Os direitos adquiridos e a nova reforma da Previdência

O governo que se instaurou no plano federal em 1º de janeiro deste ano recolocou na agenda política do País a questão das reformas, iniciadas no governo anterior, do Presidente Fernando Henrique Cardoso, e não concluídas inteiramente, de acordo com a pauta então traçada pelo próprio Chefe do Executivo. Fala-se, agora, na premência das reformas previdenciária, tributária e política, isso sem se falar no aprofundamento da reforma administrativa, reivindicado pelos Governadores de Estado recém-empossados.

Dentro da tradição burocrático-formalista que tem marcado a nossa evolução histórica, reforma no Brasil é sinônimo de alteração dos padrões normativos existentes, seja no plano constitucional, seja no plano infraconstitucional, raramente acompanhadas tais modificações de natureza formal por alguma iniciativa consistente e coordenada, da parte do aparato estatal ou da sociedade organizada, que tenha a intenção de interferir nos padrões de organização administrativa ou das relações econômico-sociais.

A primeira das reformas que o Governo Lula pretende ver aprovada no Congresso Nacional até o final deste primeiro semestre é a reforma da previdência, que, na visão das autoridades federais, secundadas por aquelas que ora comandam os Estados, consistiria, nessa nova etapa, na diminuição do desequilíbrio atuarial acentuado, que estaria corroendo as finanças públicas, em face das regras vigentes para o regime especial de previdência dos servidores públicos, objetivo esse a ser atingido por medidas que ainda não foram delineadas, com clareza e precisão, pelo Governo Lula, mas que abrangeriam, em princípio, a aprovação do projeto de lei complementar federal dispondo sobre as normas gerais de organização da previdência complementar dos servidores públicos (PLC 9) e a formulação de uma proposta de emenda constitucional que modificaria algumas das normas do regime previdenciário especial dos servidores públicos atualmente insculpidas na Lei Maior.

Como seria de se esperar, a discussão sobre um tema dessa natureza, em que estão em jogo direitos, simples interesses ou mesmo a concepção de previdência social de um amplo universo de brasileiros, não se trava e nem pode se travar sem elevada dose de emoção. Todavia, cabe aos detentores de competência científica nas diversas áreas de conhecimento envolvidas apresentar as informações e arrazoados de que disponham, a fim de que o amplo debate que apenas se inicia possa dar algum fruto positivo para o País.

Nesse sentido, não posso deixar de enfrentar a objeção levantada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio de Mello, tão logo anunciou o Ministro da Previdência que se cogitava da inclusão dos atuais servidores públicos no regime geral de previdência, sem prejuízo da previdência complementar a ser instituída. Em seu estilo contundente, advertiu Sua Excelência que somente a revolução, vale dizer a quebra da ordem jurídica, poderia arrostar direitos adquiridos, indicando, com isso, que se a emenda constitucional vislumbrada pelo governo federal caminhasse naquela direção poderia ser fulminada pelo Pretório Excelso.

Com a devida vênia do ilustre magistrado, tanto sob o aspecto doutrinário, quanto sob o prisma da orientação jurisprudencial dominante, não se sustenta o seu ponto de vista. Apenas os servidores públicos que já perfizeram todas as condições para a aposentadoria, à luz das regras vigentes, são titulares de um autêntico direito subjetivo à aposentação, integrado ao seu patrimônio jurídico, de sorte que configuraria inaceitável ofensa à ordem constitucional sua inclusão em regime refratário à integralidade do benefício em relação à remuneração percebida em atividade, como sói acontecer com o regime previdenciário comum. Os que ainda não foram investidos em cargo público de provimento efetivo (destinatários do regime desenhado pelo art. 40 e seus parágrafos da CF), mediante prévio concurso de provas ou de provas e títulos, não são detentores sequer de expectativa em relação a um pretenso direito à aposentadoria, já que ainda não começou a fluir o tempo necessário para a aquisição do benefício. A situação de expectativa de direito é aquela dos atuais servidores públicos efetivos, por existir, no que concerne a eles, um processo de aquisição de direito iniciado, porém ainda não inteiramente concluído.

A meu ver, a discussão em torno da inclusão dos atuais servidores públicos no regime geral de previdência não pode ser abafada pela preliminar argüição da inviabilidade jurídica da medida, embora sob o aspecto estritamente pragmático deva merecer atenção a resistência que parcela ponderável da magistratura parece estar disposta a oferecer. Sob o prisma estritamente dogmático, as situações de expectativa de direito, ainda que possam ser completamente redesenhadas pelo Legislador, não costumam sê-lo, pois além dos imperativos de ordem jurídico-constitucional, está aquele adstrito à idéia de justiça prevalecente na sociedade em que opera. No tocante à matéria em causa, não resta a menor dúvida de que um servidor público que dedicou ao Estado e, via de conseqüência, à sociedade, o melhor de seus esforços durante anos a fio, não obstante não tenha logrado completar o tempo necessário para se aposentar, não pode ser equiparado a quem sequer é, ainda, detentor de cargo público. Summum jus, summa injuria, diriam os romanos.

É bem por isso que a alteração de regimes jurídicos funcionais ou previdenciários, ou mesmo de outra natureza, se faz acompanhar, amiúde, das chamadas regras de transição, por meio das quais as situações jurídicas em curso de aperfeiçoamento recebem um tratamento diferenciado e, por suposto, mais eqüânime, no tocante às situações que se aperfeiçoaram precedentemente à implantação do novo regime e que, via de regra, a ele ficam imunes e às situações cujo nascimento se deu após a implantação do novo regime e que recebem plenamente o impacto de suas normas.

Foi essa a orientação que adotou, por exemplo, o Constituinte de Revisão ao ensejo da edição da Emenda Constitucional nº 20, de 16 de dezembro de 1998, no que diz respeito à estipulação de um limite de idade para a aposentadoria voluntária do servidor público, ao permitir que os servidores que tivessem ingressado no funcionalismo antes da publicação daquela emenda se aposentassem com idade inferior àquela prevista nas regras permanentes (cf. art. 8º da EC nº 20/98).

A par desse aspecto ético, tão caro ao processo normativo, cabe aprofundar o exame da medida sob o prisma do impacto em relação às finanças dos Estados e Municípios, pois, a curto prazo, a migração dos servidores atuais para o regime previdenciário comum terá conseqüências negativas, cessando o recolhimento ao tesouro da contribuição individual sobre a parcela da remuneração que superar o limite máximo de benefícios, sem que possa o erário deixar de arcar com as aposentadorias integrais dos servidores que haviam passado à inatividade precedentemente e isso sem falar no custo de implantação da aposentaria complementar para os servidores inclusos no regime geral, condição necessária para tanto (art. 40, § 14, da CF). Aliás, parece ter sido essa a razão de haver o governo federal, aparentemente, desistido de incluí-la no bojo na proposta de emenda a ser remetida ao Congresso Nacional nos próximos meses.

Tive o ensejo de examinar a Emenda Constitucional n. 20/98 sob o enfoque de sua compatibilidade com a cláusula constitucional de proteção aos direitos adquiridos, em trabalho doutrinário recentemente editado (A proteção aos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2003), concluindo favoravelmente ao labor do Constituinte de Revisão, nesse aspecto, embora com a necessidade de adoção de algumas diretivas no que concerne à interpretação das normas então introduzidas. Espero que igual cuidado presida a elaboração dessa nova reforma do sistema previdenciário, a merecer atenção cuidadosa em outros planos além do jurídico-normativo (organização, gerenciamento, procedimentos administrativos, combate à sonegação, controle social etc.).

* Elival da Silva Ramos

Livre-Docente, Professor Doutor efetivo da Faculdade de Direito da USP e Procurador-Geral do Estado

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