O SUS não é um mercado de medicamentos e tecnologias

Autor: Lenir Santos (*)

 

O contínuo crescimento da judicialização da saúde — que chegou no ano passado, segundo o Relatório de Justiça (CNJ, 2016), a mais de 800 mil ações, com inúmeras decisões que incorporaram de modo individual tecnologias em saúde, sem os regramentos da Lei 12.401, de 2011, do Decreto 7.646, de 2011, e da Lei 6.360, de 1976 — requer que sejam ampliadas as reflexões para se evitar que o SUS seja atuado como se fora um shopping de medicamentos e tecnologias, de livre escolha, ao arrepio de seus regramentos.

De acordo com dados do Ministério da Saúde veiculados pela mídia, chegam a R$ 7 bilhões os gastos com procedimentos, tecnologias e medicamentos decorrentes de decisão judicial, muitas afastadas dos parâmetros públicos que fixam um rol de medicamentos e procedimentos pelas Relação Nacional de Medicamentos (Rename) e Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases) e outras regras administrativas. Sob a intenção de tornar efetivo o direito à saúde, ele poderá ser mitigado.

As tecnologias, os serviços de apoio diagnósticos e os medicamentos são variados, ainda que muitos se destinem ao mesmo fim; protocolos de concepção científica divergentes, como a periodicidade de determinados exames preventivos, podem se alterar de acordo com a corrente técnico-científica. Tudo isso se movendo num cipoal de medicamentos, produtos, tecnologias, interesses de mercado, lucro e outros, passando ao largo de normas que exigem incorporação fundada em prévias análises técnico-científicas e protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, determinantes para os profissionais de saúde do SUS. O sistema público de saúde não permite livres escolhas, e a administração pública não pode prescindir de seus princípios, diretrizes, normas e organização.

Como os medicamentos registrados podem ter destinação terapêutica semelhante, no setor privado fica ao arbítrio do usuário e do médico o seu uso e prescrição. Em se tratando de farmacoterapia fornecida pelo sistema público de saúde, dependerá de decisão do Ministério da Saúde a sua incorporação, cabendo ao médico prescritor, servidor público ou com vínculo com o setor privado que atua de forma complementar ao SUS, prescrever o medicamento em acordo ao rol público.

No serviço público, o princípio da legalidade, economicidade, razoabilidade (artigo 37 da CF) e outros são imperativos, sendo o formalismo medida de segurança dos atos administrativos que não podem ficar ao livre arbítrio do agente público. A vontade administrativa somente pode produzir efeito quando observa a forma prescrita. Decisões administrativas não podem ser tomadas sob o enfoque particularizado, devendo ter como medida a amplitude do atendimento do interesse público, mesmo quando aparentemente repercutem em âmbito restrito. A presunção de legitimidade do ato administrativo depende do cumprimento de requisitos formais, por isso não há como garantir a mesma liberdade que se garante ao setor privado.

O Brasil, como quase todos os países da União Europeia, adota o sistema de não incorporação imediata de medicamentos, produtos e tecnologias da saúde registrados pelo órgão sanitário; uma segunda fase tratará da sua incorporação no rol público de ações, serviços, produtos e medicamentos. Na Espanha, a incorporação passa por um processo de negociação de preço logo após o seu registro nos órgãos da União Europeia. Poder público e fabricante discutem o preço antes de sua incorporação. Não havendo acordo, é livre a circulação no mercado, sem, contudo, integrar o rol de ações, bens e serviços públicos. O registro de medicamento e tecnologia requer, para ser incorporado no nosso país, atuação da Conitec.

Para garantir a segurança do seu uso, a Anvisa procede ao seu exame para fins de registro, à luz de sua eficácia, segurança e boas práticas de fabricação reguladas pelas lei 6.360, de 1976, e 9.782, de 1999, que proíbem a circulação de medicamento, produto e tecnologias no território nacional sem registro ou autorização.

Por sua vez, a Conitec, órgão que integra a estrutura do Ministério da Saúde, com a atribuição de assessoramento quanto à incorporação, inclusão e exclusão de tecnologias que o SUS irá dispor à população, verifica aspectos que não os da Anvisa, sendo sua atribuição emitir relatórios sobre as evidências científicas e seu custo-benefício em relação a outras tecnologias já existentes e ainda o seu impacto orçamentário e os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas. Não cabe à Anvisa as análises que competem à Conitec, ou seja, a evidência científica e o custo-benefício, que somente atua para o SUS.

A Conitec aprecia dois aspectos fundamentais que devem ser tomados como standards para todos, emitindo relatório conclusivo quanto às evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, efetividade, segurança e a avaliação econômica comparativa dos benefícios e custos em relação a tecnologias já incorporadas (artigo 19-Q, Lei 12.401). O Ministério da Saúde, pelo seu órgão competente, declara, por portaria, incorporada a tecnologia ou o medicamento.

O ativismo judicial e alguns atos do Poder Legislativo mais recentes, por não considerar as competências da Anvisa e as da Conitec, têm afetado tanto a organização do SUS quanto a segurança das pessoas. Recentemente, o Poder Legislativo editou a Lei 13.269, de 2016, determinando a concessão, aos pacientes com câncer, do medicamento fosfoetanolamina, que não foi registrado pela Anvisa. A referida lei foi atacada pela ADI 5.501, de 2016, cuja eficácia foi suspensa por medida liminar por entender o STF que a não exigibilidade do registro sanitário discrepa das balizas constitucionais de proteção da saúde.

No dizer do relator, ministro Marco Aurélio Mello, “o direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano”. Havendo, no seu entendimento, ofensa à separação dos Poderes. O ministro salienta que a aprovação do produto pela agência é condição para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais, segundo o artigo 12 da Lei 6.360/1976. A edição da recente Lei 13.454, de 2017, que autorizou a comercialização no país de medicamentos contendo substâncias moderadoras do apetite, proibidas pela Anvisa, está na mesma linha de invasão de competência e quebra da independência dos Poderes.

Há também algumas decisões do Judiciário que não reconhecem os contornos jurídicos da integralidade da assistência à saúde, como: a) os recursos orçamentários planejados e aprovados pelo órgão público competente (Estado) e pelo conselho de saúde respectivo (participação social); b) os planos de saúde quadrienal e a programação geral anual das ações e serviços de saúde, também aprovadas pelo conselho de saúde; c) os consensos interfederativos definidos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), conforme a Lei 12.466, de 2011; d) as incorporações de tecnológicas em saúde examinadas pela Conitec e aprovadas pelo Ministério da Saúde e seus protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

Poderia se argumentar que, pela via orçamentária e da incorporação de tecnologias, o direito à saúde pode ser asfixiado. Contudo o mau uso dos institutos não lhe negam o mérito. A questão é que o subfinanciamento da saúde, ponto nevrálgico nas inadequações dos serviços às necessidades da população, não tem sido enfrentado com suficiência, sendo temas distintos, devem ser tratados de forma distinta.

A única vez em que o financiamento foi investigado sucedeu quando da representação feita pela sociedade ao então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, em 1994, que determinou a abertura de inquérito civil público para apurar a insuficiência do financiamento federal e os repasses das áreas econômicas do governo federal à saúde.

Admitir que a integralidade da assistência à saúde tem limites e contornos é uma forma de não sucumbir ao mercado e a outros interesses econômicos e preferências médicas, dotando o sistema de racionalidade, parâmetros assistenciais e balizas que primem pela igualdade de atendimento, qualidade e racionalidade do gasto.

Nos parece que algumas medidas adotadas com as melhores intenções talvez possam estar deslocando o centro da causa da judicialização e minimizando competências de órgãos do Poder Executivo, como é o caso do banco de dados sobre evidências científicas. O acordo celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde, visando à criação de um banco de pareceres técnico-científicos para acesso dos magistrados sobre evidências científicas de medicamentos e tecnologias em litígio, pode propiciar uma inversão de papéis, por ser da Conitec essa responsabilidade.

Melhor, talvez, seria prestigiar e mais qualificar a Conitec para oferecer prontas respostas ao Poder Judiciário em suas necessidades, aprofundando o debate sobre os motivos da não incorporação de tecnologias, ao invés de deslocar para o magistrado essa pesquisa. Nos parece que essa medida já admite, de plano, que o juiz poderá incorporar, de modo individual, medicamentos e tecnologias para além das listagens públicas pactuadas entre os gestores, quando a discussão com a Conitec seria mais conveniente para se entender os motivos da não incorporação e assim decidir o caso individual ou até fazer com que a Conitec mude o entendimento.

Vivemos em uma sociedade econômica, capitalista, onde o lucro é o fim último, acima do interesse público. Se o capitalismo fosse humanitário, não precisaria de regulação. É preciso, pois, analisar o custo-benefício de drogas e tecnologias que concorrem no mercado. A maioria dos novos medicamentos comercializados é de modificações dos existentes com supostas vantagens que em muitos casos não resistem a estudos farmaeconômicos comparativo com os existentes, conforme Antonio Iñesta.

A saúde exige, dada a sua relevância constitucional, mecanismos de controle público, como é o caso da Conitec. Incorporar no serviço público todos os medicamentos registrados seria o mesmo que transformar esses serviços num mercado livre, criando oportunidades de o fabricante concorrer com diversos produtos de igual efeito e diferentes preços, ao sabor de preferências pessoais, transformando a garantia de um direito na garantia de desejos. O SUS não é um shopping da saúde onde a livre escolha é sustentada por quem a escolheu, tampouco uma feira de tecnologias ao sabor de preferências tecnológicas, e sim um serviço de proteção à saúde de acesso universal, que tem alto e incessantes custos e baixo financiamento, exigindo racionalidade, eficiência nos gastos e evidências científicas.

É obrigação do administrador público observar o princípio da legalidade, economicidade e razoabilidade para que todos tenham as mesmas oportunidades, viabilizando-se assim serviços públicos de modo igualitário, resultantes de criteriosas análises e estudos. Direitos coletivos somente se viabilizam se a administração pública for sistêmica, regrada e igualitária.

A natureza pública da saúde a torna mais regulada, e, mesmo quando atuada pelo particular, o poder de intervenção estatal é mais amplo. A sua relevância pública a sujeita à regulamentação, fiscalização e controle (artigo 197 da Constituição), não lhe permitindo ser tratada como se fora uma padaria.

Não sejamos ingênuos nem vamos nos iludir: garantir tudo a todos significaria que o poder público abdicou de suas responsabilidades de regular o mercado, de proteger o serviço público, de racionalizar os gastos, de impor regras à ganância, de garantir transparência e razoabilidade nas escolhas. Aceitar que escolhas que competem ao poder público sejam feitas pelo mercado de modo indireto é aceitar a apropriação do mercado sobre o interesse público.

Um Estado justo é aquele que distribui as coisas que prezamos, no dizer de Sandel — riquezas, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honras de maneira certa, ou seja, dando a cada pessoa aquilo que ela merece, sem contabilizar as preferências por ser necessário considerar todos de modo igual.

Para que isso aconteça num sistema de saúde público, deve-se adotar o maior rol possível de serviços, produtos, insumos, medicamentos, tecnologias que possam ser distribuídos de maneira certa para garantir as necessidades de saúde com igualdade. Torna-se imperioso depurar o sistema de interesses de mercado, preferências pessoais, corporativismo profissional, mero conforto pessoal e outros desejos e elementos que possam embaçar o sentido de justiça e impedir de se fazer a coisa certa.

 

 

 

 

Autor: Lenir Santos   é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em saúde pública pela Unicamp e coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário do Idisa-Sírio Libanês.


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