Ordenamento jurídico não admite preventiva compulsória

Por Renato Marcão

Olhando por cima, é até possível falar que as alterações introduzidas pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, são virtuosas. Esta afirmação, contudo, só poderá ser feita enquanto referência isolada aos novos institutos criados e algumas alterações aos antigos, pois, nas entranhas, o que se constata é mais um diploma legal de péssima qualidade técnica.

As inúmeras impropriedades deste novo regramento estão cuidadosamente tratadas em nosso novo livro, intitulado Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas.[1]

Por aqui, cuidaremos de refletir sobre a situação a que se encontra lançado o instituto da liberdade provisória no Direito brasileiro, pois, a depender da compreensão de alguns, ou o inciso II do artigo 310 do CPP é inconstitucional, ou é hora de se reconhecer, como pensamos seja correto, que a inafiançabilidade, tratada no artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, da CF, não impede a concessão de liberdade provisória, sem fiança, em todo e qualquer caso.

O novo artigo 310 do CPP
Dispõe o novo artigo 310 do CPP, com a redação da Lei 12.403, de 04 de maio de 2011, que, “ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do artigo 23 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”.

A obrigatoriedade de relaxar a prisão ilegal já estava prevista no artigo 5º, inciso LXV, e a obrigatoriedade de se conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, no artigo 5º, inciso LXVI, ambos da CF.

Pelo que se conclui do novo artigo 310, ou a prisão é relaxada e o autuado é colocado em liberdade, ou converte-se a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos legais (artigos 311 a 313 do CPP), ou concede-se liberdade provisória, com ou sem fiança.

As reflexões que seguem estão relacionadas exclusivamente com o tratamento jurídico explicitado pelo legislador em relação ao instituto da liberdade provisória.

Durabilidade da prisão em flagrante
Mesmo antes das modificações impostas pela Lei 12.403/11, sempre entendemos que a prisão em flagrante não poderia ultrapassar o limite temporal que vai de sua efetivação até a comunicação ao juiz competente, providência obrigatória que deve ocorrer nas 24 horas seguintes à prisão-captura.

Esta forma de pensar encontra sua fundamentação no artigo 5º, inciso LXVI, da CF, segundo o qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Do artigo 5º, LXI, da CF, retiramos autorização para que pessoas possam ser presas em flagrante, mas a interpretação da regra deve ser feita em harmonia com o citado inciso LXVI, do qual se extrai que, após a prisão em flagrante, a pessoa não poderá continuar presa e, portanto, ser levada ao cárcere, se cabível a liberdade provisória, daí a necessidade de análise desta situação jurídico-constitucional já no momento do controle jurisdicional imediato, a demonstrar absoluta impropriedade em se afirmar a possibilidade de que alguém possa permanecer preso por força do flagrante.

Neste momento primeiro do controle jurisdicional, só poderá subsistir prisão se presentes os requisitos da custódia preventiva.

A possibilidade jurídica de alguém sofrer restrições à sua liberdade por força de prisão em flagrante sempre esteve restrita e delimitada no tempo, até porque constitui exceção da exceção, na exata medida em que a liberdade é a regra e a exceção é a prisão mediante ordem prévia de autoridade judiciária, sendo a prisão em flagrante exceção a esta última exceção.[2] Nunca pode ultrapassar o lapso temporal que medeia entre a prisão-captura e sua comunicação ao juiz competente.

Isto sempre esteve muito claro no texto constitucional e também no Código de Processo Penal.

A propósito deste tema, a lúcida visão do ministro Celso de Mello é suficientemente esclarecedora quando afirma:

“Aquele que foi preso em flagrante, embora formalmente perfeito o auto respectivo (CPP, artigos 304 a 306) e não obstante tecnicamente caracterizada a situação de flagrância (CPP, artigo 302), tem, mesmo assim, direito subjetivo à obtenção da liberdade provisória, desde que não se registre, quanto a ele, qualquer das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, a significar que a prisão em flagrante somente deverá subsistir se demonstrar que aquele que a sofreu deve permanecer sob a custódia cautelar do Estado, em razão de se verificarem, quanto a ele, os requisitos objetivos e subjetivos justificadores da prisão preventiva”.[3]

Acrescentamos ao raciocínio acima exposto que: se presentes os requisitos da prisão preventiva, o correto sempre foi sua decretação, e não apenas a manutenção da prisão “por força do flagrante”.

Disso resulta que, a rigor, a contracautela que é a liberdade provisória sem fiança só pode ser manuseada dentro do limite temporal indicado.

Em relação a isso, agora, o legislador foi ainda mais específico, pois o novo artigo 310 do CPP evidencia claramente que o juiz deverá, no momento do controle jurisdicional imediato, trabalhar com as variantes que indica.[4]

Liberdade provisória
Ao tratarmos do tema liberdade provisória, é preciso não confundir gênero com espécie.

Liberdade provisória, em sentido amplo, é o gênero, do qual extraímos as espécies: 1º) liberdade provisória com fiança; e, 2º) liberdade provisória sem fiança.

Não é outra a interpretação que se extrai do artigo 5º, inciso LXVI, da CF, quando diz: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.

Não foi por razão diversa, aliás, que a Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, introduziu um parágrafo único no artigo 310 do CPP. A ideia foi exatamente permitir a liberdade provisória, sem fiança, para aqueles casos de crimes inafiançáveis.

A distinção está clara, inquestionavelmente delineada, e, por conta disso, até pouco tempo, a discussão era meramente acadêmica, não divergindo os manuais a este respeito.

Sempre admitiu-se que, após efetivada a prisão em flagrante, não sendo caso de relaxamento ou liberdade provisória mediante fiança, era possível a concessão de liberdade provisória sem fiança.

A Constituição Federal, a seu turno, dispõe, no artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV,[5] a respeito da inafiançabilidade de determinados crimes, mas isso não implica dizer que estes mesmos crimes não comportam liberdade provisória sem fiança.

Nada obstante esta evidente diferença que há, ainda permanece majoritária a corrente jurisprudencial no sentido de que a inafiançabilidade imposta pela Constituição Federal impede a liberdade provisória sem fiança.[6]

Há quem chegue a afirmar que “o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90, quando impedia a ‘fiança e a liberdade provisória’, de certa forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do artigo 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada pelo artigo 1º da Lei 11.464/07, ao retirar o excesso verbal e manter, tão somente, a vedação do instituto da fiança”.[7]

Para nós, inafiançabilidade é a característica daquilo que não comporta fiança. Se a pretensão do legislador constituinte era dizer mais que isso, deveria dizer que aqueles crimes a que se referiu eram insuscetíveis de liberdade provisória. Mas não disse, e por isso não podemos dar interpretação mais ampla ao dispositivo que impõe restrição ao sagrado direito à liberdade, valor de extração máxima no texto constitucional.

Ademais, como disse o ministro Marco Aurélio, “sendo o Direito uma ciência, há de emprestar-se sentido técnico a institutos, expressões e vocábulos”.[8]

É acertada, portanto, a visão do ministro Celso Limongi quando aponta a distinção que há entre as situações tratadas, para concluir que “a proibição da liberdade provisória com fiança não compreende a da liberdade provisória sem a fiança”.[9]

Liberdade provisória como decorrência do artigo 310
Tudo o que acima afirmamos resulta, agora, evidenciado uma vez mais no artigo 310, inciso II, do CPP.

Para que não se tenha dúvida a respeito, basta imaginar hipótese em que determinada pessoa venha a ser presa em flagrante pela prática de crime hediondo ou qualquer outro inafiançável.

Efetuada a prisão, e lavrado o respectivo auto, deverá ser comunicada ao juiz competente no prazo de 24 horas (artigo 306, parágrafo 1º, do CPP).

Recebendo os autos, nos precisos termos do artigo 310 do CPP, deverá o juiz relaxar a prisão, se for ilegal.

Não sendo ilegal, deverá converter prisão em flagrante em prisão preventiva quando presentes os requisitos legais (artigos 311 a 313 do CPP) e se a tanto provocado, pois não poderá fazê-lo ex officio durante a fase de investigação criminal (artigos 282, parágrafo 2º e 311, ambos do CPP).

Não sendo caso de preventiva, deverá conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, podendo cumular, se for o caso, medida cautelar restritiva prevista dentre as hipóteses do artigo 319 do CPP.

Como se vê, após o momento do controle jurisdicional imediato, somente subsistirá custódia cautelar se ocorrer decretação de prisão preventiva.

Porém, e se após a prisão em flagrante por crime hediondo o juiz verificar que não estão presentes os requisitos da prisão preventiva? Poderá assim mesmo manter o agente preso?

Claro que não. Não subsiste no ordenamento jurídico brasileiro a prisão preventiva compulsória ou obrigatória.

Bem, então, deverá soltá-lo a que título?

Liberdade provisória é claro, pois estamos tratando de hipótese em que não se afigura cabível o relaxamento da prisão.

Ocorre, entretanto, que a Constituição Federal lista crimes que considera inafiançáveis, e, sendo assim, em relação a eles não será possível conceder liberdade provisória mediante fiança, restando, apenas, a possibilidade de liberdade provisória sem fiança, o que demonstra o desacerto em se afirmar que a inafiançabilidade tratada na Carta Magna impede a liberdade provisória sem fiança.

Qualquer forma diversa de interpretação, ainda que bem intencionada, desatende por completo o desejo da Lei.

Dessas reflexões, resultam duas vertentes possíveis: 1ª) ou se reconhece, definitivamente, a possibilidade de liberdade provisória, sem fiança, em relação a todos os crimes inafiançáveis; 2ª) ou se reconhece a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 310 do CPP.

A primeira linha de pensamento é a acertada, conforme procuramos evidenciar nas reflexões expostas.

Por outro vértice, sustentar que a inafiançabilidade tratada expressamente na Constituição Federal também significa vedação à liberdade provisória sem fiança implicará reconhecer a inconstitucionalidade do novo artigo 310 do CPP quando determina que ninguém permanecerá preso cautelarmente se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva.

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[1] Editora Saraiva.

[2] Artigo 5º, LXI, da CF: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

[3] STF, HC 94.157/SP, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 10.06.2008, DJe de 28.03.2011.

[4] E que já estavam claras na Constituição Federal e no CPP, a nosso ver.

[5] Artigo 5º da CF: “XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

[6] “Apesar de o tema ainda não ter sido analisado definitivamente pelo Plenário deste Tribunal, a atual jurisprudência é firme no sentido de que é legítima a proibição de liberdade provisória nos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, uma vez que ela decorre da inafiançabilidade prevista no artigo 5º, XLIII, da Carta Magna e da vedação estabelecida no artigo 44 da Lei 11.343/06” (STF, HC 103.406/SP, 1ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 24.08.2010, DJe n. 168, de 10.09.2010). No mesmo sentido: STF, HC 104.616/MG, 1ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 21.09.2010, DJe n. 215, de 10.11.2010; STF, HC 102.715/MG, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 03.08.2010, DJe n. 200, de 22.10.2010; STF, HC 101.259/MS, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 01.12.2009, DJe n. 22, de 05.02.2010; STF, HC 98.548/SC, 1ª T., rel. Min. Cármen Lúcia, j. 24.11.2009, DJe n. 232, de 11.12.2009; STF, HC 103.399/SP, 1ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 22.06.2010, DJe n. 154, de 20.08.2010; STF, HC 95.671/RS, 2ª T., rel. Min. Ellen Gracie, j. 03.03.2009, DJe n. 53, de 20.03.2009; STF, HC 102.558/PR, 2ª T., rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09.02.2010, DJe n. 45, de 12.03.2010.

[7] STF, HC 103.399/SP, 1ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 22.06.2010, DJe n. 154, de 20.08.2010.

[8] STF, HC 83.439/RJ, 1ª T., rel. Min. Marco Aurélio, j. 14.10.2003, DJe de 07.11.2003.

[9] STJ, AgRg no HC 111.250/SP, 6ª T., rel. Min. Celso Limongi, j. 19.02.2009, DJe de 16.03.2009. No mesmo sentido: STJ, AgRg no HC 111.250/SP, 6ª T., rel. Min. Celso Limongi, j. 19.02.2009, DJe de 16.03.2009.

Renato Marcão é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico, professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós). É também autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva, 2004), e, Curso de Execução Penal (Saraiva, 2004).

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