Já é notícia conhecida de grande parte das indústrias que o Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento, revisitou o tema dos créditos de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) decorrentes da aquisição de insumos e demais produtos isentos, não-tributados ou tributados à alíquota zero, para reverter sua posição anteriormente firmada e, mais uma vez, privilegiar o Fisco em detrimento dos contribuintes.
Esse posicionamento, adotado em processo julgado no mês de fevereiro passado, ainda não se encontra completamente definido quanto aos seus efeitos em virtude da “questão de ordem” argüida pelo ministro Ricardo Lewandowski, que trata da possibilidade de o STF atribuir efeito prospectivo à sua decisão.
Indiscutivelmente, essa definição repercutirá decisivamente nas demonstrações financeiras das indústrias, principalmente daquelas que possuem ação judicial em curso tratando dos créditos sobre insumos desonerados.
Para que se possa compreender a questão com maior amplitude, é preciso retomar-se a discussão submetida à análise da Suprema Corte. A guerra travada já há muitos anos no âmbito do Supremo Tribunal Federal gira em torno da possibilidade (ou impossibilidade) de os contribuintes se valerem dos créditos de IPI decorrentes da aquisição de insumos desonerados, assim chamados os produtos isentos, não-tributados ou tributados à alíquota zero.
Com efeito, enquanto os contribuintes argumentavam que a impossibilidade da tomada de créditos dessa natureza acabaria por desvirtuar a própria desoneração concedida —que se esvairia no decorrer do processo produtivo—, o Fisco federal defendia que os créditos não possuíam previsão legal e, assim, não poderiam ser apropriados na escrita das indústrias.
Após vários anos de discussão, o plenário do STF, em 1998, firmou entendimento favorável à possibilidade de creditamento de IPI, relativamente às aquisições de insumos isentos, não tratando, naquela oportunidade, dos insumos não-tributados ou tributados à alíquota zero.
No final de 2002, o plenário do STF voltou a analisar a questão, agora tratando dos insumos tributados à alíquota zero. Àquela época, a discussão —já pacificada no que atina aos insumos isentos— direcionava-se para a distinção jurídica entre isenção e alíquota zero, para fins de crédito de IPI.
Novamente, em um posicionamento sensato, o Tribunal Supremo compreendeu que as aquisições de insumos tributados à alíquota zero também davam direito a crédito de IPI, uma vez que o efeito desonerativo era exatamente o mesmo da isenção, não merecendo, portanto, diferença de tratamento quanto aos seus créditos.
É importante notar que os insumos não-tributados (“NT”, como são mais conhecidos) nunca foram objeto de nenhuma das ações já julgadas pelo plenário do STF. Nada obstante, no julgamento sobre a possibilidade de créditos na aquisição de insumos tributados à alíquota zero, alguns ministros —com destaque para o relator ministro Nelson Jobim— consignaram, no corpo de seus votos, a possibilidade de créditos de IPI na aquisição de insumos não-tributados.
Ou seja, analisando somente o objeto dos processos julgados em 1998 e 2002, tinha-se por reconhecidos como legítimos os créditos decorrentes da entrada de insumos isentos e tributados à alíquota zero, com menção, no corpo de alguns votos, à extensão dessa possibilidade aos não-tributados, que não estavam em julgamento.
A alteração de posicionamento do STF —no julgamento realizado neste ano— foi manifestada em processo que tratava de insumos não-tributados (que apareceu pela primeira vez como objeto da ação) e dos tributados à alíquota zero, não atingindo, dessa maneira, os insumos isentos. Logo, o objeto tratado nesse novo julgamento incluía, agora sim, os não-tributados e aqueles submetidos à alíquota zero. Para esse tipo de insumo, portanto, os créditos não seriam permitidos, de acordo com a nova posição adotada.
Eis, então, que o ministro Ricardo Lewandowski, ao apresentar seu voto, traz à tona a questão de ordem anteriormente mencionada, para pretender atribuir efeito prospectivo àquela decisão do tribunal. O chamado efeito prospectivo trata de fazer com que o novo entendimento do STF sobre a questão não produza efeitos para as situações já estabelecidas, como, por exemplo, para os processos judiciais em curso, atingindo somente os casos que venham a existir após a publicação da decisão.
Pretende-se, assim, evitar que a alteração de um posicionamento firmado há anos pelo STF venha a prejudicar considerável parcela da indústria nacional que, confiantes na consolidação da jurisprudência, passaram a ingressar no judiciário para ter reconhecido direito que tinham por certo. Nada mais justo, sob a ótica do princípio constitucional da segurança jurídica.
Efetivamente, a proposta do ministro Lewandowski —digna de aplausos— poderá, se aprovada pelo plenário, não produzir os efeitos esperados pelos contribuintes. Isso porque, ao atribuir efeito prospectivo à sua decisão, o tribunal estará a afirmar que a jurisprudência anteriormente consolidada terá aplicação aos fatos ocorridos sob sua égide, de forma a evitar o efeito dominó do novo posicionamento da Corte.
O problema reside exatamente nesse ponto: se analisarmos os processos julgados —e que, por isso, formaram a jurisprudência do tribunal— apenas quanto aos seus objetos, teremos que os insumos não-tributados nunca os compuseram, não podendo, assim, falar-se em jurisprudência a eles aplicável. O efeito devastador dessa interpretação seria, portanto, o não-alcance do efeito prospectivo aos insumos não-tributados, para os quais nunca existiu posição formal favorável à tomada de créditos.
O que se descortina, a partir dessa interpretação, é a instalação de uma nova batalha jurídica entre o fisco federal e as indústrias. De um lado, o Fisco, valendo-se da interpretação de que o efeito prospectivo não alcança os insumos não-tributados e, de outro, os contribuintes, pretendendo a aplicação do efeito prospectivo àqueles insumos.
Efetivamente, pretender afastar a aplicação do efeito prospectivo —se concedido— aos insumos não-tributados parece configurar um apego exagerado ao formalismo, na medida em que o STF já havia se manifestado, no decorrer dos julgamentos anteriores, favoravelmente a esses créditos. A jurisprudência prevalente, dessa forma, abarcava todas as formas desonerativas, conquanto os insumos não-tributados não estivessem formalmente em julgamento naquelas ocasiões.
É preciso, portanto, que as empresas estejam atentas aos próximos rumos dessa discussão —que deverá atingir principalmente os setores consumidores de insumos não-tributados—, de forma a fazer valer a aplicação do efeito prospectivo aos insumos por elas adquiridos no regime de não-tributação.
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Helder Kanamaru é tributarista, sócio principal do escritório Kanamaru e Crescenti Advogados e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo