Marcelo Teixeira de Aleluia
Advogado Civilista
Pós-graduando em Direito Civil na Escola Superior de Advocacia do Rio de Janeiro
Articulista da revista Panorama da Justiça
I – Introdução
Mudanças nas bases principiológicas
Sabemos que o Código Civil de 1916, apesar de nos ter sido útil por muitos anos, viveu sobre fortes críticas, sendo que os doutrinadores modernos acusavam-no, principalmente, de excessivamente patrimonialista.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, todas as normas infraconstitucionais tiveram que ser interpretadas à luz de sua letra, obedecendo ao pacificado ensinamento de Kelsen, que identificava a superioridade hierárquica da Constituição sobre as demais normas, sendo certo que as em dissonância com a Carta Magna antes de sua entrada em vigor, segundo boa doutrina, estariam prontamente revogadas a partir do início de sua vigência, e os dispositivos do Código Civil, apesar de diploma de suma importância, não poderiam fugir a essa regra.
Na prática, verificamos que geralmente é necessário o exercício do controle difuso para que se exerça a defesa contra uma norma preexistente revogada tacitamente pela Constituição, enquanto que as supervenientes, em regra, são controladas pela via direita.
Reparem que falamos sobre normas infraconstitucionais, pois a melhor doutrina entende que a vinda de uma nova Constituição, revoga totalmente a Constituição anterior, guardando seus efeitos temporais.
Orientados pelo princípio do paralelismo de formas, alguns doutrinadores entendem que a Constituição não pode revogar normas infraconstitucionais, contudo, podemos identificar um sentido muito maior na doutrina que entende essa tomada avassaladora de uma Constituição, sendo ela considerada o paradigma, não só para determinar a vida das normas que surjam após sua existência, mas como também a vida das normas preexistentes. Ainda podemos incluir como um dos poderes irradiadores de uma Carta Magna, o que nos ensinou no auditório da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (2002), de forma magistral, o constitucionalista português Jorge Miranda, nos mostrando que além da conhecida recepção das normas anteriores a sua vigência que estejam em consonância com sua letra, a chegada de uma Constituição provoca também o fenômeno da “novação”, ou seja, os princípios gerais e normas específicas de qualquer ramo do direito são interpretadas de maneira nova, a luz dos novos princípios magnos, provocando uma natural modificação na concepção de todas as outras normas que, como já frisado, são inferiores em hierarquia.
Como conseqüência de toda essa sistemática, não seria lógico que tudo que tivesse em dissonância com a Constituição, antes de sua vigência, tivesse que ser declarado inconstitucional após sua entrada em vigor, tendo sido identificado na norma uma inconstitucionalidade latente.
É nessa esteira que caminha todo o ordenamento jurídico, e em conseqüência dessa unicidade principiológica, não há que se falar em excluir as normas-princípio constitucionais do direito privado, o que, visto com tempero, não implica na retirada de sua autonomia como veremos adiante.
II – Da Ação Volitiva no Novo Código Civil
O Novo Código Civil, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, trouxe inspirações principiológicas inovadoras e que guardam maior harmonia com o atual estado de direito em que vivemos, sendo que uma das principais novidades é a retirada do caráter absoluto da vontade, colocando-a sob a boa-fé objetiva.
O grande jurista Gustavo Tepedino traça preciosas linhas que definem muito bem o atual espírito do Direito Civil, ensinamento que transcrevemos in verbis:
“Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimonias e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, cujo atendimento de se voltar à iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”.
É em cima desses valores que o direito privado constrói uma outra fisionomia, em consonância com valores mais elevados, até pelo princípio lógico de que nada tem valor sem o ser humano, este que o responsável pela atribuição de valor a todo é qualquer bem patrimonial.
É nesse diapasão que se discute a vontade que podemos, juridicamente, descrever com a seguinte redação:
“Poder irredutível, faculdade que tem o homem de querer, de se determinar espontaneamente a uma ação ou omissão, após reflexão. Exercício desse poder. Energia que domina e dirige nossas idéias. Livre disposição do espírito para deliberar e agir por si mesmo.”
Ainda na aguçada doutrina de Silvio Venosa, podemos extrair o valioso ensinamento de que:
“Não há necessidade de que a vontade atue de uma ou outra forma. Sua exteriorização pode ser de forma verbal ou escrita, ou até por gestos ou atitudes que revelam uma manifestação de vontade. Não há dúvida, contudo, de que é na palavra, escrita ou falada que encontramos o grande manancial de declarações de vontade.”
Observando a definição jurídica de vontade, verificamos uma mudança acentuada no Novo Código Civil, principalmente, na parte dos contratos, pois até então tínhamos o princípio da livre vontade das partes, seguido pelos da relatividade dos efeitos contratuais e o da força vinculante do contrato como orientadores maiores das relações contratuais. O Novo Código Civil, apesar de, ao nosso sentir, não ter abandonado tais princípios, acrescentou mais três princípios, quais sejam o da Função Social dos Contratos; da Boa-Fé e do Equilíbrio Econômico dos Contratos, estes que agora farão parte da equação para resolver todo e qualquer caso concreto no tocante aos contratos.
Um dos exemplos mais marcantes de mudança é a inserção do princípio da função social, consignado no artigo 421 do Código Civil, dizendo que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social. Aqui identificamos um dos primeiros pontos interessantes quanto ao limite da ação volitiva, pois o direito privado sempre teve como sua principal característica a autonomia da vontade e, em decorrência disso, os negócios jurídicos (nascentes de manifestação volitiva) que contivessem os requisitos essenciais de validade impostos pelo direito positivo, hoje consignados no artigo 104 do Código Civil, em tese já estariam aptos a produzirem efeitos de acordo com a vontade de seus agentes.
Há de se convir que dizer que os contratos têm que respeitar os limites da função social é mais do que aceitável, pois é justamente isso que o direito positivo busca em sua evolução, porém, em razão da função social não nos parece o mais adequado, pois tememos que não seja da essência do contrato ter como razão uma função social, o contrato nada mais é do que uma junção de esforços para se auferir um objetivo em que os contraentes possam ter utilidade um ao outro no cumprimento deste para uma satisfação, prioritariamente, pessoal, desde que esteja em consonância com o ordenamento jurídico, preenchendo seus requisitos de validade para que não nasça eivado de vícios. Não obstante, pode até ter uma função social relevante, mas não que isso faça parte de sua essência ou gênese. Acreditamos que tal analise valia para qualquer manifestação volitiva, mesmo não sendo contratual.
Hoje temos mecanismos mais complexos e eficientes para analisarmos os efeitos de um ato jurídico, mas nada disso significa que a razão da vontade esteja na função social. Entendemos que não foi essa a intenção do legislador do Código Civil.
Com clareza solar, nos expõe o professor Cleyson de Moraes Mello, o seguinte:
“Para concluir, lembramos que o direito pós-moderno nasce a partir do momento em que o entendimento dos juízes e demais operadores do direito possa ir além da norma positiva, a fim de que se constitua em instrumento de mudança social. Ao mesmo tempo, ressaltamos que a filosofia moderna caminha no sentido de penetrar-se no mundo dos valores, entre os quais se colocam o justo, o útil, a liberdade, a igualdade, a solidariedade e demais valores que transitam na sociedade e com que se depara a todo o momento os juristas e cientistas do direito, cujo trabalho deve orientar-se sempre para o ideal de justiça para todos”.
Essas linhas dão as bases para a exegese de todos os dispositivos também do Direito Privado, como hoje o entendemos, e, sem dúvida, dá os limites da ação volitiva do agente que esbarra em valores supremos, estejam ou não positivados, posto que hoje o Código Civil abre uma possibilidade operacional muito grande, ganhando status de princípio, bastando que os próprios operadores saibam utiliza-la.
Um exemplo de instrumento hábil para compreendermos o sistema no qual devemos operar, é trazido pelo Novo Código Civil quando trata do princípio da boa-fé, que traz em si o princípio maior de Eticidade, disposta no artigo 113, com a seguinte redação:
“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
A boa-fé é componente ético das relações jurídicas, e o Código não silencia quanto a essa questão, deixando claro que todas as relações, com extensão aos atos unilaterais, tem que ser éticas para serem plenamente eficazes e efetivas.
III – Conclusão
No nosso entender, a principal questão está em não confundirmos limite com razão, a vontade do agente no direito privado tem que ser livre, apenas respeitando os limites consignados nas normas. Veja que falamos em limites, que hoje são muitos e permeados por princípios que podem garantir a efetividade do ordenamento jurídico.
O que não se pode exigir é que a razão seja social, sob pena de um estrangulamento do direito privado. As pessoas devem expressar sua vontade livremente e serem apenas protegidas por valores maiores, como a vida, que está acima de qualquer disposição contratual, ou a própria dignidade da pessoa humana, como nos orienta a Carta Magna em seu artigo 1°, III, estes que são limites necessários.
O ser humano tem a possibilidade de estabelecer sua razão, pois a mesma advém do raciocínio, da capacidade de estabelecer relações, ponderar idéias e juízos, o que nos parece ser a gênese do direito privado.
Há que se salientar que a razão está dentro das relações, ela é interna e de cada agente, por tal motivo deve ser resguardada, posto que é, em regra, de foro íntimo e, não atingindo nenhum valor supremo e estando em harmonia com todo o restante do ordenamento jurídico, há de ser preservada até o último momento.
Quanto aos limites da ação volitiva, estes são externos e, como conseqüência da proficiente novel legislação, ganharam caráter objetivo, não restando dúvidas que tais limites acompanham todo e qualquer ato jurídico, em proteção aos valores supremos que hão de serem defendidos em qualquer instância.
Consultas:
Tepedino, Gustavo. Temas de direito civil. 2ª ed. Rio de Janeiro, Renovar – 2001, pág. 22.
Nunes, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. 13ª edição, ampliada e atualizada por Artur Rocha – Rio de Janeiro – Renovar, 1999, pág. 1085.
Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 3ª ed. São Paulo, Atlas, 2003, pág. 402.
Porto de Barros, Ana Lúcia. O Novo Código Civil: Comentado. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2003, pág. XLI.