não são indivíduos do ponto de vista genético, são clones naturais verdadeiros, mas cada um tem uma personalidade e humanidade únicas. A questão, assim, é ser ou não ser humano, o que abordaremos mais adiante.

c. O EEG

Durante o desenvolvimento embrionário, por volta de 24-27 semanas após a fertilização, já se é capaz de registrar pela primeiras vez um eletroencefalograma (EEG) do embrião, o que significa a inquestionável existência de um sistema nervoso funcional (ainda que não necessariamente completo).

É de conhecimento geral que, modernamente, tem se utilizado a morte cerebral, determinada pelo EEG, como critério de morte, permitindo assim a retirada inclusive de tecidos vivos para transplantes.

O argumento aqui, portanto, é bastante simples. Se o EEG é utilizado como critério de vida e morte no adulto, também deveria ser empregado no embrião, ou seja, até que surjam efetivamente as ondas cerebrais, tal embrião esta destituído da verdadeira vida humana.

Existem diversos outros critérios e momentos no desenvolvimento embrionário que poderiam ser utilizados para demarcar o início da vida humana, tais como o início dos batimentos cardíacos (a parada cardíaca foi por longo tempo utilizada como critério de morte), ou o surgimento dos primeiros circuitos neuronais. O problema central, todavia, permanece, qual seja: são todos pontos arbitrários num ciclo contínuo de desenvolvimento. A verdade, porém, é uma só: do ponto de vista prático, a vida humana terá início no ponto em que a sociedade assim o decidir; sua interrupção, prematura ou não, poderá ser efetuada quando e como esta sociedade desejar. Não há efetivamente critérios científicos que permitam determiná-lo e, por uma única razão: ele não existe.

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O que é vida humana?

O que significa ser humano? Este nos parece um aspecto central do problema. Quando é que um “embrião de ser humano”, para utilizar as palavras do Min. Ayres Britto, adquire sua humanidade?

Será que ser “humano” significa apenas ter cromossomos ou DNA humano? Ou pertencer a espécie humana?

Claramente que não. Se assim o for, temos que rever nossas posições quanto a possibilidade de congelamento de tecidos, ou de manter células em cultura; afinal, todos têm cromossomos e DNA humanos. Todos pertencem à espécie humana. Pertencer à espécie humana não é a única condição necessária para que alguém seja realmente dotado de humanidade.

Quando nos referimos a “humano”, vamos além de características biológicas. É aí que, do meu ponto de vista particular, reside o maior problema deste debate. Querer derivar princípios morais, ou definir direitos, a partir de características biológicas pode conduzir à distorções inaceitáveis. Assim como eu posso usar o momento da fertilização, da gastrulação, do aparecimento do EEG ou o nascimento (como o faz o Min. Ayres Britto) para determinar quem tem ou não “vida humana”, outros podem empregar a cor da pele (ou dos cabelos), o tamanho da orelha, ou a habilidade de tocar um instrumento musical para conceder ou negar direitos individuais. A concessão de direitos, particularmente direitos morais, deve, portanto, assentar-se sobre outras bases, quer dizer, sobre bases morais.

Por que então seria errado matar um ser humano? Em primeiro lugar, devemos lembrar que matar um ser humano, do ponto de vista moral, e mesmo legal, pode não ser errado. A própria legislação brasileira prevê situações em que matar alguém pode ser perfeitamente justificável, tais como a legítima defesa ou o estado de necessidade. Assim, não se pode, de forma irrestrita, dizer que é errado matar outro ser humano, pois existem situações em que a própria sociedade considera tal ato perfeitamente justificável.

Por outro lado, se não tivéssemos qualquer motivo para matar a não ser o desejo de fazê-lo, então isto seria evidentemente considerado errado. É errado matar outro ser humano para a pura gratificação daquele que mata, ou por motivos considerados fúteis e injustificáveis pelo conjunto da sociedade.

Porém, se existirem motivos que justifiquem a morte causada, tais como a legítima defesa ou o estado de necessidade, então a ética se modifica.

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Conclusões

Portanto, parece-nos equivocado o foco da questão, assim como tem sido colocada no debate que se trava no seio do STF e da sociedade brasileiras, acerca do momento em que se inicia a vida humana, e se é possível utilizar embriões inviáveis congelados para obtenção de células-tronco para fins terapêuticos e de pesquisa científica. É como uma verdadeira cortina de fumaça. A questão nos parece, sob este ponto de vista, muito mais simples, qual seja: se a sociedade brasileira julgar justificável utilizar embriões congelados para obtenção de células-tronco embrionárias tal como previsto na lei, assim como considerou justificável matar outro ser humano em legítima defesa, por exemplo, então não há qualquer impedimento moral em que isto assim o seja. Por outro lado, se a sociedade considerar injustificável tal utilização, assim como considera o estabelecimento da pena de morte em nosso país, então necessário que se declare a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança. É evidente que isto não pode ser feito sem profundas reflexões acerca do impacto e conseqüências destas medidas, sem que se reflita sobre todo o conjunto de crenças e valores que permeiam a sociedade. Contudo, do ponto de vista pragmático, a situação é clara: será como desejarmos que seja.

A biologia pode esclarecer aspectos importantes da questão, mas não pode resolvê-la. A solução está dentro de cada um de nós, em nossos conceitos de certo ou errado, justo ou injusto, moral ou imoral. Tais aspectos são individuais e incorruptíveis, são frutos de nossas crenças e vivências; em resumo, daquilo que efetivamente somos.

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Euclydes Antônio dos Santos Filho
professor titular de Fisiologia da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, advogado em Rio Grande (RS)

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