Autor: Guilherme Carvalho e Sousa (*)
A temática envolvendo problemas relacionados às empresas estatais não é das mais recentes; malgrado sua longevidade, nunca padece de obsolescência, em especial porque, ainda no ano de 2016, foi publicada no Brasil a Lei 13.303, que dispõe sobre o estatuto jurídico das empresas públicas, das sociedades de economia mista e de suas subsidiárias.
Apesar do conteúdo alvissareiro em vários de seus pontos, a mencionada lei insistiu na, talvez, maior problemática pertinente às empresas públicas e sociedades de economia mista, não diferenciando as que exploram atividade econômica das que prestam serviço público. Dito de outro modo, a Lei de Estatais não cuidou de resolver a separação que a própria Constituição Federal criou, por meio de seus artigos 173 e 175. De tal modo, alguns problemas ganham maior proeminência quando se trata de estatais exploradoras de atividade econômica.
O presente artigo não se destina, contudo, a abordar o teto salarial constitucional em relação a todas as estatais, porquanto, como se verá, o enfrentamento é bem mais dificultoso no que se refere às estatais que exploram atividade econômica. Antes de qualquer questionamento, contudo, faz-se necessário entender os motivos pelos quais se criam empresas estatais.
A criação de empresas estatais ocorreu como um fenômeno máximo de intervenção do Estado na economia ao longo do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Já nos momentos mais pujantes dessa intervenção, logo no início da década de 1950, alguns doutrinadores questionavam se essa intervenção crescente do Estado na atividade econômica, por meio do grande desenvolvimento das chamadas empresas públicas, seria, em verdade, um fato orientado pela lógica do processo histórico em que se vivia ou se seria um desvio exorbitante e exagerado desse mesmo processo.
O fenômeno ali ocorrente até tinha razão de ser, sobretudo pela necessidade de os países europeus, abalados pela Segunda Guerra Mundial, reavivarem suas economias. Naquele instante, os países desenvolvidos concordaram que o sistema econômico liberal internacional requeria o intervencionismo do governo, impulsionados que foram, dentre outros fatores, pelas contribuições teóricas da escola econômica keynesiana.
Mas tão alargadas foram as formas de intervenção do Estado, em funções que não lhe são necessariamente próprias, que a crise quanto à existência dessas empresas, maiormente quanto às que exploram atividade econômica, passa a se instalar, gerando, a partir do fim da década de 1970, um crescente movimento, em todo o mundo, de privatização.
Fazia sentido, à época, a relevada criação. Entretanto, a realidade mudou e tais empresas necessitam, concomitantemente, manter-se no mercado, em regime concorrencial, e se submeterem a uma ordem mais estanque do ente (político) que as criou. Este é o ponto nevrálgico em relação às estatais que exploram atividade econômica, porquanto, ao tempo em que são empresas em mãos públicas, cujo controle estatal é evidente, também se dirigem aos auspícios do mercado. E aqui entra, certamente, um ponto dos mais relevantes: o valor da remuneração de seus agentes.
Como se faz possível conciliar a remuneração nas estatais exploradoras de atividade econômica com as práticas do mercado? Estão seus agentes submetidos ao chamado teto constitucional previsto no artigo 37, XI, da Constituição Federal? Eis a problemática que envolve o tema.
O artigo 37, XI, aborda o conhecido teto constitucional, pelo qual o legislador constituinte (inclusive com a reforma dada pela Emenda Constitucional 41, de 2003) reconhece uma limitação aos valores que podem ser recebidos pelos agentes públicos. A Constituição, todavia, não submete a esse limite os agentes públicos que são empregados de empresas estatais, a menos que estas (empresas públicas, sociedades de economias mista e suas subsidiárias) recebam da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios recursos para pagamento das despesas com pessoal e do custeio em geral (regra constante no parágrafo 9º do artigo 37 da CF).
Destaque-se, todavia, que a redação originária da Constituição Federal possibilitava uma interpretação mais ampla, haja vista a inexistência do parágrafo 9º, tanto que o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI-MC 1.033/DF, assentou que o teto do artigo 37, XI estendia-se às empresas estatais.
Quanto à administração direta, autárquica e fundacional, não há qualquer problema no que pertine à fixação do teto, residindo a problemática apenas no que se relaciona às empresas estatais. E, quanto a estas, o presente artigo, como já afirmado, destina-se a abordar as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica e apenas no que pertine ao valor da remuneração de quem ocupa cargo de direção nas empresas estatais. Esse não é o único problema a ser enfrentado; é um deles, mas, talvez, um dos de maior proeminência. Já se adiantou aqui que as estatais, sobretudo as que exploram atividade econômica, sofrem da chamada “síndrome da porta giratória”, pois ora se dedicam às práticas do mercado, como decorrência de sua atuação natural, ora se submetem aos rigorismos do poder público, sobretudo quanto ao controle e formas de atuação.
Como conciliar a realidade da administração pública e as práticas de mercado, viabilizando-se a cooptação de profissionais de relevo em suas respectivas áreas, com salários distorcidos dos valores usualmente pagos pela iniciativa privada? Pense-se no exemplo de um diretor de um banco público, que, de regra, se submetido ao teto aplicado pela Constituição Federal, receberia não mais que o valor que é pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Como é cediço, o mesmo cargo, em um banco particular, remunera algumas vezes mais.
De se notar que a empresa estatal que explora atividade econômica existe no mercado — e tem de nele se manter — exercendo práticas concorrenciais, tanto que assim é delimitado pela própria Constituição Federal em seu artigo 173. Essa é a lógica a ser enfrentada. Os melhores do mercado buscarão sempre melhores salários e melhores benefícios. Qual seria então o atrativo a ser mantido por uma empresa pública ou sociedade de economia mista acaso esteja proibida de pagar valores elevados (valores de mercado) a seus principais dirigentes? Veja-se que a lógica é diversa da contida para a administração direta, autárquica e fundacional, eis que, aqui, os agentes públicos gozam de estabilidade, vantajosidade que não é extensível ao setor privado.
Nada obstante todas essas exposições, tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição 58, de 2016, que altera a redação do parágrafo 9º do artigo 37 da Constituição Federal para submeter a remuneração paga por empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias aos limites constitucionais impostos à administração pública direta.
A despeito de a PEC 58/2016, acima mencionada, ainda não haver sido aprovada, alguns estados da federação já impuseram esse limite, como se pode observar, por exemplo, no Distrito Federal. É que a Emenda à Lei Orgânica 99, de 2017, alterou o artigo 19, parágrafo 5º, da Lei Orgânica do Distrito Federal para fixar o teto remuneratório em todas as empresas estatais e suas subsidiárias. Publicada no Diário Oficial do Distrito Federal nº 99, de 25/5/2017, a alteração passou a vigorar em agosto de 2017, 90 dias após a publicação. Em outras palavras, no Distrito Federal já existe aplicação do teto constitucional às empresas estatais, sejam prestadoras de serviço público, sejam exploradoras de atividade econômica.
O tema, decerto, não é dos mais fáceis de ser enfrentado. Não se ignoram os exorbitantes salários pagos em algumas estatais e em seus conselhos em várias unidades federativas, o que acabou se tornando uma moeda política forte, abrigando políticos sem mandato, ou até mesmo o séquito de “amigos do rei”. Assim sendo, é obviamente inadmissível concordar com esses desvios cometidos no âmbito da administração pública.
Todavia, a se instalar a limitação pretendida — que já existe em alguns entes da federação —, impondo-se um valor máximo de pagamento para os empregados de empresas estatais que exploram atividade econômica, perderá a administração pública, na medida em que não terá meios para atrair os mais capacitados para suas empresas, as quais, por sua vez, seguirão competindo, agora em desigualdade, com a iniciativa privada.
Daí surge a inquirição: como conciliar esse problema? A resposta não é fácil e esbarra em um círculo vicioso, na chamada “síndrome da porta giratória”, aparecendo como a possível solução a extinção da própria causa: a existência da estatal, investigando se os motivos para sua criação subsistem e se é necessário e razoável mantê-la. Eis aqui o desfecho? Tema a se pensar.
Autor: Guilherme Carvalho e Sousa é advogado, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, vice-presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA) e ex-procurador de Estado.