Os impactos sociais diante do ressurgimento das idéias liberais, e a dignidade da pessoa humana…

Os impactos sociais diante do ressurgimento das idéias liberais, e a dignidade da pessoa humana, como limite à flexibilização do direito do trabalho

Observa-se que o direito do trabalho se encontra em um momento de crise em virtude das transformações no mundo, isto é, da chamada “globalização” da economia, que estabelece uma tirana concorrência no mercado internacional. Verifica-se, assim, que se privilegia o capital sobre o trabalho, provocando um descaso em relação a todas as conquistas do homem pelos seus direitos, destacando a debilidade, bem como o risco do total desaparecimento da proteção por parte do Estado de uma vida digna ao homem trabalhador.

Pode-se, resumidamente, esclarecer, com fundamento nos ensinamentos de Arnaldo Süssekind[i], que os neoliberais defendem o Estado liberal pregando a omissão do Estado, para que as condições de trabalho possam ser ditadas pelas leis de mercado. Por sua vez, os defensores do Estado social sustentam a intervenção do Estado nas relações de trabalho, pois acreditam ser necessária a sua interação, tendo em vista a sua função de assegurar os direitos sociais para, assim, promover a dignidade humana. Conforme destaca Goldschmidt[ii], de fato, privilegiar o capital e o lucro, relegando o homem e a sociedade a um segundo plano, constitui uma verdadeira inversão de valores, inversão essa que não se sustenta no plano da ética e no plano do direito. Nessa linha, o embate entre o capital e o trabalho, principalmente em países em desenvolvimento, a exemplo do Brasil, exige a intervenção do Estado nas relações entre o capital e o trabalho, a garantir, de forma efetiva, direitos mínimos, que assegurem a sobrevivência digna do homem trabalhador.

Observa-se que os neoliberais pretendem reviver o liberal-individualismo da Revolução Francesa, com fundamento na liberdade contratual, que equivaleria à igualdade jurídica formal dos cidadãos e nos ditames do mercado. Contudo, esquece-se que, por meio das grandes reivindicações por seus direitos, o homem conseguiu conscientizar, primeiramente, a sociedade e, logo em seguida, os detentores do poder, bem como os legisladores de que não se poderia regular uma relação de trabalho com normas do direito civil, considerando que a igualdade entre as partes está apenas no plano formal, sendo distintas faticamente, isto é, economicamente.

Dessa maneira, a sociedade neoliberal, apresenta um pequeno grupo de pessoas com grande poder de aquisição, em contrapartida a uma maioria de pessoas miseráveis que tentam, inutilmente, competir com maquinários. O que se percebe, segundo Amauri Nascimento[iii], é que, com os novos meios de produção, tais como a informática e a robótica, há mais produção com menor mão-de-obra. Isso provoca uma crescente desigualdade social, visto que há a diminuição de contratações, com conseqüente desemprego, bem como a exclusão dos direitos protetores do trabalhador, tendo em vista a livre negociação entre as partes, na qual, de regra, prevalece a vontade do empregador diante da necessidade econômica do empregado.

Ainda, o direito contemporâneo conserva o seu caráter de tutela do trabalhador, no entanto, para não impedir avanços tecnológicos, torna-se menos rigoroso quanto a alguns aspectos, como em relação à redução de salários, bem como às novas formas de remuneração, à redução das jornadas de trabalho, com vistas a proporcionar, ainda, ao homem a oportunidade de conseguir algum emprego.

Trata-se, portanto, de um liberalismo que atribui ao mercado a função de formador e organizador das forças econômicas, deixando ao Estado uma função secundária, qual seja, a de garantir o livre funcionamento do mercado, conforme Kátia Magalhães Arruda[iv]. Aduz ainda esta autora que o neoliberalismo, ou liberalismo, traz novamente as idéias liberais, que separam o econômico do social e o Estado do mercado. Contudo, esquece-se que, para o mercado funcionar, exigem-se condições favoráveis, que são fornecidas pelo Estado, responsável por toda a ordem jurídica, política e institucional.

Foi com a intervenção do Estado que se estimulou a atuação do mercado, quando começou a se constituir a burguesia industrial, bem como passaram a se desenvolver as relações capitalistas. Portanto, diante das inúmeras transformações sociais, políticas e econômicas que se tem presenciado, bem como vivido, é importante definir a globalização com base em Otávio Reis de Souza[v]:

A globalização, tão referida, é muito antes descrita do que conceituada. A dificuldade reside, talvez, na proximidade dos cientistas sociais com o fenômeno, o que transforma em tarefa penosa sua clara percepção e mais difícil ainda a elaboração de um conceito. Ainda, assim, é vista mais das vezes como um processo que, passando pela fase inicial de formação de blocos regionais (MERCOSUL), dirige-se à inserção da humanidade em uma sociedade única mundial, diluindo as idéias de soberania e fronteira geográfica. Eis por que denominada também mundialização, (Omitiu-se).

As transformações ocasionadas pela globalização tecnológica têm se mostrado muito eficazes, considerando o seu progresso extraordinário referentemente aos meios de comunicação, permitindo, por exemplo, que uma pessoa possa sentir-se presente em qualquer evento que ocorra, em qualquer hora e em qualquer lugar do mundo. No entanto, mesmo proporcionando e envolvendo em suas progressões todos os meios de comunicação, transportes e cultura, ou seja, promovendo o avanço da humanidade, por priorizar o capital em relação ao trabalho, a globalização tem provocado o desemprego, e as más condições de trabalho. Kátia Magalhães Arruda[vi] enfatiza a respeito:

A globalização intensifica a abertura de mercados e a migração de empresas para países e localidades que sejam mais lucrativas, ou seja, onde existe a mão-de-obra mais barata e a menor fiscalização e respeito aos direitos internacionalmente conhecidos como fundamentais para a classe trabalhadora. Além disso, o neoliberalismo privilegia a lógica exclusiva do mercado em detrimento do homem, desviando o avanço tecnológico para o fator lucro, em vez de ter como destinatário a valorização da vida humana.

No mesmo sentido, explica Amauri Mascaro Nascimento[vii] que a substituição dos empregados pelo software, diante da alta produtividade das empresas com o emprego de eficientes meios tecnológicos, fez com que se tornasse desnecessário um grande número de empregados e isso caracteriza o desemprego estrutural, comprometendo, assim, os princípios que se encontram consagrados na Constituição, como o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana.

Com isso, o setor público encontra-se debilitado, bem como os países, dentre os quais o Brasil, com excesso de mão-de-obra barata, confirmando que se torna muito mais econômica a produção provinda da tecnologia. Observa-se que muitas empresas, com o objetivo de reduzir custos têm subcontratado os serviços de que necessitam, bem como adotado planos salariais variáveis de acordo com a produtividade[viii].

Desse modo, esclarece Kátia Magalhães[ix] que, além de serem os trabalhadores substituídos por máquinas, também perdem o emprego por não possuírem condições de acompanhar essas mudanças, devido à crescente sofisticação de seus equipamentos. Isso, de certo modo, aumenta a oferta e leva-os a se submeterem à condições humilhantes, considerando seus salários e as más condições de trabalhos, para garantir a própria subsistência. A respeito comenta Amauri Mascaro Nascimento[x]:

A classe trabalhadora começou a lutar por bandeiras diferentes das tradicionais, dentre as quais a redução das horas de trabalho como meio de combater ao desemprego, na medida em que o tempo preenchido em horas extras com um empregado poderia servir à ocupação de outro.

[…] o direito do trabalho ainda não encontrou meios eficazes de enfrentar o problema que caracteriza o período contemporâneo com a nova questão social, resultante do crescimento do exército de excedentes atingidos pela redução da necessidade de trabalho humano, substituído pela maior e mais barata produtividade da tecnologia, fenômeno desintegrador que não poupou nem mesmo os países de economia mais consistente.

Salienta ainda a preocupação referente à precária situação de emprego, o que irá se agravar mediante maior implementação do progresso técnico, ocasionando, assim, uma diminuição de empregados, bem como supressão de postos de trabalhos e redução dos salários de trabalhadores não qualificados.

Pode-se, assim, afirmar, de um modo geral, que os reflexos da globalização não caracterizam o desenvolvimento do país, visto que, para isso, seria necessária a melhoria de qualidade de vida dos homens, ou seja, deveriam ser assegurados os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, dentre outros. Contudo, o trabalho, apesar de ser um direito que dignifica um homem, está sendo-lhe tirado. Diante do exposto, Otávio Augusto Reis de Souza[xi] traz o entendimento de que “o trabalho não é inato à condição humana, mas é sim a forma pela qual até hoje obtivemos os meios para o atendimento de nossas necessidades, absolutas e relativas”.

Destaca-se ainda o comentário de João Batista Herkenhoff[xii]:

Não podemos, aceitar a idéia de que se chegou ao fim da História e que esse fim da história seja o capitalismo triunfante. O capitalismo não sofreu mudanças de fundo. Sua idéia-força continua sendo a competição e não a cooperação, que seria a idéia-força de um projeto humano de vida. O capitalismo, como estamos testemunhando, continua provocando os danos sociais que sempre provocou: enquanto alguns consomem desesperadamente, outros sofrem de carências fundamentais. O lucro é a mola de tudo e os valores éticos são esquecidos. Em cadeia mundial, aumenta cada ano o abismo entre os países ricos (donos do planeta) e os países pobres (dependentes e explorados). O meio ambiente é sacrificado em nome de um suposto crescimento econômico. Se as grandes potências celebram um pacto de paz, pequenas guerras regionais são alimentadas, porque a indústria de armamentos não pode falir. As aspirações do ser humano em direção a uma sociedade de justiça e paz não podem ser satisfeitas pelo modelo capitalista de sociedade.

Depara-se, portanto, com a constante busca dos países por um melhor posicionamento na economia global, com o que se verifica também uma crescente inter-relação com organizações internacionais não governamentais e com capital financeiro.

Por outro lado, afetam-se as condições mínimas de vida, salário, jornada, conquistas essas que o homem sofreu para adquirir e que, atualmente, está perdendo em virtude da inexistência de planificação de alguns países, os quais se tornaram hipossustentáveis economicamente, prejudicando, assim, toda a sociedade.

Por certo que o homem, durante a história da sociedade, enfrentou vários obstáculos, como a escravidão, as condições indignas de trabalho, dos quais resultaram dor e mortes para conseguirem um mínimo de direitos. A história da humanidade é, dessa forma, marcada por injustiças sociais, como também por conquistas, porém ainda se luta pela supressão de trabalhos prestados de forma humilhante e ofensiva e pela constante busca de dignificar o homem como um sujeito de direitos. Diante disso, compreende-se o porquê da rigidez das leis trabalhistas, que visam impedir a exploração da força do homem e o retorno a uma forma de tratamento como uma propriedade viva.

Entretanto, a globalização da economia, por meio de seus instrumentos, como a revolução tecnológica, inferiorizou o homem à condição de mero instrumento de trabalho, substituindo-o pela máquina e priorizando o capital sobre o valor da dignidade humana. É claro que se deve buscar o progresso econômico do país, no entanto o desenvolvimento político, o econômico e o social devem estar harmonizados com o ordenamento jurídico, para que os direitos fundamentais não sejam ignorados na relação de trabalho.

A flexibilização é um fato que resultou dessas transformações do mundo e ao qual a sociedade vem tentando adaptar-se. No entanto, deve-se ter cuidado para que não se torne ilegítima na sua atuação na relação de trabalho, tendo em vista que se deve preservar o núcleo essencial e intangível dos direitos fundamentais, consubstanciado no conteúdo de dignidade da pessoa presente em cada direito.

Pode-se, portanto, permitir uma certa liberdade na relação de trabalho, tanto que seja para dignificar mais o indivíduo, tornando-o um fim da sociedade e do direito, com base na norma mais favorável, como também, que seja respeitado o valor social do trabalho, que promove o desenvolvimento de riquezas, mas, acima de tudo, e principalmente, da personalidade do homem. Então, sempre que se for aferir a legitimidade da flexibilização, deve estar preservada a dignidade da pessoa humana, porque, ao se procurar desenvolver economicamente o país, devem-se observar as leis que oferecem garantias para os trabalhadores. Não podendo-se, assim, ignorar os princípios constitucionais de valorização do trabalho e do trabalhador como fator inerente à dignidade humana para que se possa obter a eficaz concretização do direito do trabalho.

Tais fatos levarão a que o Estado democrático de direito atinja os seus objetivos políticos e sociais através da prática da aplicação do ordenamento jurídico por parte da própria sociedade, com base, em especial, nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, visando a melhores condições sociais aos trabalhadores. Sabe-se, todavia, que o fato de flexibilizar o direito do trabalho constitui-se algo perigoso, uma vez que abre precedentes no sentido de permitir o suposto pacto entre as partes, que nunca estarão em condições de igualdade negocial, considerando o poder econômico do empregador em relação ao empregado.

Por isso, mesmo com o notório ressurgimento das idéias liberais, não se devem perder de vista os princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho no momento de flexibilizar o direito do trabalho, pois são fundamentos constitucionais que asseguram condições dignas de trabalho, de modo que este não sirva apenas como um meio de sobrevivência, mas, sim, torne-se o homem merecedor desses direitos mínimos.

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[1] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.41 – 43.

[2] FREITAS, José Mello de et al. Reflexões sobre direito do trabalho e flexibilização. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 133.

[3] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 43 e 51 – 52.

[4] ARRUDA, Kátia Magalhães. Direito constitucional do trabalho: sua eficácia e o impacto do modelo neoliberal. São Paulo: LTr, 1998, p. 83 – 84.

[5] SOUZA, Otávio Augusto reis de. Nova teoria geral do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 41.

[6] ARRUDA, Direito constitucional do trabalho: sua eficácia e o impacto do modelo neoliberal, 1998, p. 84.

[7] NASCIMENTO, Curso de direito do trabalho, 1981, p. 44.

[8] NASCIMENTO, Curso de direito do trabalho, 1981, p. 44 – 45.

[9] ARRUDA, Direito constitucional do trabalho: sua eficácia e o impacto neoliberal, 1998, p. 83 – 87.

[10] NASCIMENTO, op. cit., p. 45 – 46.

[11] SOUZA, Nova teoria geral do direito do trabalho, 2002, p. 37.

[12] HERKENHOFF, João Batista. Justiça, direito do povo. Rio de Janeiro: Thex, 2000, p. 106.

* Rodrigo Caletti Deon
Especialista em prática tributária, pelo Centro de Estudos Jurídicos LTDA, especializando em Direito Tributário pela Universidade de Passo Fundo/RS, aluno de mestrado em Teoria do Direito pela Universidade do Vale do Rio Dos Sinos/RS, professor de Direito Internacional Privado, e Hermenêutica Jurídica/Teoria da Argumentação, da União das Faculdades de Tangará da Serra/MT

* Rúbia Argenta Deon
Advogada, formada pela Universidade de Passo Fundo

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