O temerário uso da ata notarial para a formação de provas digitais

Autor: Victor Hugo Pereira Gonçalves (*)

 

A ata notarial, instrumento público pelo qual tabeliães e prepostos dão, a pedido de alguém, credibilidade jurídica e fé pública a fatos ou acontecimentos, é, frequentemente, lavrada ao gosto do freguês e sem o necessário zelo com a veracidade dos fatos. O fato é amplamente conhecido por advogados, e, portanto, surpreende sua aceitação como documento com força probante e relevância jurídica. Porém, mais temerário ainda é a corrente falta de questionamento quanto a seu uso no caso de documentos eletrônicos, cuja comprovação da veracidade demanda preparo técnico e infraestrutura inexistentes nos cartórios brasileiros.

Atas notariais sempre tiveram consideração probatória e aceitação cega pelos juízes. O fato de terem sido lavradas por um tabelião se enquadra na tradição luso-brasileira e mantém distância das exigências da construção da verdade em processos judiciais. Tal situação foi ampliada exponencialmente com a Lei 11.419/2006, que possibilitou a informatização de processos judiciais no país.

Não houve, no entanto, a adoção de controles e procedimentos de segurança para a formação desse tipo de documento. E foi nesse contexto que o Código de Processo Civil de 2015, diferentemente de seu antecessor, de 1973, trouxe a ata notarial para o capítulo das provas, ampliando-se ainda mais o seu status de prova judicial, no artigo 384.

Tal inserção causou surpresa, tanto em termos jurídicos quanto tecnológicos. Era esperado que, com o novo CPC, a falta de segurança jurídica na formação das atas notariais em papel fosse enfrentada. Não o foi. O legislador, de forma temerária, reafirmou o procedimento histórico da ata notarial e incluiu os arquivos eletrônicos dentro do rol de possibilidades de realização desse documento. Sete anos após a adoção das tecnologias de informação e comunicação para os procedimentos judiciais, novas falhas, relativas à segurança da informação dessa prática cartorial brasileira, somam-se às antigas.

Sem entrar no mérito das possibilidades de adulteração da ata notarial em papel, no caso do digital, é necessário atentar para requisitos de segurança de informação, de procedimentos de validação e garantia de autenticidade de documentos digitais. Porém, quais cartórios possuem política de segurança de informação? Algum tabelião dá garantias tecnológicas? Há procedimentos para a realização das atas notariais? Entre outros, não deveria haver intervenção humana na inserção dos arquivos eletrônicos. E há sempre. Sem essas garantias, não há como atribuir força probante às atas notariais.

A produção de provas a partir de documentos digitais demanda procedimentos de proteção auditáveis. É preciso identificar, por exemplo, em que dia e hora um documento digital foi produzido e dar a garantia de sua inviolabilidade após sua produção, o que se obtém com a detecção do hash de segurança, algoritmo único que cada documento eletrônico detém.

Nada disso é observado na produção de provas por meio da ata notarial, que não atende às regras internacionais de segurança da informação nem à Norma ABNT NBR ISSO/IEC 27002:2005, que institui práticas para a gestão de segurança da informação.

A ata notarial não resguarda a proteção do documento digital nem na sua formação nem após. Não há controles de verificação de integridade nem de autenticidade. Mesmo assim, o artigo 405 do CPC determina que o “documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença”.

Ao se excluir a possibilidade de má-fé na formação do documento público digital, surgem outros problemas capazes de destituir a ata notarial de total confiabilidade. Teria o tabelião capacidade para avaliar o que ocorre em termos tecnológicos em um site? É apto a atestar como verdadeiro o conteúdo que ocorre em sua presença? E se um hacker invadiu o computador do cartório e forjou aquela página? Será auditável a formação daquele documento digital?

Enfim, o legislador do CPC reforça o erro de alçar a ata notarial como documento e dar à palavra dos cartorários o poder da integridade, confiabilidade, confidencialidade e autenticidade que necessitaria um documento digital.

Curiosamente, uma antítese do artigo 384 é encontrada no artigo 407 do CPC: o documento feito por “oficial público incompetente ou sem a observância das formalidades legais, sendo subscrito pelas partes, tem a mesma eficácia probatória do documento particular”. A ata notarial não segue nenhuma formalidade legal de criação de documento digital. Nenhuma norma ISO ou da ABNT.

A ata notarial não respeita a norma do artigo 39, inciso VIII, do CDC, que veta “colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas especificas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro)”.

Portanto, dedutivamente, a ata notarial não tem força probante de documento público, apenas a de um documento particular que, como tal, goza de pouca confiabilidade, o que inviabiliza o escopo processual de busca e construção da verdade material.

 

 

 

Autor: Victor Hugo Pereira Gonçalves é sócio do escritório Pereira Gonçalves Advogados Associados, professor, mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutorando pela Faculdade de Direito da USP.


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