Por Dalmo de Abreu Dallari
Numa decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal cumpriu sua função precípua, que é a guarda da Constituição. E por meio dessa decisão efetivou a garantia dos direitos que a Constituição confere aos índios. No dia 2 deste mês a Suprema Corte chegou à decisão final num processo iniciado em 1982, há 30 anos, portanto, e cujo julgamento tivera início em setembro de 2008. Trata-se de um caso de extrema relevância social, pondo fim a uma situação de ilegalidade, injustiça e violência, em que eram interessados imediatos os índios Pataxó-hã-hã-hãe, ocupantes tradicionais de terras no Estado da Bahia.
Na realidade, a decisão agora tomada pelo Supremo Tribunal Federal será benéfica a todos os índios brasileiros, muitos deles vítimas de poderosos invasores de suas terras, que além de terem a superioridade econômica beneficiam-se também da cumplicidade e proteção de políticos que atuam no âmbito nacional, bem como de autoridades estaduais.
Essa decisão do Supremo Tribunal Federal contém peculiaridades de extrema relevância, sob vários aspectos, a começar pela demonstração de que a Suprema Corte, agora sob a Presidência do eminente Ministro Carlos Ayres de Brito, deverá ser mais sensível aos casos em que, além de estar em questão a efetividade da Constituição como norma jurídica superior da ordem jurídica brasileira, existem situações gravemente conflituosas, que exigem solução rápida, baseada nas disposições constitucionais e legais, para que cessem violências, armadas e situacionais, que vitimam titulares de direitos sem força para protegê-los, como vem acontecendo com os índios brasileiros. Ressalte-se que esse caso, agora julgado, não constava da pauta previamente preparada para aquela sessão do Supremo Tribunal, mas o Presidente da Suprema Corte levou em conta a situação de extrema conflituosidade existente no local -o que, certamente, será superado a partir da decisão judicial terminativa do conflito jurídico- e incluiu na pauta essa matéria.
A par disso, é também louvável a atitude da eminente Ministra Carmen Lúcia, que deveria proferir o voto seguinte, continuando o julgamento, e reconhecendo a extraordinária importância do caso deu-lhe preferência, proferindo um voto verdadeiramente magistral, no qual ressalta que o reconhecimento dos direitos dos índios tinha sólida base nos fatos e era uma exigência de justiça, conforme à Constituição.
O caso agora julgado em decisão final tudo tem início com a invasão de terras indígenas por fazendeiros, apoiados por oligarquias políticas locais, que consideraram fácil e muito conveniente ampliar o seu patrimônio imobiliário invadindo terras indígenas. E assim fizeram. Existe aí um ponto de fundamental importância que deve ser ressaltado: esses invasores de terras nada pagaram por elas, simplesmente apossando-se delas, não podendo, portanto, alegar que sofreram um prejuízo econômico com o reconhecimento dos direitos dos índios.
Houve casos em que o governo do Estado da Bahia fez a doação das terras indígenas aos que desejavam apossar-se delas, devendo-se ressaltar aqui outro ponto fundamental: o Estado da Bahia não era proprietário daquelas terras nem tinha qualquer direito sobre elas, não tendo, portanto, qualquer valor jurídico o ato de doação.
Conforme dispõe expressamente a Constituição, no artigo 231, são reconhecidos aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, estabelecendo-se, no parágrafo 2º, que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Por disposição do artigo 20, inciso XI, da Constituição, “são bens da União “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. E pelo parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição ficou estabelecido, com clareza, objetividade e bastante ênfase, que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”, ou seja, as terras indígenas. Assim, portanto, não são juridicamente válidas as doações, as vendas e compras ou qualquer outra espécie de ajuste tendo por objeto áreas indígenas.
A decisão agora tomada pelo Supremo Tribunal Federal deu seguimento à votação iniciada em 2008, quanto o então Ministro da Suprema Corte, Eros Grau, num voto muito bem fundamentado reconheceu e afirmou os direitos dos Pataxó-hã-hã-hãe sobre as terras do Estado da Bahia que, conforme ficou comprovado por laudo circunstanciado, são tradicionalmente ocupadas por esses índios.
E assim os Ministros do Supremo Tribunal Federal exerceram sua função precípua e deram cumprimento às determinações constitucionais. O único voto divergente, do ilustre Ministro Marco Aurélio, foi extremamente infeliz do ponto de vista jurídico-constitucional, ao contrário de outros votos do insigne Ministro. Com efeito, o Ministro Marco Aurélio baseou toda a sua argumentação na Constituição de 1967, contrariando a totalidade da doutrina constitucional que dá absoluta superioridade aos preceitos de uma nova Constituição, que no caso do Brasil é a de 1988, ora vigente, tornando sem efeito as disposições das Constituições anteriores que com ela conflitem.
Assim, disse o preclaro Ministro que a Constituição de 1967 só protegia as terras habitadas pelos índios, o que foi colocado no texto constitucional maliciosamente, sob a égide de um governo ditatorial, para tirar dos índios a maior parte de seus territórios, só lhes deixando as pequenas áreas das habitações, como se os grupos indígenas pudessem sobreviver usando apenas o que estivesse dentro de suas casas.
Influenciado por fatores não-jurídicos, o ilustre Ministro ignorou o que dispõe expressamente o artigo 231 da Constituição atualmente vigente, segundo o qual são assegurados aos índios os direitos sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”, com a extensão expressamente fixada no parágrafo 1º desse artigo, segundo o qual “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Essa é a norma constitucional vigente, não tendo qualquer cabimento pretender aplicar agora a Constituição de 1967, há muito revogada. Para que se perceba o absurdo dessa pretensão, basta lembrar a situação dos proprietários de escravos após o advento da Constituição republicana de 1891. Seria arrematado absurdo jurídico pretender que tinham o direito de exigir que os negros comprados por eles continuassem a servir como escravos, porque tinham feito a compra na vigência da Constituição de 1824.
Em conclusão, a decisão, lúcida e bem fundamentada, do Supremo Tribunal Federal, além de sua extraordinária importância por determinar o fim de uma situação gravemente conflituosa, pois os invasores das áreas indígenas que pretenderem resistir com violência serão tratados, pura e simplesmente, como criminosos, essa decisão será também de grande importância para desencorajar outros aventureiros que pretendam obter ganho fácil invadindo terras indígenas, desencorajando também os ocupantes de cargos de governo ou detentores de mandato político que até agora buscaram tirar proveito apoiando violências inconstitucionais. Os vencedores imediatos foram os índios, mas numa visão mais ampla quem venceu foi o povo brasileiro, que viu reafirmada, pela mais alta Corte do País, a supremacia da Constituição, com a garantia de sua efetividade.
Dalmo de Abreu Dallari é advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado.