Os reflexos criminais da Guerra Fiscal

Por José Luis Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou ser inconstitucional o incentivo fiscal concedido unilateralmente por Estados da Federação. Comenta-se que alguns inquéritos policiais poderão ser instaurados em relação aos contribuintes que se aproveitaram dos benefícios, visando à apuração de eventual prática de crime tributário. Juridicamente isso não parece ser possível, pois está claro que quem eventualmente age de forma inconstitucional é o Estado concedente do benefício fiscal.

A Guerra Fiscal ocorre da seguinte maneira: buscando desenvolvimento e investimentos para seu território, um Estado decide instituir o benefício fiscal e passa a atrair uma série de empresas, gerando empregos e investimentos. Na outra ponta, há o Estado que deixou de ter aquelas empresas em seu território. Para evitar que outras façam o mesmo e desfalquem ainda mais o seu caixa, o governo passa a pressionar as companhias. A ameaça é que, caso se mudem, não terão para quem fornecer seus produtos, já que seus clientes não irão mais se creditar do seu ICMS.

O primeiro resultado prático desse embate é percebido no resultado das empresas compradoras, estabelecidas no Estado afetado com a saída das companhias fornecedoras. São lavrados autos de infração, cobrando o ICMS que não foi pago ao outro governo estadual. O contribuinte por vezes é acusado de praticar crime de sonegação fiscal, sob o argumento de ter se creditado de um ICMS sabidamente incentivado e deixou de recolher o imposto devido ao outro Estado.

Para diminuir o risco de perder seus clientes e se manter ativa no mercado, a empresa fornecedora faz um verdadeiro malabarismo. Ela mesma assume a contingência da Guerra Fiscal, criando uma nova companhia, de sua propriedade, situada agora no Estado que havia deixado, e que passará a intermediar a operação de compra e venda. Quando exercer a retaliação, o Estado a fará contra uma empresa do mesmo grupo econômico do fornecedor, liberando o comprador (cliente) da descabida perseguição resultante da Guerra Fiscal.

Esse malabarismo nada mais é do que uma forma de não ver escorrer pelo ralo todo o investimento feito na instalação da nova unidade e preservar os empregos da exploração lícita de sua atividade. Muitas empresas faziam e fazem isso até hoje, não havendo nada de ilegal na adoção desta atitude.

Nesse cenário, são os representantes da empresa intermediária que figuram como responsáveis pelo eventual crime de sonegação fiscal, já que sua empresa é apontada como aquela que se creditou indevidamente do ICMS destacado pelo fornecedor efetivo. Até aqui só há um Estado que se sente prejudicado e exige a adoção de medidas fiscais e criminais contra o “infrator”: justamente aquele em que se situa a empresa que adquiriu a mercadoria e que foi beneficiada na etapa anterior.

Mas a coisa mudou de figura quando o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da norma incentivadora. O ICMS passou a ser devido e o governo que concedeu o benefício fiscal deverá, com base na Lei de Responsabilidade Fiscal, tomar as medidas necessárias para reaver o imposto que deixou de ser pago.

Assim, mesmo não tendo sido pago ao governo que concedeu o benefício fiscal, passa a ser legítimo o direito ao crédito por parte dos estabelecimentos situados no outro Estado. De acordo com o Supremo, o crime tributário exige a prática de uma conduta fraudulenta por parte do contribuinte, que não pode ser penalmente responsabilizado por conta de cobranças tributárias típicas da Guerra Fiscal. As recentes decisões do STF reforçam a impossibilidade de qualquer acusação de sonegação fiscal que poderia pesar sobre os ombros dos compradores de mercadorias beneficiadas, tendo em vista que, em sendo dever do Estado exigir o imposto, essas empresas possuem o direito ao crédito do ICMS cobrado na etapa anterior.

Também não há muito fundamento em atribuir a responsabilidade para o estabelecimento fornecedor, que se valeu do incentivo fiscal posteriormente declarado inconstitucional. Todos os atos jurídicos tributários supostamente questionáveis foram feitos com base em lei ordinária válida, vigente e eficaz, produzida pelo Poder Legislativo e presumidamente constitucional.

A Guerra Fiscal colocou o contribuinte no meio de um campo de batalha entre os Estados, que não raro se utilizam da persecução criminal como arma para incrementar a arrecadação. Essas investidas agora podem ser repelidas pela própria trégua imposta pelo STF, que, de forma indireta, passa a aceitar os créditos de ICMS tidos como indevidos.

[Artigo publicado nesta segunda-feira (8/8) no jornal O Estado de S. Paulo]

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