Autora: Maria Lucia Karam (*)
A indevida utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública ressurge no Brasil, agora sob a inédita forma de intervenção federal militarizada na área de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, conforme o Decreto 9.288, de 16/2/2018, da Presidência da República. O decreto invoca regra da Constituição Federal que prevê a intervenção da União nos estados da federação ou no Distrito Federal para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública” (artigo 34, III). Ocorre que, a toda evidência, o que está previsto naquela regra constitucional diz respeito a intervenção federal que, naturalmente, haverá de recair sobre o Poder Executivo do estado, o interventor assumindo a função de governador, àquele se transferindo a administração da unidade federativa sob intervenção.
Mas, não bastasse determinar uma esdrúxula intervenção limitada à área de segurança pública (artigo 1º, parágrafo 1º), o interventor assim inusitadamente convivendo com o governador na administração do estado, o Decreto 9.288/2018 traz ainda a manifestamente inconstitucional assertiva de que o “cargo de interventor é de natureza militar” (artigo 2º, parágrafo único).
Equivalendo, na hipótese, ao cargo de governador, o cargo de interventor não só jamais poderia ter natureza militar como sequer poderia ser exercido por militar na ativa. Conforme dispõe a Constituição Federal, nenhum militar na ativa poderá ocupar qualquer cargo eletivo, passando automaticamente para a inatividade no ato da diplomação (artigo 14, parágrafo 8º, I e II). A natureza necessariamente civil da administração pública é ainda reforçada em regras que impõem a transferência para a reserva do militar que tomar posse em cargo ou emprego público civil, inclusive quando este for temporário, caso em que o militar ficará agregado, passando para a reserva após dois anos de afastamento, ressalvada apenas a acumulação de cargos ou empregos privativos de profissionais da saúde (artigo 142, parágrafo 3º, II e III).
Em tempos de leituras que negam mesmo o explicitamente dito pela Constituição Federal, torna-se necessário afirmar e repetir o óbvio: os dispositivos constitucionais citados, a toda evidência, impõem a conclusão de que o cargo de interventor, a implicar no exercício, ainda que excepcional e temporário, da função de governador de estado, não só necessariamente há de ter natureza civil como tampouco poderá ser exercido por militar na ativa.
Abstraindo-se o inédito e inconstitucional travestimento da intervenção federal em novo — e sempre indevido — meio de utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública, bem como abstraindo-se eventuais intenções não explicitadas, o Decreto 9.288/2018 parece trazer apenas uma reiteração de já desgastadas, inevitavelmente fadadas ao fracasso e sempre inconstitucionais operações militares anteriormente desenvolvidas notadamente no Rio de Janeiro. Desde 1994, com a chamada Operação Rio, aos mais recentes novembro de 2010, quando se iniciou a televisada ocupação militar nas favelas da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, ou abril de 2014, em que uma força composta de militares da Brigada Paraquedista do Exército, fuzileiros navais, tanques, caminhões, jipes, carros anfíbios e outras viaturas blindadas ocupava o complexo de favelas da Maré, sem contar outras operações pontuais menos duradouras e/ou espetaculares, variados governos federais têm enviado as Forças Armadas ao Rio de Janeiro para, desviadas das funções que a Constituição Federal lhes atribui, indevidamente atuarem em operações destinadas a “combater” o indefinido e indefinível “crime organizado” vulgarmente identificado em gangues que controlam o comércio varejista das drogas tornadas ilícitas em favelas.
Também nessas antecessoras utilizações indevidas das Forças Armadas foi invocada regra da Constituição Federal, dela se fazendo leitura totalmente distorcida. Tal regra (artigo 142), inserida no capítulo dedicado às Forças Armadas, estabelece que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica se destinam a defender o país e a integridade dos poderes constitucionais do Estado e, por iniciativa de qualquer destes, a garantia da lei e da ordem. Ao invocá-la, sucessivos governantes ignoraram o que estabelecem outras regras da mesma Carta, as de seu artigo 144, inseridas em capítulo diverso, dedicado este sim à segurança pública, a atribuir, com exclusividade, às polícias estaduais e à Polícia Federal as tarefas de garantia da ordem pública, manutenção da ordem e segurança das pessoas e da propriedade.
Leitura sistemática de tais regras constitucionais não deixa qualquer dúvida de que a intervenção das Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem, prevista no invocado artigo 142, só se autoriza quando haja real ameaça à integridade da nação ou ao governo regularmente constituído, como seria o caso de uma tentativa de golpe de estado, longe estando de poder ser invocada em matéria de segurança pública.
Nas mencionadas regras dos artigos 142 e 144, a Constituição Federal deixa claro, como não poderia deixar de ser em um Estado Democrático, que as funções dos corpos militares e das forças policiais são radicalmente diferentes. Com efeito, as funções policiais, abrangentes de atividades relacionadas à investigação de infrações penais, ao policiamento ostensivo e à preservação da ordem e da segurança pública, são eminentemente civis, pois se voltam para a defesa da sociedade e de seus cidadãos, o que, evidentemente, difere radicalmente das funções reservadas às Forças Armadas de defesa da soberania e integridade nacionais, voltando-se para ameaças externas e guerras.
Além da inafastável necessidade de respeito à ordem jurídico-constitucional, o repúdio à indevida utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública, quer sob a novel travestida forma de intervenção federal, quer sob a falaciosa invocação da “garantia da lei e da ordem” acenada nas operações antecedentes, poderia partir também do fato de que tal “remédio” fatalmente se destina ao fracasso. O apelo a tal “remédio” já o demonstra. As inúmeras e duradouras operações militares anteriormente desenvolvidas de nada serviram. É o próprio Decreto 9.288/2018 a afirmar que haveria um “grave comprometimento da ordem pública” no estado do Rio de Janeiro. Mas, se o demonstrado fracasso doméstico não for suficiente, vale lembrar do exemplo mexicano, como fez o jornalista Clóvis Rossi na Folha de S.Paulo. Único resultado da utilização das Forças Armadas mexicanas no “combate ao tráfico de drogas”, a partir de dezembro de 2006, foi o aumento da violência: a taxa de homicídios dolosos no México no período de 2000 a 2006 se mantinha em torno de 9 a 10 homicídios por cem mil habitantes; em 2009, chegou a 17; e em 2011, a 22,8.
Diz o mencionado articulista: “(…) Parece evidente que a violência no Brasil (e no mundo) cresceu à medida que se fortalecia e se consolidava o milionário negócio das drogas. Numa hipótese mega-hiper-blaster otimista, digamos que a intervenção militar consiga prender todos os grandes traficantes. Vai diminuir o consumo? Não. Novas gangues surgirão (o México é, de novo, um exemplo a acompanhar). O ponto aqui seria eliminar ou ao menos reduzir a violência associada ao tráfico de drogas. Nesse capítulo, o exemplo a acompanhar é o do Uruguai e sua tentativa de legalizar o cultivo e a comercialização da maconha”.
Com efeito, enquanto não se cortar a principal fonte de alimentação da violência, no Rio de Janeiro, no restante do Brasil, no México, ou em outras partes do mundo, não haverá “intervenção” que garanta a segurança pública. Essa principal fonte de alimentação da violência é, sem dúvida, a política proibicionista de “guerra às drogas”. Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. Basta pensar que não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto a fábricas de cerveja, vinhedos ou postos de venda dessas e outras bebidas. Mas isso já aconteceu. Foi nos EUA, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição do álcool. Era a época de Al Capone. Hoje, não há violência na produção e no comércio do álcool. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é óbvia: a diferença está na proibição. Só existem armas e violência na produção e no comércio de quaisquer drogas quando o mercado é posto na ilegalidade.
Entregando o próspero e permanente mercado das drogas tornadas ilícitas a empreendedores dispostos a agir na ilegalidade, a política proibicionista impulsiona a expansão de facções, gangues, cartéis, máfias e outros grupos clandestinos. Especialmente para aqueles que acreditam que o indefinido e indefinível fenômeno chamado de “crime organizado” se identificaria em gangues que controlam em favelas o comércio varejista daquelas substâncias, a supostamente requerer a inconstitucional e demonstradamente ineficaz utilização das Forças Armadas para contê-lo, vale lembrar do impulso dado por tal política ao crescimento da maior dessas gangues no Brasil, que, aliás, não tem sede no Rio de Janeiro: conforme investigações do Ministério Público de São Paulo, o PCC arrecadaria R$ 200 milhões por ano, sendo mais de 80% de tais rendimentos proporcionados pelo “tráfico” de drogas.
O mesmo se dá em outras partes do mundo. O Escritório para Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC) estima que, no Afeganistão, o Talibã arrecadaria cerca de US$ 200 milhões por ano no mercado do ópio.
Vale lembrar ainda, mais uma vez, da proibição do álcool nos EUA. Lá aconteceu exatamente o que acontece agora no Afeganistão, no Brasil, no México e em outras partes do mundo: a demanda em grande escala pelo álcool tornado ilícito e o aproveitamento da oportunidade econômica criada com o mercado posto na ilegalidade propiciaram a expansão da máfia norte-americana naquela época.
A proibicionista política de “guerra às drogas” torna ilícitas determinadas drogas como a maconha ou a cocaína, criminalizando as condutas de seus produtores, comerciantes e consumidores, enquanto análogas atividades de produção, comércio e consumo de outras drogas, como o álcool ou o tabaco, se realizam na legalidade. E o resultado desse desigual tratamento, claramente violador do constitucionalmente consagrado princípio da isonomia, é o fortalecimento de grupos criminalizados, vulgarmente identificados como “crime organizado”. Difícil encontrar maior irracionalidade e mais evidente desconformidade da opção criminalizadora com a proporcionalidade que a ordem constitucional exige dos atos estatais.
O desrespeito à ordem jurídico-constitucional, que assim dá a tônica tanto da inútil, irracional, nociva e ilegítima política proibicionista de “guerra às drogas”, quanto da nova e das velhas formas de indevida utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública, decerto há de ser razão determinante para o repúdio de ambas.
Mas, em tempos, como os que caracterizam a realidade brasileira, em que o sistemático desprezo à Constituição Federal parte até mesmo de integrantes do Poder Judiciário, talvez o apelo à segurança pública tenha peso maior. A redução de homicídios e, assim, a redução da violência e preservação da segurança pública só serão alcançadas com o fim da inútil, irracional, nociva e ilegítima política proibicionista de “guerra às drogas”. Preocupações verdadeiras com a segurança pública estão a exigir a legalização e consequentes regulação e controle da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
Legalizar não significa liberar. Ao contrário. Legalizar significa regular e controlar, o que hoje não acontece, pois um mercado ilegal é necessariamente desregulado e descontrolado. Legalizar significa pôr fim ao “tráfico” — e é a única forma de fazê-lo. Eliminando a violência provocada pela inútil, irracional, nociva e ilegítima política proibicionista de “guerra às drogas”, a legalização também eliminará a maior fonte de renda advinda de atividades ilícitas. Os rendimentos gerados nas atividades de produção e comércio das drogas legalizadas se integrarão às finanças legais, como são integrados os rendimentos obtidos com a produção e o comércio das drogas já lícitas. Impostos serão pagos e recebidos pelo Estado, da mesma forma que já são pagos e recebidos os impostos devidos pelos produtores e comerciantes de álcool ou de tabaco. E o dinheiro gasto com a repressão e com suas consequências ainda será economizado. Os recursos econômico-financeiros assim redirecionados poderão ser investidos em ações voltadas para a promoção da saúde e da educação, para a construção de moradias decentes, para a criação de postos de trabalho, para a preparação profissional, enfim, ações efetivamente úteis socialmente, que, decerto, também contribuirão para maior segurança pública.
Além disso, as atividades policiais poderão se desenvolver com maior eficiência. Policiais poderão se concentrar na prevenção, investigação e esclarecimento de fatos graves, de crimes com vítimas, em vez de desperdiçarem suas energias e suas vidas na inútil tentativa de conter um mercado que a realidade e a história demonstram que não desaparecerá, bastando pensar que a demanda por drogas remonta às próprias origens da história da humanidade.
Legalizar não significa aprovar quaisquer drogas. É apenas uma decisão racional que porá fim aos maiores riscos, danos e sofrimentos causados quando tais substâncias são proibidas. Usar ou não usar drogas, sejam as hoje ilícitas, como a maconha ou a cocaína, sejam as lícitas, como o álcool e o tabaco, é uma questão a ser enfrentada a partir de informações, de educação, de conscientização sobre o potencial destrutivo de tais substâncias. Esses, sim, são meios eficazes e humanos. Forças policiais, políticas penais, prisões, guerras e indevidas utilizações das Forças Armadas, além de ineficazes, só trazem mais destruição.
Autora: Maria Lucia Karam é juíza de Direito aposentada, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e presidente da Associação de Agentes da Lei contra a Proibição (Leap Brasil).