Os juristas que não traíram o direito — ainda a reforma trabalhista

Autor: Lenio Luiz Streck (*)

 

E continua a espinafração da Justiça do Trabalho e dos direitos trabalhistas. O espinafre correu solto em evento no tal Lide, grupo empresarial do “gestor” (é ele quem se se diz assim; afinal, ele não é político — sic) de São Paulo, João Dória, quem também já declarou que extinguiria aquela Justiça caso eleito “gestor” do Brasil. Gestor… Ô palavrinha coaching. O discurso contra a Justiça do Trabalho é escancarado mesmo. Só um parêntesis: o Brasil é uma república com democracia representativa; portanto, só funciona com parlamento e eleições; logo, precisa de políticos; então, se isso é verdadeiro, por que essa sanha por “gestão”, com efusivo incensamento de outsiders como Luciano Hu(l)ck — quem, provavelmente, deverá ter como vice igualmente um outro não político, outro outsider; segundo dizem, poderá ser Louro José — claro, com esse discurso de que “política é coisa ruim, mas-estou-louco-para-entrar”, nada melhor do que institucionalizar uma papagaiada…).

Sigo. Segundo essa distorção dos fatos, haveria excesso de proteção do trabalhador no Brasil. Hum hum! Não é isso que tenho visto na saga pela aplicação da jurisdição constitucional à reforma trabalhista (aqui e aqui). Aliás, o Brasil é sui generis. Escrevo um texto sobre a reforma trabalhista e, de passagem, faço uma crítica a uma — estou sendo generoso — frase absolutamente infeliz dita pelo filósofo Pondé. Resultado: a maioria dos comentários foi sobre a frase do Pondé. Pior: a maioria acha que ele tem razão quando também quer extinguir a justiça do trabalho (que ele, por certo, não conhece).

Mas, sigo de novo. Há, de fato, um bombardeio falso-moralista feito pelas abelhas virtuosas da colmeia brasileira (falo, por óbvio, da fábula liberal do Barão de Mandeville — a propósito, por que será que, no Brasil, todo liberal é sempre “liberal” e não liberal?). Querem só virtudes… Mas gostam de viver dos vícios! Fica fácil perceber como há um discurso tipo “bem contra o mal”, em que o desemprego de milhões acaba considerado uma externalidade necessária para o “extermínio do mal”.

Nesse contexto, a espinafração cotidiana apenas corrobora o que já falei anteriormente, que a Justiça do Trabalho e os direitos trabalhistas são utilizados como bode expiatório. Até entendo que pessoas como os membros do grupo de Dória e quejandos façam tais declarações, vá lá, não é segredo o lugar da fala desse pessoal. Agora, parece estranho que juízes do trabalho (e há muitos) compactuem com a sua própria extinção autofágica, numa espécie de haraquiri institucional inautêntico, no sentido gadameriano, já que não haverá honra nenhuma em perpetrar flagrantes inconstitucionalidades (assistam a reprise da Globo News de 7 de novembro — debate sobre a Reforma Trabalhista no programa Entre Aspas, em que debateram os juízes do trabalho Guilherme Feliciano e Marlos Melek; o primeiro, mais cético, demonstrava preocupação com os limites e vínculos constitucionais na seara trabalhista, adotando uma problematização dos efeitos da nova lei; já o segundo defendeu algo como a superação da CLT de 1940, com uma espécie de laissez-faire trabalhista e algumas pitadas de macroeconomia. Disse que a Reforma acabará por propiciar uma revolução tecnológica no país, com mais dinheiro no bolso dos trabalhadores e com uma industrialização avançada no país, que passaria a privilegiar a ciência e os produtos com valor agregado). E por que digo isso? Simples, porque aplicar a reforma trabalhista (Lei 13.467/17 e MP 808/17) sem a filtragem da jurisdição constitucional será a sentença de morte da própria Justiça do Trabalho, segundo as próprias falas dos seus defensores, como antes visto.

Vem a calhar, neste ponto, uma lembrança sobre a já famosa sentença precursora da intolerância processual que fulmina a integralidade da assistência jurídica gratuita, no sentido de garantia dos necessitados contra os riscos inerentes às demandas judiciais.

Foi preciso um jornal estrangeiro abordar de forma crítica aquela sentença precursora da intolerância processual, pois os grandes meios de comunicação brasileiros mais parecem imprensa oficial ao comentar a reforma trabalhista. O jornal El Pais já deixou bem claro o que ocorreu no caso daquela sentença na manchete O desempregado que deve quase um ano de salário por perder uma ação trabalhista. Não repetirei aqui o drama do trabalhador rural que ganhava um salário mínimo por mês. Quero enfatizar apenas dois pontos que ficaram bem explicitados na reportagem.

O primeiro é que, como suspeitei desde o princípio, a aplicação da litigância de má-fé ocorreu em razão de o reclamante ter confessado em depoimento que usufruía uma hora de intervalo intrajornada, contrariamente aos 30 minutos afirmados na petição inicial. De uma vez por todas, confissão não pode ser encarada como alteração da verdade dos fatos para fins de aplicação da litigância de má-fé, mormente em casos de trabalhadores rurais de notória humildade. Caso efetivamente se constatasse uma conduta inadequada dos argumentos lançados na petição inicial, deveria o juiz encaminhar ofício à OAB para apuração dos fatos, e não multar o trabalhador que disse a verdade em seu próprio prejuízo.

Já o segundo ponto diz respeito à superficial abordagem da segurança como um dever exclusivo do Estado para imunizar o ex-empregador de assalto sofrido pelo trabalhador rural em questão. Novamente, invoco aquela coisinha banal e tão esquecida na República: o texto da Constituição de 1988. Diz em seu artigo 144 que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Portanto, todos temos responsabilidade para com a segurança pública, não havendo uma cláusula que nos imunize de tal dever nas relações privadas em que atuamos. Portanto, à luz do texto constitucional, a sentença é fadada ao limbo jurídico porque não respaldada pela estruturação imposta literalmente na Constituição de 1988.

Não fosse isso o bastante, lembro a eficácia horizontal dos direitos fundamentais entre os particulares. A segurança é, sem dúvida, um direito inerente às relações de trabalho, mormente as relações de emprego (CF, artigo 6º e artigo 7º, XXII). Afinal, a relação de emprego, que se notabiliza pelo conceito de subordinação jurídica, é espécie do gênero relação de trabalho. O mais dramático nessa história toda é que foi o juiz do trabalho e doutrinador alemão Hans Karl Nipperdey quem desenvolveu em 1954 o conceito de eficácia horizontal dos direitos fundamentais entre os particulares. Coitado do Hans, deve estar se revirando no túmulo!

Para saber mais sobre Nipperdey, recomendo o texto intitulado Os juristas que não traíram a História, de Otavio Luiz Rodrigues Junior, cujo título ganha especial significação na presente coluna. Em colunas futuras, continuarei a saga pela aplicação da jurisdição constitucional à reforma trabalhista. Trata-se de um dever republicano. Simples assim. Vai dar trabalho. Ups. É disso que se trata, mesmo.

 

 

 

Autor: Lenio Luiz Streck  é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.


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