Autor: Marco Aurélio Ribeiro (*)
Não é incomum nos dias de hoje nos depararmos com representações, ações ou matérias jornalísticas veiculando a utilização de espaços públicos para realização de cultos religiosos, gerando, assim, a singularidade da bipolaridade sentimental de insurgência por um lado e aprovação por outro.
É certo, ainda, que muito dos espaços públicos, em especiais os prédios com maior amplitude física, possuem disciplinamento próprio acerca da utilização de referido espaço. A título de exemplo, a Assembleia Legislativa do Estado do Acre (Aleac), a qual editou a Resolução 70, de 13 de abril de 2012, instituindo um espaço ecumênico na Assembleia Legislativa destinado às manifestações de aperfeiçoamento e elevação espiritual, facultando o uso do auditório por qualquer pessoa, independentemente de religião, periodicamente, mediante comunicação prévia à Secretaria Executiva, para que fosse possível a compatibilização de agendas.
Utilização de igual modo, porém com maiores diretrizes, também existe junto a Câmara dos Deputados, mas com critérios mais adequados e pertinentes1.
Nesse sentido, é sabido que o princípio da laicidade é previsto pela Constituição Federal, conforme dispõe o artigo 19, inciso I: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Com relação ao referido dispositivo, José Afonso da Silva2, assevera que:
“Estabelecer cultos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso”.
Acerca do tema, Celso Bastos3 pontua que o Brasil adotou um modelo de separação atenuada, “modelo em que o Estado emite um julgamento positivo sobre a religião em geral, embora predominem os objetivos laicos, legalmente estabelecidos, sobre os objetivos religiosos, e não haja opção por determinada crença”, sendo que “o Poder Público, desse modo, não deve interferir no exercício da liberdade religiosa, impondo ou proibindo crenças e cultos, como também não poderá privilegiar determinada orientação religiosa em detrimento de outras, ainda que professadas majoritariamente no âmbito social”. Vale dizer que, apesar da inegável tradição cristã do povo brasileiro, o Estado convive com múltiplas religiões e deve tratá-las de forma igualitária e impessoal, sejam elas cristãs ou não, mantendo-se “indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se […]”4.
Nesse sentido, faz-se referência, por analogia, à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.4395, proposta pela Procuradoria-Geral da República no Supremo Tribunal Federal, segundo a qual o princípio da laicidade não deve ser interpretado a partir de uma perspectiva ateísta ou resistente à expressão individual da religiosidade, pelo contrário, preceitua que o Estado deve se manter neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade.
De igual modo, relaciona o princípio do Estado laico aos direitos fundamentais de liberdade de religião e igualdade, os quais, em suas palavras, “gozam de máxima importância na escala dos valores constitucionais”, caracterizando o primeiro como verdadeira garantia institucional da liberdade religiosa individual.
Quanto ao princípio da igualdade, pondera que “em uma sociedade plural, como a brasileira, em que convivem pessoas das mais variadas crenças e afiliações religiosas, bem como aquelas que não professam credo algum, a laicidade converte-se em instrumento indispensável para possibilitar o tratamento de todos com o mesmo respeito e consideração”.
Adverte, ainda, que “a correta compreensão do princípio da laicidade no sistema constitucional brasileiro, por sua vez, impõe que se considere o fato de que o próprio constituinte foi expresso ao admitir ‘a colaboração de interesse público’ entre instituições religiosas e os poderes públicos (art. 19, I, CF). Este regime de colaboração voltada ao interesse público é incompatível com a radicalização da ideia do ‘muro de separação’ entre religião e Estado, pregada no cenário norte-americano por Thomas Jefferson”6.
Necessário destacar que o princípio da laicidade denota uma perspectiva refratária à expressão da religiosidade, não se podendo confundir tal princípio com o laicismo, o qual traz a tona certa animosidade com a expressão pública da religiosidade de indivíduos e grupos, fazendo emergir hostilidade diante da religião.
É certo que a laicidade opera em duas direções, seja salvaguardando as diversas religiões do risco de intervenções abusivas do Estado em suas questões internas, seja protegendo o estado de influencias provenientes do campo religioso, mas nunca como um princípio que implicaria na obrigatoriedade de rompimento com as questões religiosas.
Aliás, o próprio constituinte, no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, foi expresso em admitir “a colaboração de interesse público” entre as religiões e o poder público, não sendo, assim, admissível, erguer-se um “muro de Berlim” separando Estado e religião.
Ambos, ao nosso sentir, coexistem de forma harmônica, colaborativa e cooperativa na ordem constitucional, legal e social, não se admitindo, de forma alguma, o priviégio de determinadas religiões em detrimento de outras.
Nesse campo, ao nosso sentir, existindo regulamentação da utilização do espaço público que abrange a todos os credos e religiões, e não havendo negativas ou de privilégios aos credos e religiões, não há de se observar qualquer ilegalidade na ação, mas ponderação de princípios constitucionais que devem se harmonizar e não se excluírem.
Logo, o fato do Estado ser laico não o despe da figura democrática e fomentadora de suas obrigações constitucionais, sendo a religião tutelada e fomentada, não se admitindo, por seu turno, tão somente privilégios a uma religião em detrimento de outra(s).
Autor: Marco Aurélio Ribeiro é promotor de Justiça do Ministério Público do Acre e titular da Promotoria Especializada de Defesa dos Direitos Humanos.