Os sabores do cardápio gramatical

Muito se diz sobre o prato predileto do brasileiro: arroz, feijão e bife. Na combinação, entra algum ingrediente aqui – a salada ou as fritas, por exemplo –, varia outro item acolá – o feijão preto ou marrom, talvez. Mas, no geral, o brasileiro prefere a simplicidade dessa tríade alimentar e a considera infalivelmente clássica.

Entre as opções de bife, que transitam apetitosamente pelos cardápios dos restaurantes e lanchonetes, destaca-se uma que, conquanto sonoramente estranha, suscita importante questão gramatical: a crase (ou a ausência dela) na expressão “bife a cavalo”. Passemos à análise:

De início, urge relembrarmos o que vem a ser esse importante fenômeno gramatical conhecido por “crase” – um nome que se dá para a fusão de duas vogais da mesma natureza (“a” + “a”). Trata-se da soma de uma preposição “a” com um artigo definido feminino “a”. Tal adição resultará no chamado “a” acentual ou, como preferem alguns, no “a” com o acento grave indicador da crase, cuja representação é bastante conhecida: [ à = a (prep.) + a (artigo) ].

Relembrando alguns casos:

Eu cheguei à escola.
Explicando: Eu cheguei [ a¹ + a² = à ] escola.
a¹ = preposição própria do verbo “chegar” (quem chega, chega “a”);
a² = artigo definido feminino singular, próprio do substantivo feminino “escola”.

Homenagem à escola.
Explicando: Homenagem [ a¹ + a² = à ] escola.
a¹ = preposição própria do nome “homenagem” (quem faz homenagem, faz homenagem “a”);
a² = artigo definido feminino singular, próprio do substantivo feminino “escola”.

Entre as regras impostas pelo uso do acento grave da crase, vem a calhar a que ocorre quando se subentendem as expressões “à moda de” ou “à maneira de”. Tais construções mostram a ocorrência da crase pela fusão elíptica que se estabelece com o termo “feito” ou “realizado”, que avocam a presença da preposição “a”. Observe:

– Algo feito [ a + a ] moda de = Algo feito [ à ] moda de = à moda de (com crase);

– Algo feito [ a + a ] maneira de = Algo feito [ à ] maneira de = à maneira de (com crase);

Da mesma forma:

– Algo realizado [ a + a ] moda de = Algo realizado [ à ] moda de = à moda de (com crase);

– Algo realizado [ a + a ] maneira de = Algo realizado [ à ] maneira de = à maneira de (com crase);

Observe que a crase só encontrou lugar nas expressões “à moda de” e “à maneira de” porque “moda” e “maneira” são substantivos femininos, que avocam a presença do artigo definido feminino.

Portanto, se escrevemos, por exemplo, que “o drible foi realizado à maneira/moda de Garrincha”, podemos afirmar, sucintamente, que “o drible foi à maneira/moda de Garrincha”, ou, ainda, em resumo, que “o drible foi à Garrincha” (com crase). Da mesma forma, outros exemplos podem ser indicados:

Gol realizado à maneira/moda de Pelé. Ou:
Gol à maneira/moda de Pelé. Ou, ainda:
Gol à Pelé.

Estilo realizado à maneira/moda de Machado de Assis. Ou:
Estilo à maneira/moda de Machado de Assis. Ou, ainda:
Estilo à Machado de Assis.

A exemplificação ofertada nos autoriza a enfrentar o dilema do nosso “bife”. É plenamente aceitável que escrevamos, com o acento grave da crase, “bife à milanesa”, pois se quer afirmar que o corte foi feito à moda ou à maneira de Milão. De igual modo, recomenda-se a crase nas expressões:

– “Bife à portuguesa” (à moda/maneira de Portugal);
– “Bife à Camões” (à moda/maneira de Camões);
– “Bife à parmegiana (à moda/maneira parmegiana);

Sob o enfoque gastronômico, como o bife estará sempre bem acompanhado ao lado do inseparável “arroz”, a propósito, devemos aproveitar o ensejo e aplicar a este a mesma regra: escreva “arroz à grega”, uma vez que tal arroz foi feito à moda ou à maneira grega.

Entretanto, se o desejo é pedir mesmo o tal “bife a cavalo”, recomendamos que o faça sem a presença do acento grave indicador da crase. A motivação é simples. Aqui não cabe a regra acima exposta. Ninguém irá comer um filé “à moda (de) cavalo”, até porque não seria compreensível tal maneira de ingestão.

Curiosamente, a expressão parece indicar que “algo vem em cima de”, à semelhança do ato de “montar” o cavalo, em que o cavaleiro se coloca sobre o animal. Para quem conhece os detalhes culinários do prato, irá notar que o “bife a cavalo” é um bife com um “ovo a cavalo”, ou seja, com um ovo que vem sobre o bife. Assim como podemos escrever, sempre sem o acento grave da crase, “homem a cavalo” (alguém montado sobre o animal), é crível falar “ovo (ou bife) a cavalo”. O detalhe é que a expressão “bife a cavalo” parece equivocadamente indicar que o bife é que está em cima de algo, mas, na verdade, é o ovo que “o monta”.

Feita a análise estética do apetitoso prato, nota-se que a crase não será adequada, pois a palavra “cavalo” – diferentemente de “moda” ou “maneira” – é masculina, rechaçando a presença do artigo definido feminino. Sem contar o fato de que a expressão “feito à moda (de) cavalo” é incompreensível. Daí não se poder falar em crase na expressão. Portanto, prefira “bife a cavalo”, sem crase.

Por outro lado, como a carne bovina nem sempre agrada a todos, é comum o restaurante oferecer mais de uma opção, o frango, por exemplo. Quem sabe um “frango a passarinho”… Nesse caso, é importante perquirirmos se a expressão está correta, sem crase, ou se o acento grave dela indicador será indispensável. Como se diz na linguagem popular, é chegada a hora de “dar nome aos bois”, ou melhor, “ao frango”. Vamos analisar:

O referido aperitivo, sempre presente nas rodas de amigos, nos bares e lanchonetes, é uma comida trivial, mas de notável predileção do brasileiro. Pense no frango, cortado em pedaços pequenos e frito em óleo bem quente. Este é o “frango à passarinho!” – e com um detalhe importante: um tira-gosto que se come apetitosamente com as mãos.

Partindo da receita em epígrafe, é possível notar que o frango, quando preparado à maneira de um passarinho, ou seja, cortado em pedaços pequenos, deverá ser assim grafado: “frango à passarinho”, com crase.

Nessa medida, vale a pena recapitularmos as curiosidades desse curioso “cardápio gramatical”:

Sem crase:
Bife a cavalo

Com crase:
Bife à milanesa; Bife à portuguesa;
Bife à Camões;
Bife à parmegiana;
Arroz à grega
Frango à passarinho

Posto isso, diante dos diferentes sabores desse cardápio gramatical, há que se fazerem as devidas escolhas para o bom uso da crase. Como dizia Confúcio, “todos comem e bebem; são poucos os que sabem distinguir os sabores”.

Por: EDUARDO SABBAG
Advogado; doutorando em Direito Tributário (PUC/SP); doutorando em Língua Portuguesa (PUC/SP); mestre em Direito Público e Evolução Social (UNESA/RJ); professor de Direito Tributário e de Língua Portuguesa na Rede de Ensino LFG/ANHANGUERA; coordenador e professor do curso de pós-graduação em Direito Tributário na Rede de Ensino LFG/ANHANGUERA. Autor do Manual de Direito Tributário, 3ª edição, pela Editora Saraiva; Elementos de Direito Tributário, 12ª edição, pela Editora RT; Redação Forense e Elementos da Gramática, 4ª edição, pela Editora RT; e diversas outras obras. Visite a página www.professorsabbag.com.br .

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