O tráfico de entorpecentes, o plantio de coca e as mentiras.

Osório Barbosa*

Por que quem sempre conta um conto sempre aumenta, diminui ou omite um ponto? A tal luta contra o narcotráfico, sempre necessária, é um desses contos onde, no mínimo, se omite vários pontos. Trabalhei alguns anos como procurador da República na Amazônia (Roraima, Amazonas e Acre), tendo obtido, junto à Polícia Federal, os seguintes dados (1998):

“Plantios de coca: 215.000 hectares.

Tendo-se por base que cada hectare produz aproximadamente 1000 kg de folhas por safra, podendo ocorrer até quatro colheitas anuais (…), estima-se um potencial mínimo de 600.000.000 kg de folhas de coca produzidas anualmente.

Em média, cada 120 kg de folhas de coca produz 1 kg de pasta de coca, havendo desta forma uma produção estimada de 5.000.000 kg de pasta de coca.

Com 2 kg de pasta de coca, alcança-se 1 kg de pasta-base de cocaína (PBC), também conhecida como pasta oxidada ou pasta lavada, o que demonstra uma produção potencial de 2.500.000 kg de PBC.

Com 1.2 kg de Pasta – Base de Cocaína, se obtém 1 kg de cloridrato de cocaína com 90% de teor de pureza em média, o que determina uma produção anual de cerca de 2.000.000 kg de cloridrato de cocaína (90%).

Há que se ter em consideração que os componentes residuais dos produtos químicos utilizados no processo de refino da cocaína, quando lançados nos ambientes aquáticos, causam danos irreparáveis, podendo ter (e têm) conseqüências irreversíveis sobre a biologia dos “habitat” atingidos.

Os principais produtos químicos utilizados no refino da cocaína, tais como éter, acetona, acido sulfúrico, ácido muriático, hidróxido de sódio, derivados benzênicos e outros, hidrosolúveis ou hidrocarbonetos, promovem modificações químicas na água, deletérias aos ecossistemas aquáticos.

A Amazônia é a maior bacia fluvial do planeta, sendo evidente sua capacidade de transporte e carreamento de produtos químicos e sólidos. Apesar do grande volume de água, de sua capacidade de tamponamento daqueles resíduos e ácidos, deve-se observar que o ecossistema aquático não é homogêneo em toda sua extensão. A biodiversidade de várias nascentes à foz dos rios, apresentam espécies endêmicas únicas e localizadas.

Tomando-se por base que para a produção de 1 kg de cloridrato de cocaína são necessários cerca de 30 litros de derivados benzênicos, 20 litros de solventes orgânicos e 1 kg de substâncias oxidantes, tem-se que para a produção estimada de 2.000.000 kg de cloridrato de cocaína (90% de pureza), são necessários 60.000.000 de litros de derivados benzênicos, 40.000.000 de litros de solventes e 2.000.000 de quilos de oxidantes.

Estima-se que, anualmente, mais de 100.000. (cem mil) toneladas métricas de produtos químicos são empregados nas diversas fases do refino da cocaína, sempre em locais junto as nascentes dos rios e igarapés que dão origem a Bacia Amazônica, cujos dejetos fluem naturalmente para aqueles capilares hídricos, alterando o PH do solo, reduzindo a taxa de oxigênio, destruindo os fito e zooplancton, provocando alto grau de poluição e alterações significativas nas cadeias alimentares e ciclos biológicos, interferindo diretamente na fauna ictiológica e flora aquática.

Desta forma, várias espécies de vegetais, animais e microorganismos estão desaparecendo sem ao menos serem conhecidos seus efeitos para a humanidade e comprometendo, de forma irremediável, o maior celeiro da biodiversidade mundial.

Com isto, e partindo-se do mesmo princípio do cálculo acima, tem-se que os precursores químicos utilizados no processamento da cocaína, algo em torno de 100.000 toneladas métricas/ano, são desviados em torno de 270 toneladas/dia, o que permite concluir que os meios de transporte empregados para tal finalidade são os de grande capacidade de carga.

A comercialização do Cloridrato de Cocaína é, na atualidade, um dos maiores mercados financeiros do planeta, cuja potencialidade é traduzida pelo universo de “papelotes” produzidos por ano: cerca de 6.000.000.000, multiplicados pelo preço médio praticado em todo mundo: US$ 20,00 (vinte dólares) o “papelote”, totalizando o montante de US$ 120.000.000.000,00 (cento e vinte bilhões de dólares).”
Quem produz toda essa quantidade de produtos químicos, capazes de sustentar a produção? O Brasil e os demais países da região não têm capacidade para tanto. Quem transporta essa imensidade de produtos químicos?

Considerando que a Colômbia é a maior produtora, a Bolívia vindo em seguida, e depois o Peru, pode-se afirmar que a via fluvial amazônica brasileira não é o caminho navegável utilizado, especialmente porque há várias barreiras da Polícia Federal (Belém-Manaus-base Anzol e Tabatinga), que seriam impossíveis de serem vencidas, se o transporte for de grande quantidade. Pequena quantidade não atende às necessidades, por isso é irrelevante.

Os maiores produtores dos químicos necessários à produção cocaleira são os Estados Unidos e a Suíça (Basiléia).

Não seria fácil controlar essa produção, impedindo, assim, que chegasse aos laboratórios?

Tal controle não interessa a ninguém (!), especialmente porque dos 120 bilhões de dólares, apenas alguns poucos milhares retornam para o “combate ao narcotráfico”, criando, assim, o ciclo vicioso do monstro que mantém a si mesmo, a despeito de comer um pouco do próprio rabo, que sempre está a se recompor e forma cada vez maior.

O controle da produção dos produtos químicos pelo Estado, dirão alguns, vai de encontro à liberdade de indústria, corolário da liberdade “sagrada” individual. E com isso, sob pena de se ir de encontro a um dos princípios basilares do capitalismo, aceita-se tudo em seu nome, o qual prega: se o lucro supera o prejuízo, tudo deve ser aceito.

Hipocrisia tem limites: não cheirem, não lavem e nem estimulem a produção daquilo que condenam.

Osório Barbosa é procurador da República em São Paulo.

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